A Constituição de 1988, dentre as diversas regras de natureza tributária, previu a denominada pessoalidade dos impostos.
Conforme dispõe o parágrafo primeiro do art. 145, “[…] Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".
A regra em questão não foi uma novidade do atual Texto Constitucional. Previsão semelhante já existia na Constituição de 1946.[1]
Mesmo com a revogação do art. 202 da Constituição de 1946 por meio da Emenda Constitucional nº 18[2], de 1965 e ausência de previsão similar nas Constituições de 1967 e 1969, a doutrina à época defendia que a pessoalidade se mantinha como característica dos tributos. A noção de pessoalidade, calcada na própria igualdade tributária, era tida como premissa da própria atividade tributária.
Aliomar Baleeiro afirmava que "Embora revogado aquele dispositivo pela Emenda nº 18/1965, parece-nos que ele permanece subjacente na Constituição Federal de 1969, que adota um regime democrático, assegura que todos são iguais e declara que “a especificação de direitos e garantias expressas não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime dos princípios que ela adota”.[3]
Esse entendimento se manteve até os dias de hoje, tanto que Luciano Amaro também reconhece que a pessoalidade, com status de princípio, permanece implícito no Sistema Tributário Nacional.[4]
O parágrafo primeiro do art. 145 da Constituição atual também prevê um outro princípio, o da capacidade contributiva, tema que encerra uma complexidade tamanha que possibilitaria uma discussão à parte.
Interessa, ao menos para a abordagem aqui proposta, uma breve noção acerca desse princípio.
A capacidade contributiva, como ensina Francesco Moschetti[5], é a capacidade econômica qualificada pelo dever de solidariedade para com o custeio das despesas públicas. O legislador elege determinados fatos que, por traduzirem certa condição econômica mínima, possibilita impor àquele que o praticou o dever de colaborar na formação da receita pública.
A Constituição atual restringiu a capacidade contributiva aos impostos, de modo diverso do que havia sido previsto na Carta de 1946, que estendia a todos os tributos.
Ao que parece, tal restrição não impediu o Poder Judiciário de fazer uso desse princípio como fundamento em algumas discussões envolvendo, por exemplo, a Contribuição para Custeio dos Serviços de Iluminação Pública[6], taxas em razão do poder de polícia[7] ou mesmo multas fiscais[8].
Uma das primeiras discussões de maior destaque acerca da pessoalidade dos impostos e da capacidade contributiva, durante a vigência da Constituição de 1988, surgiu por conta do embate de diversos contribuintes com as Fazendas Municipais. Isso porque, alguns desses entes federados instituíram alíquotas progressivas para o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
O debate que se instalou junto ao Poder Judiciário foi exatamente o narrado acima, se a norma constitucional da pessoalidade, no caso, o art. 145, §1º, serviria de fundamento para a progressividade do IPTU, pois no art. 156 não havia previsão nesse sentido.
A resposta que adveio do Supremo Tribunal Federal foi negativa. Os precedentes formados em 1997, reafirmados em julgamentos posteriores e consolidados em súmula (de nº 668), assentaram que a progressividade fiscal para o IPTU dependia da existência de norma constitucional explícita. A razão dessa conclusão deveu-se por conta de que “[…] sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real, que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (especifico)".
A única progressividade possível para o Imposto seria aquela que consta do art. 182, §4º, da CF/88, de natureza extrafiscal, cuja finalidade é garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana. A progressividade, portanto, caracterizaria apenas uma forma de estímulo - para não dizer coerção - para que o proprietário adeque seu imóvel às normas de caráter urbanístico.
O STF passou a reconhecer a constitucionalidade apenas para as leis municipais que foram editadas após a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, pois esta alterou o art. 156 de modo a prever expressamente a técnica de tributação em questão.[9]
De forma contemporânea à discussão inerente ao IPTU, outra celeuma também transitava pelos Tribunais. Alguns municípios modificaram suas respectivas legislações para instituir alíquotas progressivas também para Imposto sobre a Transmissão de Bens Inter Vivos (ITBI).
O STF, mantendo a lógica do entendimento firmado em relação ao IPTU, entendeu que a progressividade fiscal demandava autorização constitucional explícita, conclusão essa que assumiu significativa estabilidade na Corte, havendo, inclusive, a edição de Súmula (de nº 656), aprovada na mesma sessão que a Súmula nº 668.
A capacidade contributiva, no caso, seria observada mediante a tributação proporcional ao preço de venda[10]. As condições pessoais do sujeito passivo seriam irrelevantes do ponto de vista tributário.
Ocorre que tempos depois o STF veio a adotar entendimento completamente diverso em relação ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando do julgamento do Recurso Extraordinário 562.045[11].
Invocando os princípios da igualdade material tributária e da capacidade contributiva, admitiu a Suprema Corte que o disposto no art. 145, §1º, da Constituição Federal, constitui fundamento válido para a adoção de alíquotas progressivas.
