PROFESSOR DA UERJ APRESENTA PARECER TÉCNICO-PSICANALÍTICO SOBRE A SENTENÇA DE CONDENAÇÃO DO EX-PRESIDENTE LULA

17/01/2018

Professor titular da UERJ apresenta parecer em que analisa a controvertida sentença de condenação do ex-presidente Lula. Depois de filósofos apontarem falácias e erros lógicos na sentença, parece que a lente psicanalítica também desvela desvios, lapsos e comprometimentos da imparcialidade na sentença que será analisada pelo TRF 4.

Confira o parecer:

Trata-se, no presente Documento, de um Parecer fundamentado em uma leitura marcada por um modo peculiar de atenção ao que se enuncia no Ato de Sentença de Condenação de cinco acusados, entre eles o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, por parte do Juiz Sergio Moro, titular do 13ª. O caráter peculiar desta leitura é ser ela orientada pelo método da Psicanálise, para o qual importa antes a estrutura enunciativa, o modo como as enunciações do referido Ato de Sentença é proferido do que seu conteúdo semântico. Esta é uma dimensão essencialmente metodológica, que tem como efeito neutralizar qualquer tendenciosidade ideológica, política ou mesmo conceitual por parte deste Parecerista.

Impõe-se, ainda em caráter preliminar, uma advertência: a utilização do método psicanalítico na análise de textos não implica, de modo e em nível algum, qualquer propósito de psicanalisar ou mesmo diagnosticar o autor do referido texto, o que constituiria, além de óbvia impropriedade, um equívoco metodológico inaceitável, porquanto uma psicanálise, quando praticada na relação com um sujeito-analisante, exige sua fala viva e endereçada ao analista, o que denominamos de transferência em nosso campo. Muitos pesquisadores utilizam a psicanálise aplicando-a a obras literárias, por exemplo, e em nenhum caso trata-se de psicanalisar o autor. Entretanto, podemos com todo rigor afirmar que um texto é permeado por um sujeito enunciativo, e é como enunciação de um sujeito que se pode analisá-lo enquanto texto, obra, sentença, romance, ficção. Freud elaborou sua teoria da psicose, marco referencial insuperável no tempo da história, através de análise de um relato autobiográfico, as "Memórias do Presidente Schreber", cuja estrutura delirante, rigorosa neste estatuto, abriu um campo novo para a clínica psicanalítica de sujeitos psicóticos, que passaram a ser, assim, analisáveis. O que se pretende aqui é, portanto, analisar a obra-sentença para nela identificar suas estrutura enunciativa.

A Psicanálise, nisso distinguindo-se de outros recursos de análise de documentos textuais (como a Análise do discurso, por exemplo), tem a possibilidade de identificar complexos enunciativos em sua dimensão inconsciente. A Psicanálise utiliza, por exemplo, a distinção de planos entre enunciado e enunciação, que não foi concebida por ela mas pela Lingüística estrutural moderna, segundo a qual toda enunciação implica uma intenção enunciativa que sempre se apresenta no plano do enunciado efetivo através de um elemento materialmente localizável, chamado de shifter, o que assegura objetividade científica à articulação entre esses dois planos. O shifter é o elemento material e localizável do enunciado que indica o sujeito da enunciação, que faz o ato de enunciar, contendo, incontornavelmente, uma intenção enunciativa. Mas, na Psicanálise, esta dualidade indica o sujeito da enunciação como sujeito do inconsciente, o que implica que sempre haja uma intenção inconsciente no ato de enunciar. O método de leitura que nos guia, neste Parecer, portanto, vale-se desses dois instrumentos metodológicos: a localização do sujeito da enunciação e do plano do dizer para além do texto manifesto, o enunciado, e os ditos que constituem o Ato de Sentença que condena, entre outros, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Um primeiro aspecto que a leitura da sentença de condenação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva pelo Juiz Federal Sergio Moro evidencia, em uma perspectiva global, é a posição de dualidade que atravessa o texto do início ao fim. Temos sempre a impressão de estar diante de uma díade, de uma polarização entre dois - o acusador e o acusado. Isso não pode deixar de chamar-nos à atenção, porquanto um Juiz, espera-se, ocupa uma posição sempre terceira entre partes, seu lugar na estrutura discursiva é ternário, não pode coincidir com a Acusação nem com a Defesa, que representam as partes. O texto parece abolir a dimensão triádica, o que, do ponto de vista psicanalítico, traduz-se como uma predominância do registro do Imaginário – no qual imperam as relações entre semelhantes, que sempre sofrem um empuxo à dualidade – sobre o do Simbólico, no qual a Lei (no caso, a Lei Simbólica, encarnada pela função paterna, mas que tem seu correlato social, que lhe é homológico embora não analógico, na Lei Jurídica) opera sempre como mediação ternária. O trecho em que isso mais salta aos olhos é aquele em que o Juiz Moro interroga diretamente o ex-presidente Lula a respeito de um apartamento "triplex" no Guarujá. Puro duelo, sem mediação alguma, ao qual retornaremos adiante, pois o que estamos destacando, por ora, é o aspecto de dualidade que atravessa globalmente toda a discursividade da Sentença.

Um exemplo disso, que não mencionamos de modo localizado porquanto perpassa diversos trechos da Sentença, em diferentes situações de interrogatório ou depoimento nela transcritas, é a posição do Juiz quanto às interpelações da Defesa, sobretudo as questões de ordem: Invariavelmente são indeferidas, sempre em favor da Acusação. Interrogamos a imparcialidade de um Juiz que se coloca do lado da Acusação e contra a Defesa, baseados no princípio de que um Juiz não se patamariza com nenhuma das partes, e não pode, portanto, tornar-se acusador.

Como um desdobramento deste aspecto, ainda no plano global, destacamos o caráter de suposição de culpa, que se sobrepuja à comprovação efetiva da culpa. Supõem-se uma série de atos ilícitos, por exemplo, do ex-presidente, sem que se apresentem as provas concretas para esta acusação. Tais provas são ditas existirem, mas uma leitura atenta revela que sua existência, vale dizer, sua "realidade", restringe-se aos estreitos e incertos estribos de outras declarações verbais acusatórias, sobretudo de "testemunhas" comprometidas a priori, porquanto réus acusados no mesmo processo ou em similares. Fazem-se referências a "provas documentais e periciais", mas sempre referidas a atos de defesa de outros acusados, a única autora das referidas provas.

