Prova pericial, valoração judicial e subjetivismos

24/05/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

O mito da superação inquisitória costuma se valer da confissão como símbolo de transcendência ao autoritarismo. Para aqueles que, inocentemente (ou não), defendem a vigência do sistema misto no atual modelo de processo penal brasileiro, a mudança do status da confissão – antes, “rainha das provas”, agora, prova de valor relativizado que exige corroboração – sinalizaria o fim da tradição medieval. 

Essa visão, contudo, não se sustenta. Como escreve Leonardo Marinho Marques, resquícios da inquisitoriedade como a busca da verdade continuaram presentes na realidade do processo penal neoinquisitório[1]. Portanto, ainda que a confissão tenha deixado de ser a “rainha das provas”, o fetiche da prova penal como meio de revelação da verdade permaneceu.

Mantidos os objetivos, foi necessário apenas adaptar os métodos. Enquanto a confissão foi afastada do papel principal na jornada pela verdade, outro meio de prova se consolidou como instrumento de reconstrução fidedigna dos fatos. Entre os séculos XIV e XX, as perícias - fortalecidas pelos ideais iluministas e constantes revoluções industrial e tecnológica – se consolidaram como o mais robusto dos elementos probatórios

Apesar de recente seu protagonismo sobre as demais provas, a utilização da prova pericial no processo penal remonta ao século XIII, quando os atos de combate – traduzidos pelas ordálias – passaram a ser substituídos por trabalhos intelectuais produzidos por experts, pessoas com vasto conhecimento técnico que funcionavam como instrumentos pensantes do Juiz sobre os assuntos que fugiam de seu domínio[2].

Com a modernidade, o papel do perito foi significativamente alterado. Da atuação voltada para a satisfação das necessidades do Juiz, a prova pericial passou a ser um órgão de saber coletivo, a serviço das partes (que podem requerer diligências, formular quesitos, habilitar assistente técnico, etc.).

Além disso, a decisão judicial deixou de ser atrelada ao conhecimento produzido pelo perito, que passou a ser livremente apreciado pelo Juiz para a formação de sua convicção.  

Todavia, a garantia de legitimidade conferida pela Lei às provas periciais é meramente aparente. E isto porque, apesar de consignar que o julgador não está adstrito ao laudo pericial (artigo 182), o Código de Processo Penal não traçou, concretamente, os requisitos para validação e valoração da prova pericial.

Veja-se um exemplo prático. Em um processo de estupro de vulnerável, diante da compatibilidade entre o DNA do acusado e a amostra de sémen coletada nas roupas intimas da vítima, como deveria agir o juízo?

Pela lógica do Código de Processo Penal, o Juiz não deve – necessariamente – condenar o acusado com base nessa prova, podendo apreciá-la de acordo com a sua convicção. Ao mesmo tempo, o julgador – ao menos em regra - não possui conhecimentos técnicos sobre genética para avaliar, com precisão, se a compatibilidade do sémen é prova absoluta de culpa.

Além disso, o Código de Processo Penal não traça nenhuma condição para a apreciação e recepção dessa espécie de prova. Mais que isso, a legislação sequer considera que a prova pericial – assim como o livre convencimento judicial – estão sujeitos ao subjetivismo.

A realidade, todavia, revela que a influência do subjetivismo está presente em ambas as circunstâncias pericial e judicial.

Pesquisadores do Departamento de Neurociência da Universidade College London demonstraram, a partir de um estudo empírico, que a presença de subjetivismos contamina atividades tipicamente científicas que, inicialmente, não seriam passíveis de influência psicológica[3].

Durante o estudo, especialistas em análise forense de DNA receberam uma amostra de material genético supostamente coletada em uma cena de estupro coletivo.

Os experts foram informados que um homem havia confessado participação no crime e teria identificado os demais criminosos. A amostra de DNA entregue aos peritos deveria confirmar a existência de material genético de um suspeito que negava veementemente sua participação no crime e fora identificado por outro envolvido nos fatos.

Nesse cenário, todos os 17 (dezessete) peritos atestaram a compatibilidade entre o DNA do suspeito identificado pelo colaborador e o material genético colhido na cena do crime.

Posteriormente, os resultados dessa comparação de material genético foram encaminhados para outros 17 (dezessete) experts que desconheciam a história por trás do estudo e as referências sobre o crime para uma nova análise e interpretação.

