Prólogo: Resistência ao poder punitivo¹

29/12/2017

É com enorme satisfação que escrevo o prólogo deste livro intitulado Abolicionismos e cultura libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder, produzido pelos queridos e corajosos amigos Guilherme Moreira Pires e Patrícia Cordeiro. Amigos, em decorrência dos afetos que atravessam nossa relação; corajosos, porque estar em um campo minado pela normatividade jurídica e, sobretudo, nadando contra a maré do punitivismo não é tarefa fácil em uma época tão marcada pela legitimação das mais distintas violências.

Tendo-os como companheiros na luta anarco-abolicionista, presenciei situações que me fazem vê-los não apenas como potências libertárias em suas importantes escolhas políticas, mas como jovens pesquisadores que estão produzindo na América Latina reflexões de vanguarda nesse campo do conhecimento cada vez mais punitivista.

É certo que, diante desses abusos, precisamos nos posicionar: se somos favoráveis a essas brutalidades produzidas tanto pelo Estado Moderno quanto pela economia de mercado por meio de suas estratégias criminalizantes que perpassam as políticas de segurança pública e seu atual hiperencarceramento, ou, contrariamente, se nos colocamos como críticos a esse modelo repressivo que alguns chamam de justiça, visando localizar e abolir opressões decorrentes de ofensivas cada vez mais intensas (sobre aquelas populações mais pauperizadas, através inclusive de questionamentos acerca dessas verdades punitivistas governamentalizadas pela população).

Se afirmar como abolicionista penal (especialmente como anarquista) não é uma empreitada simples para quem atua na área jurídica, campo que disciplina os sujeitos a pensarem de maneira normativa e dentro da caixa positivista, conforme defendem os tributários dos escritos de Hans Kelsen, pois é desde muito cedo que somos governamentalizados e/ou convocados a participar da vida em comunidade compartilhando certo pensamento fundamentado em um raciocínio binário estabelecido a partir das ideias de punição e recompensa.

Não obstante, da mesma forma com que em nossa infância sofremos com o castigo quando causamos algum problema para os nossos pais, quando adultos, também padecemos de certos tipos de sanções quando agimos de maneira não adequada legalmente, que no limite poderá ocorrer por meio da privação de liberdade em uma instituição penitenciária, após passarmos pelas malhas seletivas do sistema de justiça criminal.

Um aspecto que eu gostaria de chamar a atenção acerca do livro ora apresentado, se refere às possibilidades do ledor iniciar sua leitura por qualquer um dos capítulos, tendo em vista que boa parte deles já foi divulgado em formato de artigo pelas redes virtuais (e não possuem uma ordem rígida), potencializando um alcance ainda maior sobre assuntos tão relevantes na esfera de certa linguagem jurídica amparada nas noções de crime, atravessando, portanto, questionamentos, naturalizações e governamentalidades que incidem na produção de verdades resultantes da relação entre certos saberes que intensificam cada vez mais o poder punitivista e seus demais dispositivos.

Os abolicionismos penais são múltiplos. Uns resultam de linhas de fuga, no sentido deleuzeano, que visam racionalizar sobre o crime a partir de distintas escolas criminológicas (ou para além delas) que se colocaram contrárias ao modelo de tratamento dado ao que Louk Hulsman optou por chamar de situação-problema, apresentando, portanto, uma reviravolta no sistema de justiça criminal produzido na modernidade. Assim, em meio a essa grande diversidade interpretativa, podemos encontrar diferentes perspectivas teóricas de autores que muitas vezes apresentam diversificadas ponderações sobre a ideia de punição e formas de privação de liberdade, as quais os abolicionistas libertários direcionarão suas potentes ponderações e críticas.

No entanto, a convergência entre os autores tributários do abolicionismo penal se dá, sobretudo, pela convergência acerca do entendimento de que o crime e o tratamento dado a ele são meras produções sociais e políticas que resultam, na contemporaneidade, em um sistema de justiça criminal que tem como alvo as populações mais pauperizadas das sociedades através da criminalização de suas condutas, propondo, para uns, uma nova tradição da criminologia ou da sociologia do crime, se levarmos em consideração alguns de seus desdobramentos como práticas restaurativas, por exemplo, e para outros, uma espécie de anti-criminologia.

São muitos e variados os exemplos que podemos apresentar sobre a questão da tipificação penal de determinadas condutas como crimes em certos territórios e momentos da história que deixaram de ser tratados como delitos em outras circunstâncias. Como exemplo desse fenômeno, podemos citar as políticas de controle sobre as drogas estabelecidas como ilícitas, que paulatinamente tiveram as suas produções, comércios e consumos criminalizados, com a justificativa de que esses produtos selecionados fariam mal à saúde humana. Dentre as substâncias selecionadas pelas políticas proibicionistas, podemos citar a cannabis, um dos alimentos mais proteicos do mundo e também utilizado há alguns milênios para o tratamento de determinadas enfermidades, conforme mostram diferentes pesquisadores de áreas distintas das mais diversificadas universidades do planeta, enquanto outras dessas mercadorias reconhecidamente mais prejudiciais segundo a comunidade científica, como, por exemplo, o álcool e o tabaco, são amplamente admitidas.

Assim, ao verificarmos que a proibição de certas substâncias psicoativas não está relacionada diretamente com questões referentes à saúde humana, tendo em vista que as políticas proibicionistas selecionaram certos produtos independente dos seus impactos em nossos corpos e mentes, podemos constatar que a restrição da produção, comércio e consumo de drogas se fundamenta em questões de cunho moral, tratando-se, portanto de uma governamentalização das drogas. Outro importante exemplo que podemos utilizar para ponderar sobre as modificações legais em diferentes contextos pode ser encontrado no tratamento dado às relações homossexuais e transsexuais, já que até a segunda metade do século XX, essas condutas eram criminalizadas e/ou patologizadas na grande parte dos países, inclusive no Brasil. Além disso, é importante destacar que a maior parte dos manuais de transtornos mentais contemplava essas questões, tratando-as como doença.

A grande importância dos abolicionismos penais para a compreensão do crime, castigo, violência, punição, etc. se dá, sobretudo, porque algumas das práticas, como a justiça restaurativa, que nasceram com os autores tributários dessa vertente, por exemplo, passaram a serem acionadas não somente por agências internacionais como a Organização das Nações Unidas – ONU[2], como também passaram a estar presente na agenda de associações de profissionais da área jurídica, conforme ocorreu com a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB[3]. Contudo, embora haja certo embate entre essas distintas tradições, uma vez que parte dos tributários dos escritos de Louk Hulsman se colocam contrários à justiça restaurativa por não alterar a estrutura punitiva com que opera o sistema de justiça criminal, há também aqueles que defendem essa abordagem por acreditar que ao menos, ela minimiza os impactos desse sistema penal moderno tão violento e encarcerador.

O livro dos queridos amigos Guilherme Moreira Pires e Patrícia Cordeiro traz importantes ponderações sobre os mais distintos assuntos que atravessam não só o abolicionismo penal e o anarquismo de modo geral, mas também o pensamento libertário.

Saúdo a leitura desse trabalho tão potente e necessário em dias tão sombrios.

 

[1] ROSA, Pablo Ornelas. Prólogo: Resistência ao poder punitivo. In: CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

[2] Site http://www.justica21.org.br/j21.php?id=366&pg=0#.VrhwQjYrLsE, acessado no dia 20 de outubro de 2016.

[3] Site http://www.amb.com.br/novo/?p=18828, acessado no dia 20 de outubro de 2016.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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