É curioso observar que as provas ditas “documentais” são sempre conjecturais, constituem indícios e não provas, por mais verossímeis, em alguns casos, jamais chegam a suprimir a possibilidade de que a verdade seja inteiramente diversa do que indicam, contrariando o princípio invocado na alínea 15 da “Ementa” (de um julgamento de apelação pelo “Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região”, de autoria do Des. João Pedro Gebran Neto, citado pelo próprio Juiz Sergio Moro, em ponto adiantado de sua Sentença (item 713, p. 175): A presunção de inocência, princípio cardeal no processo criminal, é tanto uma regra de prova como um escudo contra a punição prematura. Como regra de prova, a melhor formulação é o 'standard' anglo-saxônico - a responsabilidade criminal há de ser provada acima de qualquer dúvida razoável -, consagrado no art. 66, item 3, do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.', consoante precedente do STF, na AP 521, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.02.2015.e  (O standard anglo-saxônico aparece sublinhado no original).

Ora, a leitura atenta da Sentença indica, em numerosos momentos do corpo do texto, que este princípio não foi obedecido, e que a responsabilidade criminal não foi provada “acima de qualquer dúvida razoável”, e ainda assim foi imputada ao acusado. Persistem, até o final da Sentença, muitas e sérias dúvidas sobre a responsabilidade criminal do ex-presidente Lula sobre os atos pelos quais é acusado.

O mais flagrante exemplo disso é o modo como, primo, são conduzidas as investigações quanto e, secundo (e por conseguinte), como se chega às “conclusões” de “prova de culpa” a respeito da acusação mais perseverante em toda a sentença, qual seja, a de que o ex-presidente Lula teria sido beneficiado por uma soma de dinheiro cuja exatidão do valor (R$ 3.738.738,00, cf. Sentença, item 11, p. 3) contrasta com a inexatidão dos atos e fatos de que se tem provas contundentes e irrefutáveis. Tal valor corresponderia ao total de benefícios destinados ao ex-presidente pelo Grupo OAS, "corporificado" em um "apartamento triplex" em um condomínio do Guarujá, acrescido de obras de reforma supostamente encomendadas por Lula e sua esposa, D. Marisa Letícia. Ora, as referidas provas, ditas "testemunhais, documentais e periciais" procedem na verdade de declarações da defesa de outro acusado, o proprietário do Grupo OAS, José Adelmário Pinheiro Filho, através da chamada "delação premiada", que teve sua pena reduzida a 2/3 pela "colaboração do acusado com o esclarecimento dos fatos" (Sentença, item 34, p. 7). Entretanto, um outro acusado, Paulo Tarcisio Okamotto, contraria quase que ponto por ponto as declarações de Adelmário, afirmando inclusive: "e) que o próprio José Adelmário Pinheiro Filho declarou que tais pagamentos não se deram por motivos ilícitos;" (Sentença, item 35, p. 7). 

Já o ex-presidente Lula, em sua defesa, declara jamais ter tido a propriedade ou a posse do referido apartamento. Vale citar os itens p, q, r e s de suas próprias declarações tais como transcritas no corpo da Sentença que dizem respeito a este aspecto: p) que o apartamento triplex nunca foi do ex-Presidente, que dele nunca teve a propriedade ou a posse; q) que o apartamento triplex é da OAS Empreendimentos e que praticou atos de disposição do imóvel; r) que o ex-Presidente era visto como um potencial cliente e as reformas visaram fomentar seu interesse sobre o imóvel; s) que os custos da reforma do apartamento foram incluídos nos custos do empreendimento, conforme documento apresentado por José Adelmário Pinheiro Filho, e não se lança propina em contabilidade. (Sentença, item 39, p. 8). 

Diante de tal entrecruzamento de dizeres e declarações, como julgar adequadamente? O primeiro e mais importante modo de conduzir o julgamento deve ser a imparcialidade do julgador. 

Karl Popper, o conhecido epistemólogo contemporâneo, concebeu o princípio da refutabilidade como critério de cientificidade de uma proposição[1]. Segundo este princípio, será científica toda proposição formulada de modo a colocar-se aberta à refutação. Popper exemplifica seu princípio com a célebre proposição "todos os cisnes são brancos". Esta afirmação é científica porque a mera constatação da existência de um cisne negro, por isso denominado refutador empírico, bastaria para refutar a teoria afirmada na proposição "todos os cisnes são brancos". Ora, a aplicarmos o princípio a refutabilidade popperiano ao caso do apartamento do Guarujá, somos levados a concluir que a afirmação do ex-presidente Lula: "jamais tive a propriedade ou a posse do apartamento triplex do Guarujá" é científica porque refutável, na medida em que a verificação, por uma prova concreta e empírica, de que ele teve a propriedade ou a posse do referido apartamento bastaria para desmenti-lo e assim comprovar sua falsidade. Onde está esta prova? Por que o juiz Sérgio Moro não apresenta o refutador empírico da afirmação de Lula? Porque na verdade seu inquérito não dispõe deste refutador, baseando-se apenas em conjecturas baseadas nas declarações (muitas delas contraditórias) de outros acusados, interessados que estão em reduzir suas penas e portanto pouco ou nada confiáveis em termos da fidedignidade necessária e exigível a uma prova digna deste nome.

Uma leitura atenta da Sentença em seu conjunto, mas tentando condensar (a fim de evitar maior extensão do presente Parecer) os pontos que se referem a esta acusação sobre o apartamento “triplex” do Grarujá, revela um aspecto de ordem obsessivo-compulsiva na forma como o tema aparece, repetido com encarniçada e infrutífera insistência, que se traduz:

a) pela reiteração com que o Juiz inquisidor o faz, pelos detalhes absolutamente irrelevantes sobre os quais insiste de forma inacreditavelmente obstinada como se constituíssem o essencial da investigação (ex.: “de quem foi a decisão de desistir do apartamento 164-A, do Sr. [o interlocutor é o ex-presidente Lula] ou da Sra. Marisa Letícia?”), procurando, na seqüência, dar às diferentes respostas de Lula, entretanto fundamentalmente equivalentes, o sentido de forjar uma contradição inexistente (Cf. item 438, Sentença, 86, em que o tema é explicitamente tratado), pois que em um casal que compartilha decisões é irrelevante saber “de quem partiu” a decisão de desistir do apartamento, importando, na verdade, provar se de fato houve ou não desistência, se chegaram ou não a tomar posse do imóvel. Segundo as próprias palavras de diversos depoentes e do próprio Juiz, nunca se configurou a efetiva posse do imóvel, já que em nenhum momento se comprova que e ex-presidente e D. Marisa Letícia habitaram o imóvel. 

