Programa Brasileiro sobre Reforma Processual Penal (CEJA) – Curitiba/2018: algumas impressões

27/05/2018

Entre os dias 23 a 26 de abril de 2018, foi ministrado em Curitiba/PR o Programa Brasileiro sobre Reforma Processual Penal, promovido pelo CEJA (Centro de Estudios de Justicia de las Américas). O programa visa apresentar um panorama próprio sobre a necessária reforma processual, tratando-se de um novo paradigma, calcado firmemente no sistema acusatório, que busca superar a máculas presentes no campo processual penal. Reformas pontuais não são suficientes. Uma mudança ampla é necessária, incluindo aí todos os aspectos pertinentes à reformulação do sistema. O primeiro passo talvez seja a mudança cultural, pois de nada adianta uma reforma completa legislativa se os “aplicadores” da lei mantiverem a mesma mentalidade de outrora. E talvez seja esse o ponto mais importante destacada e trazido pelo curso: além de preparar os alunos com conhecimentos específicos sobre o trilhar das reformas processuais nos países da América Latina, com destaque para o Chile, há uma ênfase na necessidade de mudança cultural prévia para que uma futura reforma no cenário brasileiro seja possível. Eis o grande êxito do CEJA.

Considerando isso, destacamos aqui alguns dos principais pontos que foram transmitidos na 2ª edição do curso ministrado no Brasil (tendo em vista que há também a edição que ocorre no Chile), tendo esses articulistas participado da fase de Curitiba/PR.

No primeiro dia (23/04), na parte da manhã, após as boas-vindas dadas aos alunos do curso, o presidente do Observatório da Mentalidade Inquisitória, professor Marco Aurélio Nunes, destacou que dentre os vários países da América Latina, somente o Brasil não fez uma reforma processual direcionada ao sistema acusatório. Sempre acostumado a olhar para o modelo europeu de processo penal sobretudo o italiano, o Brasil por muito tempo não se deu conta das reformas na América Latina. Mas ainda há tempo: podemos e devemos olhar para aqui.

Na sequência, o diretor de capacitação do Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA), Leonel González, expôs o primeiro módulo do curso: “Panorama geral da reforma da justiça penal na América Latina e principais aspectos e características de um sistema penal adversarial”, quando passou a responder a seguinte indagação: Por que é necessário falar sobre a reforma processual no Brasil? O professor Leonel expôs que o Brasil é o único país da América Latina que possui um sistema inquisitivo flexibilizado. Os demais países têm um sistema acusatória que já está sancionado, ou que pelo menos está em andamento. A dificuldade para implementar uma reforma ampla em todos os países da América Latina é reconhecida. Naqueles em que isso ocorreu, essa não se deu de maneira pacífica – com a destacada exceção do Chile, uma vez que tal país contou com acordo político, verba desatinada para tanto e ainda a contemplação do interesse efetivo pela mudança dos envolvidos com o processo. O ponto central de tudo, para que uma reforma seja possível, é a mudança cultural. Para ilustrar essa questão, Leonel expôs as etapas da reforma na América Latina: 1-transição para a democracia (anos 80 e 90), estabelecendo-se a oralidade e com a divisão de funções entre acusar e julgar; 2-fortalecimento do sistema e novas demandas, dando-se através da constatação da necessidade de planejar a implementação (Chile, Peru e México, por exemplo) e com o descobrimento da função política de gestão (Chile, Argentina e Guatemala, por exemplo). Por fim, o Direito do CEJA apresentou aquelas que seriam as 5 principais características do sistema adversarial: 1-oralidade e processo por audiências; 2-papel do juiz (subordinação à lei); 3-nova relação entre promotores e policiais; 4-novo conceito processual e organizacional das Defensorias; 5-política reducionista da prisão preventiva.

O módulo seguinte, “Estado de situação da reforma processual penal no Brasil”, contou como expositor o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que abordou o conjunto das reformas parciais do processo penal brasileiro. O principal aspecto abordado foi a orientação das reformas parciais para uma americanização do processo, à brasileira, pela importação de um conjunto de institutos pensados para um sistema acusatório e transplantados para o nosso sistema inquisitório. O objetivo dessas reformas é sempre atingir a máxima eficiência, como medidas neoliberais que são, confundindo velocidade com qualidade. No curso ficou evidente que a mudança do sistema favorece à razoável duração do processo, mas o preço para isso não pode ser a perda dos direitos e garantias dos acusados. Sem uma mudança total, uma substituição do sistema inquisitório pelo sistema acusatório, as mudanças não funcionam e nem poderão funcionar. Essa percepção perpassa toda a obra do professor Jacinto desde que fez o doutorado na Università degli Studi di Roma – La Sapienza, no período de 1986 a 1988.

