PROIBIÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E O DECRETO Nº 9.546/2018: A PROTEÇÃO JURÍDICA VIGENTE E AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA  

14/11/2018

 

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

            No dia 31 de outubro de 2018, foi publicado no Diário Oficial o Decreto nº 9.546/2018 que, nos termos da referida legislação, “altera o Decreto nº 9.508, de 24 de setembro de 2018, para excluir a previsão de adaptação das provas físicas para candidatos com deficiência e estabelecer que os critérios de aprovação dessas provas poderão seguir os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos”. Considerando toda a construção histórica alcançada em matéria de proteção e inclusão às pessoas com deficiência (especialmente por intermédio da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realizada em Nova York e do Estatuto da Pessoa com Deficiência), algumas ponderações críticas ao referido Decreto se fazem necessárias.

            A norma recentemente publicada autoriza, desde logo (dada sua entrada em vigor após a publicação), que “os critérios de aprovação nas provas físicas para os candidatos com deficiência, inclusive durante o curso de formação, se houver, e no estágio probatório ou no período de experiência, poderão ser os mesmos critérios aplicados aos demais candidatos, conforme previsto no edital.” Ou seja, a partir de agora, ao menos no que se refere aos cargos da Administração Pública Federal, é possível que, no âmbito das atividades físicas, as pessoas com deficiência tenham que realizar as mesmas atividades em relação aos candidatos que não tenham qualquer deficiência.

            Ora, de plano, já podemos constatar uma flagrante violação ao que dispõe o art. 3º, IV da Constituição Federal que diz ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Além disso, o próprio conceito de igualdade (não só formal, mas sobretudo, neste caso, também material) previsto no art. 5º, caput da Constituição também sofre direta violação.

            No plano dogmático, uma importante corrente doutrinária tem sido bastante referenciada como escopo de proteção a direitos sociais e fundamentais conquistados ao longo da história, sustentando a importância de que, uma vez alcançados à luz de certo ordenamento constitucional, tais direitos não podem ser banidos do referido sistema jurídico. Trata-se da chamada vedação ou proibição ao retrocesso social. Tal premissa parte, em uma análise preliminar, da noção de que as Constituições programáticas (como a brasileira) possuem, como um dos pilares, a ideia de promessa de resgate da modernidade tardia como fenômeno de concretização de direitos sociais em face de direitos de cunho meramente liberais e individuais (como o direito de liberdade e propriedade).

            Neste plano de ideias, fala-se na necessidade de que aos Poderes Legislativo e Executivo não seja dada a tarefa de empenhar-se tão somente em suas atribuições constitucionais básicas, mas, em contrapartida, deverão traçar um plano de atuação pautado pela concretização e busca da plena efetivação progressiva de direitos fundamentais e sociais. Tal cenário é perfeitamente verificável em países como o nosso, em que se adotou um modelo de constituição dirigente.

            Um dos principais defensores e expositores do tema, José Joaquim Gomes Canotilho[1], com bastante clareza nos afirma, a respeito da proibição do retrocesso social, que “os direitos sociais e económicos (...), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo” e conclui dizendo que tal princípio “limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.:segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima, inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.”

            A partir destes premissas elaboradas pelo douto jurista português, afirma-se que, umas vez incorporados tais direitos no plano infraconstitucional por atuação do legislador, estes passam a integrar o patrimônio social do cidadão, sendo que eventual revogação/aniquilação de tais direitos constitui violação à própria proteção dedicada à dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da proteção da confiança do cidadão[2].

            Ainda nesta ótica, o ilustre Ministro Luís Roberto Barroso nos aponta que acaso um direito seja implementado no sistema jurídico a partir de certo mandamento constitucional, ele será incorporado ao “patrimônio jurídico da cidadania”, de modo que, assim, não será cabível sua supressão de forma arbitrária. Por fim, conclui o autor dizendo que acaso uma lei posterior seja responsável por extinguir um direito ou garantia (especialmente de cunho social), estar-se-ia abolindo um direito conquistado pela própria Constituição.[3]

            Merece destaque, ainda, as importantes considerações sobre o tema tão bem elaboradas pela professora Ana Paula de Barcellos. Segundo a autora, “o legislador está vinculado aos propósitos da Constituição, externados principalmente por meio de seus princípios, não podendo dispor de forma contrária ao que determinam”[4].

            Em nosso texto constitucional, temos duas importantes previsões que impõe ao Legislativo e aos próprios Entes Federativos a adoção de medidas em relação às pessoas com deficiência. A primeira delas é extraída por meio do art. 23, II da CRFB/88 que diz ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. A segunda é prevista por meio do art. 24, XIV que estabelece a competência comum entre tais Entes Federativos para legislar sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência.