b) A propriedade (não a posse) do imóvel permanece igualmente não comprovada, a despeito de “provas orais” (depoimentos de delatores premiados) e “documentais” (papéis apreendidos em buscas que, ainda que autorizadas por instâncias jurídicas, nem por isso perdem seu caráter abusivo em termos legais, e que ou não contém assinatura alguma do ex-presidente, como o Termo de Adesão à compra do apartamento 164-A ou a obscura “rasura” no Termo de Adesão à compra do apartamento 141-A, este sim assinado por D. Marisa Letícia, apartamento pago até determinado ponto da aquisição e cuja empreiteira (Bancoop) veio a falir, sendo a obra assumida pela OAS Empreendimentos. O que se depreende, por uma leitura imparcial e não tendenciosa dos depoimentos alegados como provas, é, no máximo, que a OAS praticou uma espécie de “assédio corruptor” sobre o ex-Presidente Lula, que pode até ter cogitado em alguns momentos em comprar o apartamento, muito embora a ele sempre e coerentemente se refira com dúvidas e críticas ao que considera os inúmeros defeitos do apartamento, que acabaram por fazê-lo dele desistir: o fato de estar “velho” e não poder ficar subindo escadas (note-se que o ex-presidente havia-se recuperado de um câncer pouco tempo antes – e nesse sentido o tal “elevador privado” que a OAS colocou no apartamento – ao qual o Juiz Moro refere-se à exaustão como um luxo faraônico, sem que se possa entender prontamente o motivo – torna-se perfeitamente inteligível); o fato de considerar os cômodos pequenos demais para seus netos; o fato de “gostar de praia” mas não se sentir confortável em frequentar uma praia como a do Guarujá; o fato de D. Letícia não gostar de praia, entre outras razões claramente expostas no depoimentos de Lula.

c) Incidentalmente, indagaríamos as razões, subreptícias e situáveis no plano da enunciação inconsciente (à qual nos referimos no início do presente Parecer), do modo como é tratada a possibilidade do ex-presidente Lula adquirir um imóvel “triplex” no Grarujá, ícone, para a sociedade paulista pelo menos, de status “burguês”. Não se consideraria excessiva, de per se, esta “presunção”? Por que tanto alarde em torno disso? O casal Lula da Silva, mesmo seu cônjuge viril exercendo a presidência da República do Brasil, havia adquirido e pago - isto sim é provado de forma incontestável e “acima de qualquer dúvida razoável” (para evocar aqui parte do slogan anglo-saxônico citado pelo Des. Gebran Neto, supra) como qualquer casal de classe média, grande parte do valor de um apartamento de classe média (a unidade 141-A do Mar Cantábrica, empreendimento da Bancoop, de 80 metros quadrados e 3 quartos.

d) A empreiteira faliu, e seus empreendimentos foram parcialmente absorvidos pela OAS Empreendimentos, que tinha declarado interesse em ingressar no rol das empreiteiras que detinham a hegemonia junto à Petrobrás nas licitações de obras, e viu nessa situação a brecha para assumir posições mais privilegiadas junto ao Governo. Nada mais claro do que o empenho em convencer o casal Lula, que já era adquirente de imóvel simples no empreendimento falimentar assumido pela OAS, a adquirir um apartamento de valor bem maior e mais “atraente” no novo empreendimento. Se o casal cogitou disso – e afinal declinou disso, o que surpreende aos que dele esperariam um anseio ascensional e “emergente” muito comum nos que enriquecem licita ou ilicitamente na escala socialé um problema dele, casal. O problema da Justiça seria provar que o casal apropriou-se do novo imóvel, muito mais caro, de suas reformas igualmente onerosas de modo ilícito. E sobre isso a Sentença não consegue ser conclusiva, mesmo estendendo-se por incontáveis depoimentos, todos igualmente incapazes de fornecer provas irrefutáveis, mesmo estendendo-se por 238 páginas.

e) Pode-se considerar a possibilidade de o casal ter encomendado reformas no apartamento, mas nada comprova ou assegura que não pagaria por elas, já que Lula, depois de tornar-se por dois mandatos seguidos presidente de uma nação como o Brasil, passou a ter um prestígio internacional indiscutível e a proferir palestras regiamente remuneradas, o que lhe permitiria, caso tivesse insistido na aquisição e nas reformas, a pagar por elas.

f) Ainda como lastro ao que denominamos de “assédio corruptor” sobre o ex-presidente Lula por parte da OAS, citamos um trecho do depoimento de seu presidente, Sr. José Adelmário Pinheiro Filho, transcrito na Sentença (item 524, p. 111) no qual afirma que tinha declarado interesse em ampliar o escopo de suas ações em São Paulo, embora não fosse de seu interesse um empreendimento praiano, focando-se ela em grandes centros urbanos. Citamos o trecho de um diálogo entre o depoente e o Sr. João Vaccari, que tinha sido presidente da Bancoop: “Ele me disse 'Olha, aqui temos uma coisa diferente, existe um empreendimento que pertence à família do presidente Lula, diante do seu relacionamento com o presidente, o relacionamento da empresa, eu acho que, nós estamos lhe convidando para participar disso por conta de todo esse relacionamento e do grau de confiança que nós depositamos na sua empresa e na sua pessoa'. Diante disso eu disse 'Olha, se tratando de uma coisa dessa monta eu vou..., de qualquer forma eu teria que mandar fazer um estudo de viabilidade de cada empreendimento, eu disse a ele 'Olha, não vejo problema, eu vou passar isso para a nossa área imobiliária, que é uma empresa independente, a empresa fará os estudos, eu volto com você e a gente vê se é viável, se não é viável, e com que podemos negociar”. O desinteresse inicial pelo empreendimento, segundo a política de expansão da empresa, sofreu uma inflexão quando lhe foi dito que o ex-presidente e sua esposa tinham uma unidade no empreendimento, o que assumiu o significado de uma isca irrecusável e ele passou a admitir a possibilidade de assumir o empreendimento no Guarujá. Isso passou inclusive a servir de atrativo de marketing junto aos corretores de outras unidades do empreendimento, como consta da Sentença, sem que qualquer fato desses prove que o ex-presidente Lula tivesse se tornado proprietário da unidade 164-A, como se pretende “provar”, já que a unidade que lhe dizia respeito era a 141-A.

g) Na seqüência (mesmo item 524, p. 112), o Juiz comete o que chamamos em Psicanálise um ato falho: ao indicar o enunciador no diálogo com o interrogado, o Juiz, como se fora o próprio enunciador, escreve Juiz Federal (modo como se nomeia em todos os diálogos) no lugar do nome de José Adelmário Pinheiro Filho, que é o efetivo enunciador do texto que se segue. É claro que enganos como estes podem ser corriqueiros e nada significar de importante. No entanto, no contexto desta análise, o fato do Juiz atribuir a si uma fala que não é sua, mas do depoente em acordo de delação premiada que mais contundentemente proferiu acusações contra o ex-presidente Lula pode não ser anódino, e portanto o registro deste lapso não parece ser irrelevante no sentido de apontar uma possível identificação do Juiz Sergio Moro com o mais notório acusador de Lula no processo.