O período da tarde, ainda do mesmo dia, contou com o professor Diogo Malan expondo sobre “oralidade e devido processo penal”. Na ocasião, Malan conceituou a oralidade como sendo o modelo que adota uma forma verbal na comunicação entre os agentes atuantes no processo, não se tratando, portanto, de uma mera técnica processual, uma vez que ela assegura as garantias mais basilares no processo penal, amparando-se aqui também nas lições de Ferrajoli. O professor Diogo ainda apontou para três tipos de dificuldades existentes para a implementação do juízo oral no processo penal brasileiro, sendo uma de ordem normativa, outra de ordem corporativa e a terceira de ordem cultural. Na sequência, a professor Paula Ballesteros ministrou o módulo “a organização dos tribunais e a gestão judicial”, apresentando aos alunos as etapas procedimentais que devem existir num modelo ideal de processo: audiência de cautelares, audiência de formalização, audiência intermediária e audiência de juízo oral. Haveria ainda a possibilidade de uma audiência de multipropósitos.

No segundo dia do curso (24/04), o professor Fauzi Hassan Choukr expôs o quinto módulo do programa: “funções e gestão do Ministério Público em um sistema adversarial. Relação do Ministério Público com as polícias”. De modo crítico, apresentou-se a situação brasileira atual do Ministério Público, tratando-se de um modelo marcado pela conflituosidade institucional, pluralidade de modelos investigativos e baixa produtividade da investigação. Fauzi destacou não ser possível, no cenário brasileiro, ocorrer uma mudança estrutural da investigação. O formato das polícias e a condução da investigação se dá de maneira peculiar, algo que só existe no Brasil – e isso estaria arraigado aqui. O que caberia, assim, seria harmonizar a investigação ao considerar a sua forma. Ainda na parte da manhã, Leonel González trabalhou com alunos algumas questões referentes ao Ministério Público, a fim de se constatar a perspectiva que os presentem possuíam sobre o papel do Ministério Público. Por exemplo, ao indagar com a pergunta “O Ministério Público deve...?”, as respostas se deram da seguinte forma: prevenir conflitos = 8%; dissuadir conflitos = 8%; reagir a conflitos = 23%;  todas as anteriores = 54%; nenhuma das anteriores = 8%.

No período da tarde do segundo dia, a professora Camilin Poli apresentou alguns números referentes à audiência de custódia no Brasil no módulo “Situação da prisão preventiva na América Latina e no Brasil. As audiências de custódia” no qual foram analisados os resultados da implantação das audiências de custódia no Brasil, naqueles locais em que são realizadas. De 1990 a 2016, a população carcerária brasileira aumentou de 90.000 para 726.700 presos, o que nos rendeu a terceira maior população carcerária do mundo. Desses presos, 40% estavam presos provisoriamente, 6% condenados a cumprir pena em regime aberto, 15% condenados a cumprir pena em regime semiaberto e 38% condenados a cumprir pena em regime fechado. A audiência de custódia, planejada para apresentar o preso e tornar a prisão provisória uma exceção, também é um instituto do sistema acusatório. O resultado das 229.634 audiências de custódia realizadas até abril de 2017, foi 45,15% de liberdade assegurada (um acréscimo de 5,15% se considerados os 40% de presos provisórios até 2016), 54,85% de conversões das prisões em flagrante em prisões preventivas, 4,81% de alegações de violência policial e 10,77% de encaminhamentos para assistência social. Em pesquisa empírica, foi constatado que o preso permaneceu algemado em 81% das audiências, os policiais permaneceram na sala de audiência em 86,2%, o juiz explicou a finalidade da audiência em 72,5%, explicou sobre o direito ao silêncio em somente 48,3% e somente em 60% dos casos o juiz pediu para somente falar sobre o ato da prisão. Em sequência, a professora Paula Ballesteros, trouxe aos presentes a estrutura e o modelo de audiência cautelar/custódia em sintonia com o sistema adversarial. Ao final do dia, participaram todos de uma atividade em grupo – simulação de audiência de custódia.

No terceiro dia (25/04), Paula Ballesteros fez a exposição de mais um módulo, “organização da defesa e o papel do Defensor Público. Parâmetros da defesa penal efetiva”, abordando a mudança de paradigmas de defensorias públicas antes das reformas processuais para os modelos atuais. As características centrais dos modelos anteriores eram a função acessória desempenhada no processo por defensores que desempenhavam papel meramente formal, a subordinação a outras instituições como o Judiciário, a escassez ou ausência de recursos para custear as atividades que, por vezes, eram voluntárias, a inexistência ou baixa qualidade de mecanismos de controle da atividade de defesa pública e a burocratização do serviço. Os modelos atuais pós-reformas estão centrados no desempenho de uma função efetiva de defesa, subordinada aos interesses dos clientes, com recursos, embora nunca suficientes, sistemas de controle de qualidade do trabalho formados por ouvidorias e corregedorias e trabalho menos burocratizado.