Adiante, nova controvérsia foi submetida à apreciação do STF, mas dessa vez, o protagonista era o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, de competência da União Federal. Entendeu o STF que a progressividade seria válida.
E aqui há um aspecto que merece destaque: a discussão relacionada ao ITR muito se assemelhava a do IPTU, pelo fato de que ambos os impostos receberam autorização constitucional para serem progressivos por Emenda Constitucional. Na redação original da Carta Magna, nos respectivos dispositivos, nada constava sobre progressividade.
Mas, diferentemente do que foi decidido em relação ao IPTU, entendeu o STF que a progressividade para o ITR, mesmo antes da Emenda Constitucional nº 42/2003, era possível, pois "Nos termos do art. 145, § 1º, da CF, todos os impostos, independentemente de seu caráter real ou pessoal, devem guardar relação com a capacidade contributiva do sujeito passivo e, tratando-se de impostos diretos, será legítima a adoção de alíquotas progressivas”.[12] Esse entendimento é diametralmente oposto ao que fora manifestado antes em relação ao IPTU e ao ITBI.
Analisando essas duas vertentes, parece mais adequado prevalecer o entendimento tomado para o ITCMD e para o ITR.
A pessoalidade é característica dos impostos. Fazendo uma leitura inversa do parágrafo primeiro do art. 145, os impostos sempre devem levar em conta as características pessoais do sujeito passivo, salvo quando, em caráter excepcional, isso for impossível. E o elemento dosador dessa gradação é a capacidade contributiva. Com efeito, se a pessoalidade é característica e a capacidade contributiva é o balizador, uma das técnicas para a efetivação dessa característica é a progressividade. A legitimação da progressividade, por conseguinte, estaria no próprio art. 145, §1º, da Constituição.
E isso, independentemente de o imposto ser classificado como real ou pessoal, distinção que do ponto de vista econômico pouca relevância assume, pois a relação jurídica tributária sempre tem como sujeito passivo uma pessoa, física ou jurídica. Quem paga o imposto é a pessoa, não o próprio bem cujo direito de propriedade enseja tributação. A impossibilidade, prevista na Constituição, como exceção à pessoalidade, é mais operacional que jurídica.
A doutrina já vinha se inclinando para essa linha de conclusão. Luciano Amaro, por exemplo, sustentou que “[…] os impostos reais (que consideram, objetivamente, a situação material, sem levar em conta as condições do indivíduo que se liga a essa situação) também devem ser informados pelo princípio da capacidade contributiva, que é postulado universal de justiça fiscal”.[13]
No que se refere ao IPTU e ao ITR, não há razão para tratamento díspar, haja vista que suas hipóteses de incidência tem um núcleo comum, que é o direito de propriedade.
Por outro lado, nada justifica a diferença de tratamento entre o ITCMD e o ITBI. O campo de incidência de ambos possui um elemento central que é a transmissão da propriedade, variando apenas, além da competência tributária, o tipo de bem, a forma de transmissão e a existência ou não de onerosidade. Aliás, num enfoque econômico, mais sentido haveria em admitir a progressividade para o ITBI, exatamente porque sua incidência demanda o elemento da onerosidade, o que significa uma movimentação econômica bilateral, maior do que ocorre nos eventos que ensejam a tributação pelo ITCMD.
Tudo isso evidencia a necessidade de que a discussão atinente ao ITBI seja revisitada pelo STF, à luz dos recentes posicionamentos acerca da pessoalidade dos impostos reais e da progressividade, de modo a uniformizar esses entendimentos conflitantes. A certeza acerca dos limites da atividade tributária é pressuposto essencial para garantir segurança jurídica não apenas para aqueles que realizam operações como as sujeitas à incidência do ITBI, mas também para o próprio Poder Público.
Notas e Referências:
[1] CF/1946: Art 202 - Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao46.htm)
[2] EC 18/65: Art. 25. Ressalvado o disposto no artigo 26 e seus parágrafos, ficam revogados ou substituídos pelas disposições desta Emenda o art. 15 e seus parágrafos, o art. 21, o § 4º do art. 26, o art. 27, o art. 29 e seu parágrafo único, os de ns. I e II do art. 30 e seu parágrafo único o art. 32, o § 34 do art. 141, o art. 202 e o art. 203 da Constituição, o art. 5º da Emenda Constitucional nº 3, a Emenda Constitucional nº 5 e os arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 10. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc18-65.htm)
[3] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Forense. 1997, p. 687
[4] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva. 2006, p. 138
[5] MOSCHETTI, Francesco. El princípio da capacidad contributiva. Instituto de Estudios Fiscales. 1980, p. 279.
[6] STF, RE 573675, relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 25/03/2009, REPERCUSSÃO GERAL
[7] STF, RE 216259 AgR, relator Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 09/05/2000
[8] SRF, RE 239964, relatora Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 15/04/2003
[9] STF, RE 423768, relator Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2010
[10] STF, RE 227033, relator Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 10/08/1999
[11] Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, relatora p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/2013
[12] STF, RE 720945 AgR, relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 09/09/2014
[13] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva. 2006, p. 140
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