h) Do mesmo modo, a matéria publicada em O Globo em 10/03/2010 mostra claramente que o ex-presidente e sua esposa estavam em vias de ser prejudicados pela falência da Bancoop, e faziam alusão a um “triplex” no Guarujá, o que de modo algum pode servir de prova de posse ou propriedade desta unidade.

i) Dado que não estamos tomando aqui a defesa de ninguém, e que portanto precisamos considerar diferentes possibilidades (já que os elementos que nos são fornecidos na Sentença mantém-se na ordem das conjecturas), podemos considerar a possibilidade de que o ex-presidente Lula tenha-se sentido seduzido por esse assédio, o que não está fora de cogitação, e não tomamos posição de julgar, seja a inocência seja a culpa, mas de analisar a estrutura enunciativa de um texto de sentença e menos ainda a culpa/inocência “em atos, desejos ou pensamentos”, como pregado pela Religião Cristã, de quem quer que seja, inclusive do ex-presidente Lula. Mas consideramos impróprio condenar a partir de supostas intenções.

j) Podemos também considerar que o esquema de corrupção que funciona no Brasil junto aos Governos muito antes da presidência de Lula e da ascensão ao poder estatal do Partido dos Trabalhadores, tenha criado uma rede em torno da questão, e os interesses da OAS, plenamente implicados nesse esquema, tenha operado, até certo ponto independentemente da ação do ex-presidente Lula.

k) Mas o fato, este indiscutível, é que não existem provas de que o ex-presidente tenha-se beneficiado desse esquema ou do assédio corruptor, e as ilações e deduções do Juiz Sergio Moro constituem antes uma teoria conjectural da culpa, que ele pretende fundamenta-se em indícios consistentes, que no entanto seriam contestáveis um por um em qualquer análise jurídica competente (que não é nem pretende ser aquela que aqui empreendemos, porquanto não é esta a nossa área de atuação) – o que aliás vem sendo feito fartamente por competentes e imparciais especialistas da área do Direito.

l) Nosso objetivo, como psicanalista, é interrogar: o que fez com que o Juiz Sergio Moro, que não desconhece a Lei (como aliás a ninguém é dado desconhecê-la, segundo conhecido adágio do campo das ciências jurídicas, muito menos a um Juiz Federal), não tenha considerado as possibilidades entretanto tão plausíveis e mesmo prováveis que apontamos acima, e tenha, mais que tendenciosa, obstinadamente, embrenhado-se na floresta espessa das incertezas de indicadores pouco confiáveis – seja por sua inconsistência enquanto prova, seja pelo caráter pouco confiável dos depoentes partícipes de “acordos de colaboração” (delação premiada) – a fim de nela encontrar o Graal de uma prova que ele jamais encontrou porquanto inalcançável pela razão humana quando orientada pelos princípios da imparcialidade (exigível de um qualquer Magistrado), pelas balizas da normalidade mental, pela posição de Juiz (instância terceira) e não de adversário do acusado, que Sergio Moro assume ao longo de toda a condução do processo retratado no texto da Sentença.

m) A despeito de tudo isso, o Juiz Sergio Moro se “autoriza” a fazer as seguintes afirmações, ao final da Sentença (Capítulo II.17), às quais nada de consistente e uma postura efetivamente imparcial conduziria, já que a Razão Científica tem lá suas exigências, situadas para além de cada um de nossas cabeças tomadas individualmente, para autorizar proposições categóricas. Descumprindo fragorosamente tais exigências da Ciência em sua relação ética com a Verdade, o Juiz Sergio Moro passa das conjecturas às afirmações como quem desce um tobogã, sem que, na passagem de umas às outras, qualquer prova tenha sido apresentada que fundamente e justifique uma mudança de estatuto desta magnitude, desatino metodológico ao qual devem-se acrescentar as consequências éticas para a vida do acusado e para a vida política nacional e sua destratada democracia. Declaram-se provados os fatos que desde o início se queria provar, e inconsistentes os que  objetam tais propósitos que então atestam o caráter apriorístico que sempre tiveram. Transcrevemos os itens de 847 a 853 (Sentença, itens 847-853, p. 211), por demasiado eloquentes a este respeito: 

847. Provado que as duas versões apresentadas pelo ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o ocorrido em relação ao apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, não são consistentes com as provas documentais constantes nos autos. [grifo nosso]. 

848. Provado igualmente que os depoimentos no sentido de que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram proprietários de fato do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, e que as reformas foram a eles destinadas, são consistentes com as provas documentais constantes nos autos. [grifo nosso]. [Não há, contudo, prova alguma da propriedade que no entanto é afirmada como provada de fato]. 

849. Provado também que os depoimentos no sentido de que eles seriam meros "potenciais compradores" não são consistentes com as provas documentais constantes nos autos. [grifo nosso]. 

850. Considerando então que o o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram proprietários de fato do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, que as reformas foram a eles destinadas, e que os álibis do ex-Presidente são falsos, há corroboração dos depoimentos dos acusados José Adelmário Pinheiro Filho e de Agenor Franklin Magalhães Medeiros, de que houve uma acerto de corrupção, tendo por beneficiário específico o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. [grifo nosso]. [Premissa falsa, conclusões falsas]. 

851. Afinal e isso foi admitido pelo próprio ex-Presidente, embora com argumentos falsos, jamais houve discussão concreta com ele sobre o preço do apartamento 164-A, triplex, jamais foi discutido concretamente que o ex-Presidente pagaria diferença necessária, e jamais houve discussão sobre o ressarcimento da OAS Empreendimentos pelas despesas havidas na reforma, aliás, sequer houve questionamento sobre a diferença de preço e custos das reformas. 

852. Definido que o apartamento 164-A, triplex, era de fato do ex- Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que as reformas o beneficiavam, não há no álibi do acusado Luiz Inácio Lula da Silva o apontamento de uma causa lícita para a concessão a ele de tais benefícios materiais pela OAS Empreendimentos, restando nos autos, como explicação única, somente o acerto de corrupção decorrente em parte dos contratos com a Petrobrás. 

853. Provado, portanto, o crime de corrupção. [grifo nosso]. Provado? 

Aplicando uma frase escrita pelo autor da Sentença a ele próprio: “Há certa desconexão entre a premissa e as conclusões”. (Sentença, item 820, p. 207).

E concluindo o modo como o Juiz Sergio Moro fundamenta as suas conclusões, destacamos uma frase sua a respeito das declarações do delator premiado que proferiu as supostas provas mais contundentes contra o ex-presidente Lula: “As declarações do Sr. José Adelmário Pinheiro Filho soam críveis”. [grifo nosso] (Sentença, item 936, p. 224). 