Destes, apenas um profissional concordou com a compatibilidade entre o DNA recolhido na cena do crime e o DNA do suspeito. Os outros 16 (dezesseis) peritos rechaçaram o resultado anterior e determinaram que o material genético colhido não correspondia ao DNA do suspeito.

A conclusão do trabalho é certeira: os peritos que tiveram acesso ao contexto por trás da amostra de DNA e foram incumbidos de atrelar sua origem ao material genético do suspeito conferiram à prova uma apreciação diferente daqueles que se limitaram a analisar a prova, sem prévio conhecimento sobre seu histórico.

No exercício da atividade jurisdicional, a presença do subjetivismo é igualmente expressiva. Prova disso está no impacto do acesso, pelo Juiz, de informações colhidas durante a fase de investigação extrajudicial.

Professor Catedrático da Ludwig Maximilians Universitä, Bernard Schünemann[4] estruturou uma pesquisa com 58 (cinquenta e oito) juízes criminais e promotores de diversas regiões da Alemanha para avaliar o impacto causado pelo domínio dos elementos do inquérito nas decisões da ação penal dele decorrentes.

Com isso, o autor buscava investigar a tendência apresentada por juízes que têm acesso a investigações colhidas durante o inquérito policial de se apegarem às informações preliminares, tentando confirma-las durante a instrução processual e colocando em dúvida os elementos de prova capazes de contradita-las.

Essa hipótese foi comprovada. Dos resultados obtidos por Schünemann em suas experiências, verifica-se que os Juízes seguem a tendência de acolher a imagem do fato que lhes foi transmitida pelo inquérito policial. Durante a instrução processual, as informações que destoam da imagem preconcebida não são somente menosprezadas, mas sequer percebidas.

Ainda, o autor confirmou o que há muito postulou Franco Cordero: “Certo do ponto se partida, o inquisidor elabora hipóteses dentro de um marco paranoico[5]

E isto porque a pesquisa também evidenciou que as perguntas formuladas pelos Juízes durante a instrução, ao invés de otimizar o processamento de informações, seguem a tendência de confirmar hipóteses previamente concebidas.

Na prática, Schünemann aplicou às decisões judiciais a teoria da dissonância cognitiva – segundo a qual todo ser humano age de modo a conferir equilíbrio ao seu sistema cognitivo e, por isso, desenvolve vínculos consonantes entre seus conhecimentos e suas crenças.

Dessa forma, para reduzir eventuais contradições entre conhecimentos e crenças e restaurar o suposto equilíbrio mental, a dissonância cognitiva gera dois efeitos que refletem, diretamente, no subjetivismo das decisões judiciais.

O primeiro deles é a autoconfirmação das hipóteses, caracterizado quando informações hábeis a corroborar com a tese considerada correta são superestimadas em relação às informações contrárias.

O segundo, compreende a busca seletiva de informações, realizada quando se procura, predominantemente, por elementos que confirmem a tese considerada correta, sejam eles consonantes ou dissonantes (desde que facilmente refutáveis).

Analisados em conjunto, o trabalho realizado por neurocientistas da Universidade College London e a pesquisa promovida por Bernard Schünemann com bases da psicologia cognitiva revelam uma situação complexa: tanto o expert - sujeito que extrai conclusões juridicamente relevantes da prova pericial - quanto o juiz – sujeito que aprecia a prova pericial de acordo com a sua livre convicção – são afetados por subjetivismos.

Evitar a contaminação do perito por subjetivismos demanda independência total. A Lei 12.030/2009, que dispõe sobre perícias oficiais, assegura ao perito autonomia técnica, científica e funcional no exercício da atividade de perícia criminal (artigo 2º).

Todavia, não há que se falar em autonomia sem independência funcional[6]. Enquanto estiverem atreladas institucionalmente às atividades investigatórias da Polícia Judiciária, a parcialidade da prova pericial permanecerá comprometida em face da subordinação organizacional[7].

Com acesso integral às informações coletadas pela Polícia durante a investigação, comprometida a avaliação independente do perito – que também está vinculado à Polícia[8].