            No plano infraconstitucional, estas normas de proteção foram materializadas por intermédio Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/15), a qual, nos termos do art. 1º, objetiva assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Em que pese a já existência da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realizada em Nova York (aprovada em nosso país por meio do Decreto Legislativo nº 186/2008 e promulgada por através do Decreto nº 6.949/2009) que, inclusive, possui status de norma constitucional por ter sido incorporada pela regra do art. 5º, § 3º da CRFB/88, muito pouco se discutiu no Brasil acerca da efetividade de proteção e inclusão às pessoas com deficiência. Tal cenário sofreu profundas modificações após a Lei nº 13.146/15, uma vez que, ao influir diretamente nas regras da capacidade civil e exercício de vários direitos por tais pessoas, uma atenção de viés mais acadêmico foi necessária.

            O próprio Estatuto, que concretizou o comando constitucional do art. 24, XIV da CRFB/88, estabeleceu, de modo inequívoco, que “toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” (art. 4º) e, mais adiante, aponta que “considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas” (art. 4º, § único). Ora, tais normas, por si só, já nos levam a crer que as regras estabelecidas por intermédio do Decreto nº 9.546/2018 no sentido de ser permitida igualdade de tratamento no âmbito das provas físicas para os que possuem ou não qualquer tipo de deficiência são manifestamente ilegítimas. É evidente que, conforme a deficiência que se tenha em análise, haverá nítido impedimento de concretizar a possibilidade de acesso ao cargo público almejado por determinada pessoa.

            Defendendo a ilegitimidade de tal Decreto, já se posicionou a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos[5] (AMPID) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão[6] (PFDC).

            Importante, ainda, mencionar que o conceito de deficiência desde a Convenção de Nova York recebeu uma nova leitura: afastou-se de um critério médico para adotar um critério social de deficiência. Por isso, na atual ótica, deve-se procurar se há determinada barreira que, em uma determinada atuação por certa pessoa, a impeça de desfrutar de uma situação de igualdade com as demais. Estas barreiras podem ser dos mais variados aspectos como sociais, ambientais, arquitetônicos, etc. Por isso, para que seja concluída pela presença de deficiência, exige-se, além de uma constatação médica, uma verificação de ordem social.

A partir disso, afirma-se, com bastante propriedade, que o Estado não mais deverá tão somente regulamentar eventual tratamento de saúde dedicado a tais pessoas ou mesmo estabelecer normas assistencialistas, mas deverá, de outro lado, atuar no sentido de eliminar tais barreiras “com o objetivo de adequadamente incluir as pessoas com deficiência e lhes oferecer as mesmas oportunidades que são gozadas pelas demais pessoas, em igualdade de condições”[7]. Nesta ótica, temos que o Estatuto representou importantes avanços em matéria de inclusão destinada às pessoas com deficiência, os quais, todavia, foram consideravelmente prejudicados pelo Decreto aqui contestado.

            Diante da análise aqui efetuada, principalmente considerando a contrariedade entre o Decreto nº 9.546/2018 e as normas estabelecidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) – que materializou um comando constitucional –, concluímos pela ilegalidade do referido Decreto e esperamos que, tão logo seja instado a se pronunciar, possa o Poder Judiciário declarar a invalidade de tal ato normativo.

 

 

Notas e Referências

[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 1ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

[2] SOARES, Dilmanoel de Araújo. Direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso social. Tese (mestrado) - Centro Universitário de Brasília (UNICEUB), 2010. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/190963/>. Acesso em 11 de novembro de 2018.

[3] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8ª ed., Rio de Janeiro. Renovar, 2006.

[4] BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

[5]<http://www.ampid.org.br/v1/nota-contra-as-alteracoes-do-decreto-9-546-2018-que-restabelece-compatibilidade-de-funcoes-e-deficiencia-aptidao-plena-do-candidato-para-concursos-publicos/>. Acesso em 11 de novembro de 2018.

[6]<http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/decreto-que-exclui-adaptacao-de-provas-fisicas-para-candidatos-com-deficiencia-viola-a-constituicao-defende-pfdc/>. Acesso em 11 de novembro de 2018.

[7] ARAUJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. A efetividade (ou a falta de efetividade) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. In Ministério público, sociedade e a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência / André de Carvalho Ramos ... [et al.]; Eugênia Augusta Gonzaga,

Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros (organizadores). – Brasília: ESMPU, 2018. Disponível em <http://escola.mpu.mp.br/publicacoes/obras-avulsas/e-books/ministerio-publico-sociedade-e-a-lei-brasileira-de-inclusao-da-pessoa-com-deficiencia/>. Acesso em 11 de novembro de 2018.

 

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