Note-se, por oportuno, que toda assim chamada delação premiada, método recorrentemente usado na operação Lava-jato, contém em sua estrutura mesma a essência da corrupção que a dita operação alega visar combater. Considerando-se que seu fundamento é a premiação (que em nada se distingue da propina paga em troca dos benefícios visados) conferida a uma delação suspeita porque viciada e comprometida por princípio, de saída e de estrutura, toda informação obtida por este método é corrupta pelo próprio prêmio ambicionado pelo delator. O prêmio é a propina, e o aparente pragmatismo que pretenderia fundamentar, pelos resultados obtidos, semelhante método não logra dissipar a promiscuidade essencial que corrói tanto sua dimensão ética quanto o rigor de sua eficácia no sentido da apuração da verdade. O pragma mais uma vez reafirma-se como o contrário da práxis ética e rigorosa da Ciência, e portanto também das boas práticas do Direito.

Destaque-se que o próprio Juiz Sergio Moro faz ponderações considerando o caráter polêmico e controverso da delação premiada, mas acaba por “desmentir” as boas razões que invoca contra esta prática com argumentos pragmáticos. Recorrendo a um mecanismo discursivo que a psicanálise conceitua como desmentido (Verleugnung, no alemão de Freud) e que consiste em desconsiderar o que se sabe (este mecanismo reaparece no corpo do texto da Sentença em outras passagens, e será retomado mais detidamente em outra passagem da Sentença, adiante , p. 12), o Juiz afirma: “247. Não desconhece este julgador as polêmicas em volta da colaboração premiada. 248. Entretanto, mesmo vista com reservas, não se pode descartar o valor probatório da colaboração premiada. É instrumento de investigação e de prova válido e eficaz, especialmente para crimes complexos, como crimes de colarinho branco ou praticados por grupos criminosos, devendo apenas serem observadas regras para a sua utilização, como a exigência de prova de corroboração”. (Sentença, item 247/248, p. 46). Faz, na seqüência, um juízo de valor que pertence ao seu ideário particular, suas crenças e valores, sua posição ideológica: “Quem, em geral, vem criticando a colaboração premiada é, aparentemente, favorável à regra do silêncio, a omertà das organizações criminosas, isso sim reprovável”. Ora, não cabe um juízo como este em uma Sentença de condenação baseada no método da delação premiada. Constitui tal juízo, inclusive, um insulto a quem “vem criticando a colaboração premiada” – muitas pessoas que defendem a idoneidade das condutas humanas e não é “favorável à regra do silêncio, à omertà das organizações criminosas”. Prossegue ele citando Piercamilo Davigo, membro da equipe milanesa que atuou na Operação Mani Pulite, da Italia: "A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir jamais" (SIMON, Pedro coord. Operação: Mãos Limpas: Audiência pública com magistrados italianos. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 27). (Sentença, item 251, p. 47). Pragmatismo problemático, em que o que importa é “descobrir”, não importa como, que ignora e encobre os efeitos modificadores do “como”, não inócuo, sobre o “que” se descobre.

Mas voltando ao circuito fechado e sem saída das supostas "provas" baseadas em delações, ficamos como um rato no labirinto, como em um dicionário em que o significado de um verbete remete sempre a outros verbetes, e isso infinitamente, como num jogo de espelhos, sem que nunca se saia do universo do próprio dicionário, o que nos evoca o Positivismo lógico, em que cada significação remete sem saída a uma outra significação - The meaning of the meaning[2]. O meaning, no caso, é sempre o da imputação de crime de corrupção passiva ao ex-presidente Lula. A referência ao real, exigível em toda prática científica, está ausente. Incorre-se, assim, no delito científico-metodológico de proferir um juízo sem objeto real. Um julgamento avant la lettre, antes e fora do ato.  Abstração anti-dialética, alheia ao plano do concreto, que revela, à luz da leitura aqui empregada como instrumento de análise, uma intenção enunciativa antecipatória e incriminatória inequívoca, incompatível, portanto, com a imparcialidade exigível ao ato de julgar.

O caráter antecipatório revela-se ainda mais claramente nos episódios de determinação de interceptação telefônica, condução coercitiva e outras ações praticadas pelo Juiz Sergio Moro, a despeito da sua denegação suficientemente evidente na frase (alínea “2” do Processual Penal contido no item 51 da Sentença, p. 11): "A determinação de diligências na fase investigativa, como quebras de sigilo telemáticos e prisões cautelares não implica antecipação de mérito, mas sim mero impulso processual relacionado ao poder instrutório". A denegação (Verneinung, no termo alemão que designa o conceito de Freud[3]) é um recurso discursivo, isto é, que opera na linguagem e consiste em suspender o obstáculo a que algo seja dito mediante a inserção do não, espécie de blindagem que permite que determinada ideia ou impulso passe pelo dizer, possa ser dito, desde que negado de saída. Assim, podemos ler claramente que "A determinação de diligências na fase investigativa, como quebras de sigilo telemáticos e prisões cautelares implica (sim) antecipação de mérito", pois, como admitir que a Justiça pratique atos considerados ilícitos pela própria Justiça com fins investigativos na ausência de intencionalidade acusatória (antecipação de mérito)?

Ao modo de um corolário, o final da frase do Juiz ratifica esta intenção: "...mas sim mero impulso processual relacionado ao poder instrutório". Mero impulso, que se pode ler como mero substantivo da língua portuguesa, algo que pretenderia impulsionar o processo instrutório. Sem dúvida é esta a intenção manifesta, consciente, do Juiz, Mas que se pode ler, em outro plano intencional (da enunciação da frase, mais que como seu enunciado) como um impulso. uma sanha acusatória, um impulso de poder menos instrutório que condenatório.

Chama à atenção que o corpo do texto da sentença se torna mais prolixo, reiterativo até, quando se trata de responder às interpelações do ex-presidente Lula quanto à não-imparcialidade do seu "julgador", suas posições expostas em artigos publicados, suas diligências ["não"] antecipatórias do mérito. Os argumentos se alongam e se repetem. Senão, vejamos. Em resposta ao fato de que o Juiz Sergio Moro inspira-se na Operação Mani Pulite (Itália, anos 90) na condução de sua versão brasileira "Lava-jato", lemos, mais de uma vez, no texto da Sentença: "Considerações do magistrado em texto jurídico publicado em revista especializada a respeito da Operação Mãos Limpas (Itália) têm natureza meramente acadêmica, descritiva e informativa e não conduz à sua suspeição para julgar os processos relacionados à 'Operação Lava-Jato', deflagrada, inclusive, muitos anos depois". Ora, sabe-se, no campo da Epistemologia Crítica, que as produções e práticas "acadêmicas" nunca são "meramente acadêmicas". Constitui portanto desconhecimento de crítica epistemológica afirmar que as posições teóricas e ideológicas de um magistrado não influenciam seu juízo. Estamos, novamente, diante de uma forma elaborada de denegação, pois é claro que não existe produção científica ou acadêmica que possa, com rigor e seriedade, pretender-se neutra. E a frase final, que informa que a Operação Lava Jato foi deflagrada muitos anos depois carece de sentido, pois só sendo posterior no tempo histórico é que ela poderia inspirar-se em sua antecessora, e não o contrário.

