Coordenador: Gilberto Bruschi
1. Os tribunais brasileiros são órgãos colegiados. O número de integrantes do colégio, chamado de tribunal pleno, varia muito e, na medida do possível, corresponde à numerosidade dos feitos em cada Estado-membro (Justiça Comum) ou Região (Justiça Federal). E, porque manifestamente inviável que todos os integrantes participem de todos os julgamentos inseridos na competência originária do tribunal, dividem-se em órgãos fracionários. A despeito de escassamente observada na prática, as linhas gerais da divisão do colégio são traçadas pelo art. 101, caput, da LC 35/1979. Os tribunais serão divididos em câmaras ou turmas, especializadas ou agrupadas em seções especializadas, cuja composição e competência dependerá da disposição da lei local, distrital ou federal e, ainda, do regimento interno. Por força do art. 93, XI, da CF/1988, nos tribunais com número superior a vinte e cinco membros, haverá um órgão especial, a fim de exercer a competência do tribunal pleno, como no mínimo onze e no máximo vinte e cinco membros, provendo-se metade das vagas por antiguidade e a outra metade por eleição. Em muitos tribunais, entre a seção cível e a câmara ou turma, a fim de diluir a competência daquele órgão fracionário, criou-se órgão intermediário, chamado de grupo, formado por duas ou mais câmaras.
2. Cuidando-se de órgão colegiado, impõe-se que recursos e causas de competência originária sejam distribuídas entre os seus integrantes. Chama-se relator o magistrado que recebe o processo e, grosso modo, compete-lhe, senão julgar singularmente os recursos (e as causas de competência originária), nas hipóteses previstas no art. 932, III, IV e V, do CPC de 2015, dirigir e ordenar o feito (art. 932, I). Segundo o art. 930, caput, do CPC de 2015, far-se-á a disposição consoante as disposições do regimento interno do tribunal.
3. A referência ao regimento interno do tribunal prende-se a dois fatores: (a) a composição colegiada; e (b) a especialização em razão da matéria de seus múltiplos órgãos fracionários. O tribunal é órgão colegiado. Existindo vários juízes, classificados em câmaras ou em turmas, grupos de câmara e seções – nos tribunais numerosos, há a seção cível e a criminal, bem como a subdivisão da primeira em seção de direito privado e seção de direito público –, ou seja, em diferentes órgãos fracionários, urge estabelecer qual deles exibe competência e, no seu âmbito, sortear um dos seus integrantes. Por meio da distribuição, repartem-se os feitos de forma mais ou menos equânime entre os integrantes do tribunal.
4. Recebida a petição inicial da causa de competência originária ou o recurso no protocolo do tribunal, ou no protocolo descentralizado (art. 929, parágrafo único), o processo será objeto de registro, compilando-se os dados cabíveis (v.g., o nome das partes, o valor da causa, o nome e o número de inscrição dos advogados, e assim por diante), e, incontinenti, far-se-á a distribuição do processo a um relator, respeitados três princípios: (a) alternatividade; (b) sorteio eletrônico; e (c) publicidade.
5. Depositam as partes muita expectativa na escolha do relator e, conseguintemente, na distribuição. Conforme a maior ou a menor reputação do relator, no mínimo presume-se a energia na condução do processo e, às vezes, de antemão conhecidas as inclinações do sorteado, considerando feitos anteriores, passa-se a imaginar o provável desfecho do processo. Nada é muito seguro no terreno dessas ilações. De toda sorte, o art. 930, caput, conjurando antigas desconfianças (AFFONSO FRAGA, Instituições do processo civil do Brasil, v. 3, n.° 1.566, p. 85. São Paulo: Saraiva, 1940), cerca de extremo cuidado o ato da distribuição. Explicitamente, institui a observância dos princípios da publicidade, da alternatividade e do sorteio, assegurando a repartição equitativa e impessoal dos feitos no tribunal.
