Punir ou Tratar: Eis a Questão

15/03/2017

Por Luciane Buriasco Isquerdo – 15/03/2017

Há uma teoria psicanalítica segundo a qual a delinquência seja fruto de uma severa privação de afeto a que tenha se submetido a criança depois do primeiro ano de vida (nas primeiras semanas ou meses de vida leva à esquizofrenia[1]). O delinquente, portanto, é alguém que não foi amado suficientemente, ou esse amor não foi devidamente expressado, de modo que ele cobra da sociedade o amor que não teve em casa.

A constatação, aliada ao dia a dia de uma vara criminal, com réus quase sempre pobres, com pouca instrução, jovens, filhos de pais muitas vezes desconhecidos e mães que o criaram, mas com sentimentos de rejeição, seja por este abandono do pai, seja pela gravidez ser indesejada, em momento inoportuno, sem um planejamento, somada à uma tendência legislativa ao tratamento, como se deu no caso da Lei de Drogas, ao não mais prever privação de liberdade ao usuário[2], leva o julgador, quantas vezes, a se indagar se todos não deveriam se submeter a tratamento psiquiátrico ou psicológico. Mais ainda, naqueles casos em que o mesmo réu sai e volta a entrar na prisão, quebrando as regras de seu regime de pena mais ameno, ou praticando sempre novos crimes, parecendo não conseguir sair das garras do Direito Penal. Seriam psicopatas? O que fazer com eles?

Mas é o próprio autor da teoria que relacionou privação e delinquência, em obra que consiste de vários textos reunidos sob este título, Privação e Delinquência, D.W. Winnicott, psiquiatra infantil, escrevendo um desses textos, em 1961, quem pontua que “existe um perigo na moderna tendência para o sentimentalismo, sempre que se considera a punição de delinquentes[3]. É que “a função precípua da lei é expressar a vingança inconsciente da sociedade. É muito possível a qualquer delinquente individual ser perdoado e, no entanto, isso não impede a existência de um reservatório de vingança e também de medo que não podemos nos permitir ignorar; não podemos pensar unicamente em termos de tratamento de cada criminoso, esquecendo que a sociedade foi ferida e também necessita de tratamento”. [...] é “possível que, se os sentimentos de vingança da sociedade fossem plenamente conscientes, a sociedade pudesse admitir o tratamento do delinquente como doente, mas grande parte da vingança é inconsciente, de modo que se deve levar permanentemente em conta a necessidade de se manter a punição em vigor, em certa medida, mesmo quando ela é inútil no tratamento do delinquente[4].

Essa necessidade inconsciente de vingança por parte da sociedade pode vir à tona diante de um crime que cause comoção social e esteja sendo acompanhado pela mídia, mas não é na verdade por “nenhum crime em particular, mas pela criminalidade em geral[5].

Daí se explica o interesse crescente da sociedade por ocorrências policiais, presentes em todos os noticiários, a satisfação a cada prisão mostrada pela mídia, mormente se de pessoas poderosas, com vídeos espalhando-se pela internet e juízes de tais casos transformados em heróis, louvados publicamente.

Vai além esse sentimento de vingança inconsciente coletiva. Diz o autor que “o público precisa saber que os presos não estão sendo mimados[6]. É assim que o auxílio-reclusão foi alvo de muitas publicações na internet, como se não fora uma espécie de seguro paga pelo contribuinte do INSS, com requisitos difíceis de serem preenchidos pela população carcerária, seja pela previsão de um teto de rendimentos baixo, seja porque a grande maioria da população carcerária sequer é composta por contribuintes do INSS. Pouco importa. As críticas foram tantas que há projeto de lei (PEC 304/13, com previsão de votação para este ano) para se extinguir o benefício e se criar um benefício à vítima do crime – um jeito da classe política, que depende de apoio popular, agradar seus eleitores. Imagine se nesse quadro agentes políticos destinarão recursos públicos significativos que venham a de fato resolver o problema da superpopulação carcerária, proporcionando uma vida digna ao preso, privada tão somente de liberdade, como prevê a lei. O mesmo se diga da criação de postos de trabalho para que o preso em regime fechado possa trabalhar. A sociedade quer que trabalhe, mas como pena, sem investimento de dinheiro para tanto, ou seja, sem sacrifícios de sua parte.

Entre tratar e punir, Cyro Marcos da Silva, um psicanalista contemporâneo que antes foi juiz, afirma categoricamente que o crime não pede cura, pede resposta. “Não cabe ao Direito curar, medicar, obrigar a tratamento, tornar-se terapêutico”. Diz que “não há pior vertigem para afastar o Direito do seu caminho do que quando seus operadores, seja o legislador, seja o aparato judiciário, resolvem querer o bem do processado.[7]. Nessa linha, em relação ao criminoso, aposta no caráter retributivo da pena, com vistas ao assentimento subjetivo, “única possibilidade da punição encontrar uma significação para o sujeito[8].

Winnicott nem nisso apostava. “A punição só tem valor quando traz à vida uma figura paterna forte, amada e confiável, para um indivíduo que perdeu exatamente isso. Pode-se afirmar que toda e qualquer outra punição consiste simplesmente numa expressão cega da vingança inconsciente da sociedade[9].

A serviço de tal vingança, o julgador precisa punir. Claro que o pode fazer zelando pelo devido processo legal, pelas garantias do preso, caso em que pagará o preço, inclusive, de ser odiado pela sociedade toda vez que soltar ou absolver quem tenha tal direito. O mais doloroso, contudo, é punir sabendo que a punição não terá efeito para o criminoso, que provavelmente reincidirá. Mais ainda, o destinatário da punição não é senão alguém que não foi amado suficientemente, de forma severa, pelos pais; um sofrido, alguém que não dá conta de seu lado negativo, como tantos depressivos, apenas em maior grau: um doente para o qual o julgador não tem, nem lhe cabe, dar remédio. Eis a resposta à questão.


Notas e Referências:

[1] Winnicott, Donald W. Privação e Delinquência. Tradução Álvaro Cabral e Revisão Mônica Stahel. 5.ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Pág. 155.

[2] Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [...] § 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

[3] Idem, pág. 229.

[4] Ibidem, pág. 230.

[5] Ibidem, pág. 231.

[6] Ibidem, pág. 233.

[7] Silva, Cyro Marcos da. Meritíssimo... por que tantos méritos? 1ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. Pág. 82.

[8] Idem, pág. 85.

[9] Winnicott, Donald W. Privação e Delinquência. Tradução Álvaro Cabral e Revisão Mônica Stahel. 5.ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Pág. 236.


Luciane Buriasco Isquerdo. Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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