No item 58 da Sentença, o texto traz uma afirmação curiosa: Na linha da estratégia da Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva de desqualificação deste julgador, por aparentemente temerem um resultado processual desfavorável, medidas questionáveis foram tomadas por ela fora desta ação penal. (Sentença, item 58, p. 14). O trecho que grifamos contém uma interpretação subjetiva por parte do Juiz, cujo conteúdo pretende, por sua vez, atribuir um afeto (temor), algo subjetivo, portanto ao acusado: o temor de um "resultado processual desfavorável" como estando na base da "desqualificação deste julgador": Ora, o que autoriza uma tal interpretação? Reduzir eventuais razões objetivas que um acusado possa ter para questionar a qualificação de seu "julgador" a um "temor subjetivo" - isto sim desqualifica efetivamente os fundamentos que o acusado possa ter para proteger seus direitos. E, last but not least, estamos novamente no plano dual, imaginário, em que o sentido produzido no pensamento de um é passível de ser atribuído ao outro, tomado como semelhante, cuja matriz é o espelho da própria imagem de si. 

E as tais medidas questionáveis tomadas [pela Defesa de Lula] fora desta ação penal consistem em "queixa crime por abuso de autoridade e ainda por quebra de sigilo sobre interceptação telefônica contra o ora julgador perante o “Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região". Mas não constituiria a quebra de sigilo sobre interceptação telefônica abuso de autoridade? E apresentar queixa-crime não teria sido o único recurso de defesa contra o abuso de autoridade da própria autoridade à qual se poderia recorrer dentro "desta ação penal"? O que restaria fazer contra referido abuso? O que é verdadeiramente questionável? As medidas tomadas pela defesa de Lula ou as ações que constituem o objeto dessas medidas? 

Sobre a condução coercitiva do ex-presidente, as ambiguidades discursivas se acentuam. O próprio Juiz, autor desta medida, admite, acompanhando o Egrégio Colégio que a apreciou, sua atipicidade. Que função tem aqui, na literalidade do texto, tamanho eufemismo? Por que esta conduta tão atípica? O que há de verdadeiramente atípico em toda a situação? Se de fato se tratasse de uma investigação imparcial de atos de corrupção por parte de um governante, um homem público sujeito, como qualquer outro, a cometê-los, por que não conduzir-se de modo típico

Ao que tudo indica, o termo atipicidade é um desses shifters aos quais nos referimos no início do presente Parecer, aquele termo do enunciado que trai o sujeito da enunciação, revelando-o sua intenção inconsciente. Por intermédio da puxada deste fio do qual este termo é apenas a ponta, trazem-se à tona muitos outros elementos esclarecedores da trama desta acusação. O ex-presidente Lula não é, com efeito, um acusado típico, nem um suposto governante "corrupto" típico. Ele representou e representa algo bem maior e diverso disso, e essa talvez seja a verdade que explica a conduta tão marcada pela atipicidade do seu julgador. 

Valendo-se novamente do recurso da denegação, o Juiz Sergio Moro afirma que as decisões judiciais deste Juízo, conforme já apreciado nos foros próprios da Justiça, não foram criminosas e constituíram atos regulares no exercício da jurisdição. É oportuno lembrar que as interceptações telefônicas feitas sobre o cidadão Luís Inácio Lula da Silva incidiram sobre conversas que ele mantinha com a então Presidenta da República, não uma mera cidadã, cargo eleito e soberano de uma Nação que se pretende e diz democrática, sobre o qual proteções legais constitucionais impedem este tipo de ação investigativa (que já requereria justificativas bem  fundamentadas mesmo quando aplicada ao cidadão comum). Em se tratando da Presidenta da República, esta ação abusiva torna-se inconstitucional, e portanto ainda bem mais grave. No entanto, o Juiz trata a justa interpelação sobre este abuso legal como mero "diversionismo". Diz o Juiz no item 65 da Sentença (item 65, p. 16) :  "65. Mais uma vez, repita-se, trata-se de mero diversionismo adotado como estratégia de defesa. Ao invés de discutir-se o mérito das acusações, reclama-se do juiz e igualmente dos responsáveis pela Acusação". Seguindo nosso método de análise da enunciação subjacente ao corpo textual, perguntamos: a que se deve tamanha recusa ao reconhecimento da verdade? Por que tratar como diversionismo uma interpelação concernente a métodos ilícitos de investigação? Por que os Colégios, por mais egrégios que sejam, tenham sempre desconsiderado e recusado toda e qualquer interpelação de defesa do ex-presidente, em uma espantosa e contínua perseverança em uma só e mesma linha de ação, que não atende à real complexidade da situação, não considera seus diferentes aspectos e adota uma conduta rígida (e aqui rigidez é o contrário do rigor) própria aos iniciantes e incompatível com a Alta Magistratura, cujas interpretações e ações precisam acompanhar as sutilezas próprias a uma situação como esta?

A afirmação: "Ao invés de discutir-se o mérito das acusações, reclama-se do juiz e igualmente dos responsáveis pela Acusação" padece de tautologia sofismática e nega a si mesma: a discussão do mérito das acusações inclui, por demasiado evidente, o questionamento dos métodos (no caso, ilícitos) pelos quais se chegou a elas. Portanto, ao "reclamar do Juiz e dos responsáveis pela acusação", o "acusado" não está deixando de discutir o mérito das acusações. Pelo contrário: é justamente o mérito mesmo da acusação que está sendo discutido, porquanto o mérito de uma acusação depende do processo investigativo que conduziu a ela. Do contrário, caímos irremediavelmente na negação das bases do próprio Direito: um acusado não teria direito de questionar os abusos do investigador em que se baseiam as acusações que lhe são feitas sem provas concretas, sob pena de ter desqualificado seu direito de defesa a mera "estratégia diversionista". 