No período da tarde do mesmo dia, após o professor Marco Aurélio Nunes explanar sobre o Observatório da Mentalidade Inquisitória, Leonel González apresentou o oitavo módulo do programa, “o lugar da capacitação em um sistema reformado”, onde dialogou sobre os desafios da capacitação para a reforma processual penal, abordando diversos aspectos pedagógicos. O dia terminou com o estudo do caso “Halloun e Hestenes”. 

No quarto e último dia do programa, o módulo final foi apresentado pelo professor Maurício Zanoide de Moraes, “Principais pontos do projeto de reforma do Novo Código de Processo Penal (NCPP) brasileiro”. A exposição foi realizada a partir da comparação entre o anteprojeto do novo CPP, transformado em PLS nº 156/09, elaborado pela comissão de juristas, dentre os quais estava o professor Jacinto, a versão final do anteprojeto aprovada e convertida em PL nº 8.045/10 e o substitutivo apresentado em 11 de abril de 2018 pelo deputado João Campos, relator do PL nº 8.045/10. Dentre os principais aspectos abordados estão algumas alterações constantes no substitutivo: 1 - o art. 4º foi alterado para impedir a produção de “provas” (sic) a favor do investigado mas contrariando o art. 175; 2- o art. 351 permite a condenação do acusado na fase preliminar do processo, sem manda-lo para julgamento pelo júri; 3- o art. 351 também permite que o juiz condene mesmo que o acusador peça absolvição, exceto se houver assistente de acusação e o assistente também pedir a absolvição; 4 - o art. 11 garante sigilo dos atos de investigação em andamento e permite que o delegado deixe de juntar ao inquérito; 5 - o § 5º do art. 13 permite que a autoridade policial decida se juntará aos autos do inquérito os elementos de investigação requeridos pela defesa; 6 - a parte civil do processo penal foi retirada do substitutivo, mas, no art. 442, IV, foi mantida a necessidade de fixar valor mínimo da indenização o qual não será requerido na denúncia ou queixa; 7 - a ação penal de iniciativa privada foi incluída novamente, depois de só ter sido mantida no anteprojeto na modalidade subsidiária, prevista no art. 5º, LIX, da Constituição; 8 - o inquérito policial foi resgatado; 9 - o art. 168, I, garante o máximo aproveitamento de todos os atos processuais, colocando fim às nulidades absolutas; 10 - o art. 175 converteu o sistema em inquisitório ao atribuir a gestão da prova também ao juiz; 11 - o art. 178 ressuscitou o livre convencimento; 12 - o art. 178, § 1º, permite a condenação com base em indícios; 13 - o art. 265 permite interceptação telefônica por prazo indeterminável nos crimes permanentes; 14 - os art. 102 a 104, que regulam os direitos da vítima, refletem a mentalidade individualista que orienta o substitutivo. A fala de encerramento ficou a cago de Leonel González, finalizando o programa com as informações sobre a etapa no Chile, onde será possível conhecer o processo penal chileno implementado progressivamente no país desde o ano 2000. Na etapa chilena serão estudados aspectos teóricos, simulados aspectos práticos e serão visitadas as instituições que compõem o sistema criminal chileno, na cidade de Santiago. 

Ao término do curso, no mesmo dia, teve início o V Congresso Internacional do Observatório da Mentalidade Inquisitória em homenagem ao professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. O congresso contou com a presença dos principais processualistas penais do país, embora nem todos tenham conseguido estar presentes. Para além das lições de direito processo penal, foi possível aprender a importância de ser professor, com a homenagem do professor Jacinto ao professor Antônio Acir Breda. À época em que o professor Jacinto estava na graduação, incomodado com a insuficiência da lide para o processo penal, foi incentivado pelo professor Breda a estudar o tema no mestrado, contrariando todos os defensores da teoria monista do processo. Também aprendemos a importância de nutrir as amizades, com todas as emocionantes homenagens feitas ao professor Jacinto. Sem dúvida, esse evento deixou em todos nós uma marca que nos acompanhará para o resto de nossas existências.

Longe de buscar abarcar todo o profundo conteúdo que foi apresentado e debatido no curso, a pretensão com o presente texto foi a de expor minimamente um pouco daquilo que o CEJA proporciona, lançando luz ao necessário debate sobre a reforma processual penal, permitindo-nos compreender os motivos para a reforma a partir de uma visão das consequências positivas e negativas da reforma, mas sempre deixando claro a importância de um câmbio de mentalidade. Daí surgiu a brilhante e imprescindível ideia de criar um Observatório da Mentalidade Inquisitória, do qual estão a frente os professores Marco Aurélio Nunes da Silveira, Leonardo Costa de Paula, Camilin Marcie de Poli e Giovani Frazão Della Villa e que tem como presidente de honra o professor Jacinto 

 

 

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