6. Em quase todos os tribunais, há vários anos, adota-se sistema eletrônico na distribuição de processos e de recursos. É expresso, a este respeito, o art. 204 do NCPC português de 2013. No caso de o sistema não se encontrar funcionando, por qualquer motivo, o sorteio efetiva-se de forma manual, encarregando-se do ato o presidente ou o vice-presidente da corte. Representando ato de natureza administrativa, mas de efeitos processuais, o art. 872 do CPC de 1939 exigira da distribuição respeito aos princípios da obrigatoriedade, da alternatividade, do sorteio e da publicidade. Esses princípios garantem, em tese, a lisura da distribuição, motivo por que parcialmente repetidos no 948 do CPC de 1973: a obrigatoriedade é intrínseca à composição do tribunal. Mas, na prática, preservam a transparência do ato em “outros tempos” (MANOEL CAETANO FERREIRA FILHO, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 7, p. 366. São Paulo: RT, 2000), como agudamente se observou, fitando a realidade.
7. O sistema eletrônico mostra-se amplamente satisfatório para realizar o sorteio, respeitada a alternatividade. Em síntese, quem recebeu a rescisória X fica excluído do sorteio seguinte, relativo à rescisória Y, até esgotarem-se todos os integrantes do órgão fracionário competente.
8. No que tange à publicidade, contudo, o quadro se alterou para pior no ambiente eletrônico. É nítida a superioridade do disposto no art. 872, III, do CPC de 1939, segundo o qual, verificados os números de ordem dos processos, consoante o livro de protocolo, “o presidente os escreverá em papéis destacados, colocando-os na urna; em seguida, irá, por sorteio, distribuindo os que for retirando da urna, na ordem de antiguidade dos juízos que compuserem a câmara, ou turma”. Esse sistema ocorria à vista do público (advogados e partes) presente no início da sessão do órgão fracionário. Então, as leis de organização judiciária já atribuíam o sorteio ao presidente do tribunal, em sessões semanais, utilizando esferas numeradas em lugar de papéis (OSWALDO PINTO DO AMARAL, Código de Processo Civil brasileiro comentado, v. 5, n.° 103, p. 125. São Paulo: Saraiva, 1941).
9. O sorteio eletrônico previsto no art. 930, caput, do CPC de 2015 realiza-se a distribuição longe da vista do público, alimentando-se o sistema eletrônico com os dados obtidos pela “ordenação” dos autos. Não há publicidade real. O art. 289 do CPC de 2015, em tese, assegura às partes, aos respectivos advogados, ao Ministério Público e à Defensoria Pública o direito fiscalizar a distribuição – acontecimento incomum e improvável, senão inexistente, e, de resto, inviável por falta de elementos de prova – e de reclamar ao presidente do tribunal o erro na distribuição, aplicando por analogia o art. 288 do CPC de 2105 ou norma regimental equivalente.
10. Impedido de fiscalizar, também é impossível ao interessado demonstrar o erro na distribuição. Abstraído o flagrante descumprimento do princípio da publicidade, pois nenhum tribunal faculta às partes o acompanhamento da distribuição em tempo real e ao vivo, simplesmente inexistirá prova hábil. Parece necessário reconhecer ao interessado, no exercício do direito consagrado no art. 289 do CPC de 2015, requerer a apresentação da prova da obediência ao princípio da alternatividade e do sorteio. E só à autoridade judiciária encarregada da distribuição incumbe ministrar essa prova, por meio de acesso ao programa de informática. Em tal sentido dispôs o art. 205, n.° 2, do NCPC português de 2013, quanto ao primeiro grau, e idêntica orientação há de ser admitida no direito pátrio.
11. Em síntese, o sorteio eletrônico é incompatível com a publicidade. E cria autêntica caixa preta, insuscetível de controle pelas partes, exceto mediante cooperação de boa-vontade da autoridade judiciária.
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