Entretanto, por benevolente, o Juiz condescende em considerar este "diversionismo" (Sentença, item 66, p. 16): "66. Mas, como as questões foram levantadas, examinam-se, ainda que brevemente, alguns questionamentos sobre essas decisões judiciais e que, segundo a Defesa do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, representariam uma "guerra jurídica" contra o seu cliente. 67. Este Juízo, a pedido do MPF, deferiu autorização para condução coercitiva do ex-Presidente em 29/02/2016, (evento 3), do processo 5007401-06.2016.4.04.7000. 68. A decisão está amplamente fundamentada. 69. Além dos fundamentos expressos na decisão, é necessário destacar que, pela ocasião de sua prolação, não foi possível invocar razões adicionais quanto à necessidade da medida e que eram decorrentes do resultado da interceptação telefônica do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seus associados realizada no processo 5006205-98.2016.4.04.7000 e então mantida em sigilo. Pretende-se justificar a medida abusiva tomada ("este Juízo deferiu autorização para condução coercitiva do ex-presidente", repita-se), pelo resultado de uma outra conduta investigatória ilícita: a escuta telefônica do ex-presidente Lula e de "seus associados" (note-se uma vez mais, por ser este um aspecto velado no texto da sentença, que nesta categoria inclui-se a então Presidenta da República eleita), tomadas como razões adicionais (adicionais a que outras razões?) quanto à necessidade da medida (o que torna essa medida necessária?) que, à época do deferimento da primeira medida abusiva "não foi possível invocar" (por sigilosas). 

Examinemos tais razões adicionais tão imperiosas (e irreveláveis) que tornaram necessária esta  medida (Sentença, itens 70/71, p. 16): "70. Com efeitos, alguns dos diálogos sugeriam que o ex-Presidente e associados tomariam providência para turbar a diligência, o que poderia colocar em risco os agentes policiais e mesmo terceiros. 71. Exemplificadamente, diálogo interceptado como o de 27/02/2016, entre o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Presidente do Partido dos Trabalhadores, no qual o primeiro afirma ter ciência prévia de que a busca e apreensão seria realizada e revela cogitar "convocar alguns deputados para surpreendê-los", medida que, ao final, não ultimou-se, mas que poderia colocar em risco a diligência. Em decorrência, a autoridade policial responsável pela investigação consignou em um dos autos de interceptação (auto de interceptação telefônica 054/2016, processo 5006205-8.2016.4.04.7000): "O monitoramento identificou que alguns grupos sindicais e agremiações partidárias estão se mobilizando na tentativa de frustrar possíveis medidas cautelares. Essas medidas possivelmente ameaçam a integridade física e moral tanto dos investigados quanto dos policiais federais envolvidos. Assim sendo, sugere-se que sejam adotadas cautelas e procedimentos para evitar os riscos identificados." 

Aqui estamos diante de um discurso nitidamente paranóico, constatação que, reiterando um escrúpulo colocado neste Parecer de início, não deve ser tomada como uma pretensão diagnóstica quanto ao autor deste discurso. Em psicanálise, distinguimos traços de estruturas, e elementos textuais de posições subjetivas que não temos nem condições nem o desejo de comprovar. Não experimentamos aqui nenhuma sanha diagnóstica, mas em contrapartida comprovamos uma sanha condenatória no documento da Sentença. 

A escuta telefônica de frases como "convocar alguns deputados para surpreendê-los" é ouvida como grave ameaça que "poderia colocar em risco a diligência". O perseguidor converte-se especularmente em perseguido e recrudesce as medidas já injustificáveis para prevenir-se contra com o que no entanto não aconteceu. A fantasia persecutória atinge níveis surpreendentes quando se menciona (novo fruto do monitoramento telefônico) que alguns grupos sindicais e agremiações partidárias estão se mobilizando na tentativa de frustrar possíveis medidas cautelares. Essas medidas possivelmente ameaçam a integridade física e moral tanto dos investigados quanto dos policiais federais envolvidos. Grupos sindicais e agremiações partidárias são segmentos legítimos que integram toda democracia, e a sua mobilização é algo que deve ser considerado salutar, sobretudo em um cenário de conflito político, inegável no caso. Daí a supor que essas medidas possivelmente ameaçam a integridade física e moral tanto dos investigados quanto dos policiais federais envolvidos já é fruto de confabulação persecutória. Assinalamos em negrito o essas medidas  na citação porque parece haver ali um ato falho revelador. Que medidas possivelmente ameaçam a integridade física e moral..."?, se consideramos que o antecedente imediato do pronome demonstrativo essas são as medidas cautelares, com que a frase anterior se conclui, e não as fantasiosas medidas de reação a elas. Revela-se neste lapso a especularidade antes mencionada: quem são perseguido e perseguidor? que medidas são ameaçadoras? Não serão as medidas cautelares, como a frase materialmente diz, abusivas, excessivas e sem fundamento legal, por parte das instâncias "investigatórias"? 

O texto prossegue com um outro aspecto, desta vez não de caráter paranoico (Sentença, itens 72/73, p. 17): "72. Não desconhece este Juízo as controvérsias jurídicas em torno da condução coercitiva, sem intimação prévia. 73. Mas, no caso, a medida era necessária para evitar riscos aos agentes policiais que realizaram a condução e a busca e apreensão na mesma data. 

Freud formulou com todo o rigor o mecanismo que conceituou sob o nome de Verleugnung (que se traduz como desmentido, renegação ou recusa, em suas diferentes nuances semânticas e ao qual já fizemos alusão no presente Parecer, página 8, supra) como mecanismo  característico da estrutura perversa. A estrutura discursiva da Verleugnung  é exatamente esta que se encontra entre os itens 72 e 73 da Sentença, transcritos acima: "Eu sei, mas mesmo assim...". No item 72, afirma-se: "Não desconhece ["eu sei"] este Juízo as controvérsias jurídicas (eufemismo para impropriedade jurídica?) em torno da condução coercitiva sem intimação prévia". E o item 73 inicia-se com a recusa da primeira assertiva: "Mas [mesmo assim...] no caso, a medida era necessária para evitar riscos aos agentes policiais que realizaram a condução e a busca e apreensão na mesma data. Confessa o Juiz que infringiu a lei, determinando a condução coercitiva sem intimação prévia do ex-presidente Lula para proteger agentes policiais contra riscos imaginários. 

