Não é de hoje a ideia de utilizar dados estatísticos de jogos e dos jogadores para aumentar não só o desempenho nas partidas, mas também para decidir o futuro dos atletas (para o bem ou para o mal). É comum que clubes, de variados esportes, se utilizem de análise estatística dos jogadores para aumentar a possibilidade de vitórias, diminuir os erros e economizar dinheiro em transferências.
Essa exploração de dados dos jogadores fica muito evidenciada na obra, que mais tarde virou filme (estrelado por Brad Pitt), Moneyball. A história narra como o gerente geral do time de baseboll Oakland Athletics conseguiu, em 2002, fazer com que o time que acabara de perder seus melhores jogadores e sem recursos financeiros, partisse de uma série de derrotas para o recorde de 20 vitórias consecutivas na Liga Americana, confiando nos dados e fazendo análises estatísticas avançadas de seus atletas[1]. O sucesso dessa análise estatística foi tão grande que, a partir de 2006, começou uma onda de instalações de inúmeras câmeras responsáveis pelo rastreamento de cada movimento dos jogadores[2].
A cada partida, rodada ou corrida as empresas responsáveis pela exploração e toda a análise estatística dos dados coletados conseguem não só dizer quantos pontos um jogador marcou, mas também quantos ele deveria ter marcado[3]; quanto ele correu e quanto ele deveria ter corrido; quais as principais falhas do jogador, seus pontos fracos, as variações no seu desempenho e consegue, ainda, fazer previsões de como ele se sairá em jogos futuros, a depender dos adversários.
O baseboll é um exemplo de esporte que mais faz análise de dados pessoais dos jogadores com o objetivo de aumentar o desempenho da equipe, mas não é o único. A exploração também é feita por esportes como vôlei, tênis, fórmula 1, UFC e muitos outros[4]. Atualmente essa análise chama atenção por ser amplamente utilizada em dois queridinhos dos esportes: basquete e futebol.
Seguindo a mesma trajetória de superação dos Oakland Athletics, o time americano de basquete de San Francisco (Golden State Warriors) quebrou uma maratona de 40 anos sem títulos, ganhando 4 temporadas na NBA, graças a mudança de gestão que o time teve que passou a confiar nos dados e análises estatísticas para tomada de decisões. O time foi comprador em 2010 por um grupo de empresários, como o conhecido investidor do Vale do Silício, Joe Lacob, e a história por trás dessa transformação é relatada no livro Betaball: How Silicon Valley and Science Built One of the Greatest Basketball Teams in History.
A nova gestão do Warriors teve como bases fundamentais para a tomada de decisões as análises estatísticas baseada nos dados dos atletas da franquia e da liga de basquete norte-americana como um todo. Estabeleceram, ainda, contrato com grupo de engenheiros responsáveis por analisar e processar todas as filmagens das quadras para mapear os jogadores e ter maior precisão na coleta dos dados. Somado a isto, utilizaram uma ferramenta conhecida como Sports Aptitude para criar perfis de seus jogadores com base em traços de personalidade, medindo critérios comportamentais, como por exemplo “motivação interna” e “potencial de liderança”[5]. Esse conjunto de fatores baseados na confiança em utilizar dados pessoais dos jogadores e análises estatísticas preditivas para melhorar o jogo faz com que esse time de basquete americano seja considerado hoje um dos melhores do mundo.
No futebol, a utilização de dados pessoais para análises estatísticas também se destaca. Com a histórica derrota sofrida pelo Brasil no 7x1 contra a Alemanha, este se tornou um interessante caso para esse estudo. O time alemão se utilizou do enorme banco de dados da empresa SAP para fazer análises estatísticas sobre jogadores, apontando quais os pontos fracos e fortes de cada um, possibilitando que o time construísse suas estratégias de jogo a partir desses dados coletados, levando os alemães a se tornarem os campeões da copa do mundo de 2014[6].
Inspirados pelo sucesso estatístico em outros esportes, o conhecido time de futebol inglês Liverpool, da Premier League, passou a utilizar a ciência dos dados para análises estatísticas em grande proporção, possibilitando que a equipe conseguisse entender com maior precisão como cada movimento feito em campo pode impactar às chances de um gol ser marcado. A abordagem do time inglês envolve a utilização do chamado “comitê de transferência” – grupo de membros, olheiros, gerente e diretor do esporte que utilizam da análise estatística dos dados para escolher suas contratações, demissões e trocas[7].
Não há dúvidas no quanto a análise das informações coletadas sobre os jogadores possibilitou uma revolução nos esportes, permitindo que os clubes montem times cada vez mais fortes e consigam estudar seus adversários como nunca. Talvez a palavra revolução não seja adequada, pois “o esporte é o mesmo, mas a forma de jogá-lo está mudando”[8] com as novas tecnologias de análises disponíveis. Até pouco tempo atrás, essa exploração era feita sem nenhum limite, tanto por olheiros que buscam estrelas, quanto por empresas que analisam e comercializam esses dados para times adversários e até mesmo casas que utilizam as estatísticas para comandar apostas. Mas essa falta de limites na exploração do Big Data nos esportes parece estar com os dias contados.
Algumas questões importantes relacionadas à proteção de dados dos atletas começaram a ser levantadas por seus titulares – os jogadores. Eles demonstram incômodo com a exploração comercial de seus dados pessoais, e os grandes riscos às suas carreiras (análises estatísticas feitas sobre cada um de seus movimentos em todos os jogos). Esse incômodo ficou ainda maior quando se deram conta de que casas de apostas estavam utilizando seus dados estatísticos de desempenho para ganhar dinheiro.