Uma perícia independente, portanto, pressupõe a autonomia no exercício da atividade técnica e prescinde de informações detalhadas sobre o contexto do caso. Em se tratando de uma amostra de DNA, por exemplo, o ideal é que a situação fática não interfira na produção do conteúdo científico.

Já no caso dos juízes, o subjetivismo esbarra no exercício retórico do livre convencimento, há muito combatido por Elio Fazzalari[9].

Deixa-se de exigir a valoração da prova, com fundamento em instrumentos e proposições verificadas, para abandonar a decisão ao capricho do agente estatal. Se, para a condenação, a dúvida não é suficiente, basta preencher suas lacunas com a “íntima convicção”.

Fato é que, na tradição processual penal brasileira, neoinquisitorial por excelência, esses subjetivismos são consagrados pela omissão (“um tanto forçada”[10]).

Enquanto o Código de Processo Penal não detém linha sequer sobre a influência da subjetividade na valoração judicial da prova técnica, a legislação que regulamenta o procedimento civil evoluiu a passos (bem mais) largos.

Ciente de que o protagonismo judicial dava lugar a decisões abstratas, que limitavam-se a invocar o livre convencimento para eximirem-se do dever constitucional de fundamentar os provimentos judiciais, o Código de Processo Civil de 2015 substituiu o livre convencimento pelo convencimento motivado[11].

Apesar de não ser novidade no ordenamento jurídico, especialmente considerando que o artigo 93, IX da Constituição da República de 1988 já impunha a fundamentação das decisões judiciais, trata-se de verdadeiro avanço democrático que demonstra a superação do paradigma jurídico-político no qual o Estado era visto como inimigo do cidadão[12].

O avanço, contudo, ainda não atingiu a lei processual penal. Nela, o acusado ainda ocupa a posição de inimigo do Estado, entregando sua liberdade nas mãos daquele que pode julgá-lo com base em opiniões e impressões pessoais, a partir de provas cuja imparcialidade é comprometida pela ausência de autonomia.

Soluções existem. A autonomia dos órgãos de perícia frente às organizações policiais e a necessidade de atrelar a decisão judicial à motivação não são apenas viáveis, como adequadas à processualidade democrática. Aos que não se curvam ao Autoritarismo, cabem os questionamentos e as propostas, além da certeza de que sobre a persecução penal devem prevalecer as garantias individuais.

 

 

 

Notas e Referências

[1] MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Inquisitório versus acusatório: não vamos superar a dualidade sem demarcá-la. Boletim IBRASPP, a. 3, n. 4, p. 16-18, 2013.

[2] CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Bogotá: Temis, 2000. t. 2. p. 118-119.

[3] DROR, Itiel E.; HAMPIKIAN, Greg. Subjectivity and bias in forensic DNA mixture interpretation. Science and Justice, v. 51, n. 4, p. 204-208, 2011.

[4] SCHÜNEMANN, Bernard. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 208.

[5] CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Bogotá: Temis, 2000. t. 1. p. 19.

[6] Nesse sentido, veja-se o Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura, editado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, disponível em: < http://www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/a_pdf/protocolo_br_tortura.pdf>. Acesso em 15 de maio de 2019.

[7] Tramita na Câmara dos Deputados, que propõe a desvinculação da perícia criminal em relação às estruturas da Polícia Judiciária, a partir da alteração do artigo 144 da Constituição da República de 1988 para inserir a perícia criminal como órgão autônomo no rol de das instituições se segurança pública. O inteiro teor do projeto está disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=423899>. Acesso em 15 de maio de 2019.

[8] Vale destacar que a demanda por autonomia funcional está presente nas pautas encabeçadas pelos próprios peritos criminais. Nesse sentido, foi o trabalho de final de curso de Igor Augusto de Oliveira Soares Pereira, intitulado” A desvinculação dos órgãos de perícia criminal da estrutura das polícias civis como medida de maior imparcialidade à prova pericial”, defendido em 2018 como requisito para obtenção da Graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

[9] FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. p. 461.

[10] Referência à letra original da canção Samba de Orly, de Chico Buarque e Toquinho.

[11] Enquanto o artigo 131 do Código de Processo Civil de 1973 consignava que “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”, o artigo 371 do Código de 2015 prevê que “O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.

[12] STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas: O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 52, n. 206, abr./jun. 2015.

 

 

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