Em seguida, o Juiz recorre ao futuro para justificar o injustificável: que a medida era necessária, para isso invocando a livre manifestação popular de apoio ao ex-presidente Lula como "prova de que ele estava certo“ ao cometer a medida da condução coercitiva sem intimação prévia. Na sequencia do próprio texto, item 74, verifica-se que o "tumulto" no Aeroporto de Congonhas traduz-se no mais inócuo brado de apoio popular a um ex-presidente: Viu, Presidente, tem muita gente que veio em apoio ao senhor!". Examinemos as palavras exaradas pelo próprio Juiz: "74. Observa-se, ademais, que o tempo mostrou que a medida era necessária, pois houve tumulto no Aeroporto de Congonhas, para onde o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi levado para depoimento, decorrente da convocação de militantes políticos para o local a fim de pressionar as autoridades policiais. Isso restou evidenciado na referida data e ainda foi objeto de afirmação expressa no termo de depoimento por ele prestado na condução coercitiva (evento 3, comp 75, conforme se verifica em diversos trechos, como "É uma manifestação favorável, de apoio ao presidente, que está vindo em direção ao local", "Viu, Presidente, tem muita gente que veio em apoio ao senhor"). 75. A mesma convocação de militantes partidários ocorreu quando da realização do interrogatório judicial na presente ação penal, tendo havido a necessidade da adoção de mecanismos especiais de segurança para prevenir tumultos e conflitos. 76. Então a condução coercitiva foi medida que estava justificada no contexto e o tempo lhe deu ainda mais razão. Não, Meritíssimo, as manifestações populares, em contexto democrático, são legítimas, e só são interpretadas como tumulto indesejável por mentes autoritárias, não democráticas. Justificar atos jurídicos de exceção contra a livre expressão da opinião por parte do povo constitui, isso sim, crime contra a democracia. O fato de tomar uma simples manifestação popular, própria, e mais do que isso, salutar em toda democracia, como tumulto, revela uma intolerância particular do Juiz aos fenômenos sociais decorrentes do exercício da democracia, o que é próprio das personalidades autoritárias (Cf., a esse respeito, a importante obra de Theodor Adorno, Études sur la personnalité autoritaire[4]). Assim, o tempo não lhe deu razão, mas a retirou progressivamente, se é que em algum momento do tempo ela existiu.  

Há uma passagem na qual o Juiz Sergio Moro procura fazer justiça ao ex-Presidente Lula: 793. É forçoso reconhecer o mérito do Governo do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no fortalecimento dos mecanismos de controle, abrangendo a prevenção e repressão, do crime de corrupção, especialmente nos investimentos efetuados na Polícia Federal durante o primeiro mandato, no fortalecimento da Controladoria Geral da União e na preservação da independência do Ministério Público Federal mediante a escolha, para o cargo de Procurador Geral da República, de integrante da lista votada entre membros da instituição. 794. É certo que não se trata de exclusiva iniciativa presidencial, já que o enfrentamento à corrupção é uma demanda decorrente do amadurecimento das democracias, mas o mérito da liderança política não pode ser ignorado.  [...] 796. De todo modo, o reforço dos meios de controle da corrupção não autoriza qualquer conclusão quanto à culpa do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos crimes que constituem objeto da presente ação penal. 797. Não será ele o primeiro governante que subestimou a possibilidade de que o incremento dos meios de controle pudessem levar à descoberta de seus próprios crimes...” (Sentença, itens 793, 794 e 796, p. 203), e passa a citar inúmeros exemplos de dirigentes que teriam sofrido do “retorno do feitiço contra o próprio feiticeiro”, chegando a comparar o ex-presidente Lula com Richar Nixon (!), que, ao criar o Organized crime control act, de 1970, não previa que este dispositivo seria usado na comprovação de seu envolvimento no escândalo de Watergate. 

Concordamos com o Juiz Sergio Moro em que de fato os mecanismos criados pelo ex-presidente Lula intensificaram o combate à corrupção no Brasil, de várias formas e sob vários aspectos, incluindo talvez uma significativa redução de sua blindagem presidencial em meio ao esquema barbaramente corrupto que cerca os Governos e os governantes há muitas décadas, talvez mais de um século (pois que nossa República já é centenária há 28 anos), tornando o esquema todo mais vulnerável, o que não implica necessariamente sua participação ativa em atos corruptos. 

Como arremate mais-que-denegatório, que se inicia por admitir que se discorde da medida de condução coercitiva, pretende o Juiz Sérgio Moro minimizar, numa evidente relativização, os danos de seu ato, como se o estatuto - lícito ou ilícito - de um ato pudesse ser atenuado por redução de danos: 77. Ainda que se possa eventualmente discordar da medida, há de se convir que conduzir alguém, por algumas horas, para prestar  depoimento, com a presença do advogado, resguardo absoluto à integridade física e ao direito ao silêncio, não é equivalente à prisão cautelar, nem transformou o ex-Presidente em um "preso político". Nada equivalente a uma "guerra jurídica". [grifo nosso]. 

Para concluir, tomo as palavras do Juiz Sergio Moro após proferir sua sentença condenatória ao ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva, ao final do texto da Sentença: 961. Por fim, registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário. É de todo lamentável que um ex-Presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei. Prevalece, enfim, o ditado "não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você" (uma adaptação livre de "be you never so high the law is above you"). O Juiz conclui sua obra com a mais expressiva Verneinung freudiana que poderia produzir. Desnecessário seria dizer, por demasiado evidente, que para que uma negação assuma a dimensão da denegação freudiana (die Verneinung), são exigíveis determinadas condições lógico-discursivas, sem as quais toda negação poderia ser considerada uma denegação, o que constituiria absurdo suficientemente evidente para ser aqui mais considerado. É denegatória toda negação que se contrapõe a algo que não fora afirmado. Quando se nega uma afirmação, está-se simplesmente fazendo uso do recurso linguístico do não, sem o qual a própria práxis da linguagem – a fala ou a escrita - seria impossível. Mas quando se nega o que não fora dito, constata-se que o que é então negado existe como afirmação no pensamento do negador, que então pretende negar mas cuja afirmação, com isso, revela. Aplicando esta análise à frase que pretende dar à Sentença um grand final, interrogaríamos de onde procede esta satisfação pessoal que a presente condenação não traz a este julgador? Quem pensou ou falou nisso, senão o próprio julgador? Quem imaginaria que a condenação de um ex-presidente da República, de fato atípico como tantas foram as condutas que desfilaram ao longo desta Sentença, traria alguma satisfação pessoal àquele que a profere? 

Encerramos aqui este Parecer.     

Rio de Janeiro, 24 de julho de 2917 

LUCIANO ELIA

Psicanalista, Professor Titular da Área de Psicanálise e Coordenador do Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas do Instituto de Psicologia da UERJ, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise.

 

[1] Cf. Popper, Karl –

[2] Cf. Ogden & Richards, The meaning of the meaning, London,

[3] Cf. Freud, Sigmund  – A negativa (Die Verneinung), 1925, Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago Editora, Volume XIX.

[4] ADORNO, Theodor – Études sur la personnalité autoritaire, Paris, Allia, 2017.

 

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