Um dos maiores problemas por trás dessas análises se dá pelo fato de que parte das informações exploradas são dados pessoais sensíveis, ou seja, informações que dizem respeito à saúde do jogador, condições físicas, dados biométricos e genéticos.
Diferentes abordagens podem ser tiradas desta prática cada vez mais comum. O tratamento dos dados estatísticos pelo clube do atleta parece ter fundamento no contrato de trabalho, estritamente para a finalidade esportiva. Será, por outro lado, que esta mesma análise estatística feita por clube adversário encontra base legal adequada?
Neste caso, poder-se-ia falar que o jogador deu seu consentimento à análise estatística dos clubes adversários quando aceitou participar daquele campeonato? O legítimo interesse poderia ser utilizado como fundamento para os clubes tratarem os dados pessoais dos atletas adversários?
O que falar de ligas fantasy, como o Cartola da Globo.com, que se utiliza de estatísticas dos jogadores para explorar uma atividade econômica? Qual é a base legal que permite à Globo tratar os dados pessoais dos atletas de futebol do país?
É possível argumentar que os dados são públicos. Entretanto, ao contrário do RGPD, a legislação brasileira também se aplica aos dados tornados públicos pelo titular, especialmente em relação à necessidade de identificação da base legal.
O Direito de imagem de um atleta, normalmente cedido para o clube o qual ele defende, contempla os dados pessoais de análise estatística? Pode o clube licenciar isso em jogos fantasy e/ou videogames?
De um outro lado, o que esperar das bases de dados utilizadas para definir a carreira de um atleta? Algumas situações simples para compreender o problema: Pelé fez quantos gols? São válidos apenas os jogos oficiais ou qualquer jogo? A mesma ideia pode ser aplicada a outros atletas (Romário, por exemplo). Como os atletas podem mesurar eventuais análises enviesadas que podem acarretar a sua demissão, por exemplo?
Essas questões parecem agora ganhar espaço na Inglaterra e nos EUA, principalmente em face das inúmeras casas de apostas que passaram décadas ganhando dinheiro com base em estatísticas de atletas.
Com o perdão do trocadilho, mas parece que o jogo está para virar: mais de 400 jogadores de futebol (atuais e antigos) das ligas inglesa e escocesa criaram o Project Red Card – Projeto Cartão Vermelho[9]. A intenção do grupo é iniciar uma ação judicial contra as casas de apostas e empresas coletoras de dados que possuem informações sobre os atletas e conseguem lucrar a partir disso, sem que os titulares recebam suas devidas participações nesse ganho.
O representante do projeto, Richard Dutton, se manifestou sobre o assunto dizendo que “A mensagem é simples: para fazer isso, você precisa do consentimento de um jogador, e você não o tem”[10]. O RGPD é muito claro quanto a necessidade de consentimento para que os dados pessoais sejam utilizados, explicando em seu art. 4º o que se entende por consentimento, e em seu art. 6º apresentando que somente será considerado lícita a exploração de dados quando houver o consentimento livre de seu titular. Ainda que sejam dados televisionados, e muitos deles podendo ser acessados e analisados por qualquer pessoa, não deixam de ser dados pessoais.
Por esse motivo os atletas buscam firmar a posição de que os dados pessoais utilizados por casas de apostas, jogos de azar e, de maneira geral, empresas responsáveis pela coleta desses dados não possam explorá-los sem o consentimento. O grupo pretende, com a ação judicial, recuperar o equivalente a 6 anos de exploração indevida[11], a título de indenização.
Muito provavelmente esses são apenas os primeiros passos para uma grande mudança na exploração de dados para análises estatísticas nos esportes. A Lei protege cada vez mais a privacidade e os dados de seus titulares. Até o final de 2019, eram 130 países e territórios independentes no mundo com leis que tutelam a privacidade de dados pessoais, e mais 40 países estão se preparando com projetos de lei ou iniciativas para proteger a privacidade de seus cidadãos[12].
É uma questão de tempo até que a problemática da propriedade dos dados e sua exploração no mundo dos esportes tenha regras específicas; afinal, todos os dados pessoais são importantes e devem ser tutelados. E no caso de consentimento para uso, é direito do titular saber como esses dados estão são tratados e sua finalidade. Os atletas parecem exigir que os lucros decorrentes da exploração econômica de suas informações pessoais sejam partilhados, no que talvez venha alterar bastante a questão do licenciamento de imagem dos atletas e a forma do mercado explorar esses dados pessoais.
Notas e Referências
[1] https://www.eastbaytimes.com/2017/09/13/tip-of-the-hat-to-indians-but-as-streak-always-will-be-unforgettable/
[2] https://operdata.com.br/blog/estatistica-no-esporte/
[3] https://www.wired.co.uk/article/project-red-card-football-data
[4] https://operdata.com.br/blog/estatistica-no-esporte/
[5] https://exame.com/negocios/betaball-o-moneyball-do-basquete-ou-quase-isso/amp/
[6] https://www.cioinsight.com/it-news-trends/germanys-secret-world-cup-weapon-big-data.html
[7] https://www.liverpoolecho.co.uk/sport/football/transfer-news/how-liverpools-transfer-committee-went-16479508
[8] ANDERSON, Chris; SALLY, David. Os números do jogo: por que tudo que você sabe sobre futebol está errado. Editora Paralela: 2013. p. 22, formato eBook Kindle.
[9] https://www.wired.co.uk/article/project-red-card-football-data
[10] https://www.wired.co.uk/article/project-red-card-football-data
[11] https://www.sportspromedia.com/opinion/project-red-card-sports-data-gdpr-premier-league-efl
[12] https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1951416
Imagem Ilustrativa do Post: Illuminated // Foto de: Wendy Cope // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/litratcher/7521315556 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode