Processos de destituição do poder familiar como palco para a interdisciplinaridade e a intersetorialidade: diversos saberes, diferentes serviços, assimetrias de poder e a prioridade absoluta da criança e do(a) adolescente

23/04/2017

Por Fernanda Ely Borba – 23/04/2017

Intervir em processos judiciais de destituição do poder familiar[1] muito possivelmente caracteriza-se numa das dimensões mais complexas do trabalho humano, devido ao impacto que a decisão de rompimento definitivo dos vínculos jurídicos entre pais e filhos(as) pode assumir para a vida das pessoas que, por algum motivo, não dispõem de condições adequadas para exercer as responsabilidades parentais da prole.

Se não bastasse, a carga dramática de tais processos judiciais é tensionada pelo fato de a maior parte das situações sociofamiliares ser fortemente marcada pelas expressões concretas da questão social[2], decorrentes dos processos de desigualdade social inerentes ao modo de produção capitalista.

Nesse cenário, as histórias de vida desenhadas nos referidos processos judiciais costumam ser tecidas por cuidados precários, negligências e privações[3] reproduzidas ao longo de gerações, repercutindo numa grande lacuna às mães e pais que se deparam com ações de destituição, tendo em vista o frágil repertório de que dispõem para a consecução dos cuidados parentais[4].

Em face disso, ancoradas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90), as destituições do poder familiar congregam olhares interdisciplinares[5] e a atuação intersetorial[6] e integrada por parte serviços de proteção e judiciais envolvidos na lide[7]. Ao menos em tese deveria ser assim, entretanto, muitos óbices ainda interferem na condução de tais processos judiciais sob o norte do estabelecido pela Lei n. 8069/90.

Muito embora as ações judiciais de destituição inscrevam-se em uma ritualística processual, a delicadeza dos interesses em disputa atribui traços bastante particulares a este procedimento judicial, haja vista a latente possibilidade de transformação das vidas que protagonizam tais processos. Outrossim, inevitável que os diversos atos processuais e as provas carreadas aos autos – especialmente os relatórios, laudos, avaliações, pareceres – venham a traduzir as nuances da dinamicidade da vida social.

A expectativa de que tais provas sejam contundentes, rígidas e direcionadas numa mesma ótica, ou mesmo desqualificá-las em razão de expressarem a contraditoriedade da vida social, acaba por negar a dinamicidade das vidas que subjazem a estes processos judiciais.

Se do ponto de vista teórico falamos em transdisciplinaridade[8], o cotidiano de trabalho em ações judiciais de destituição do poder familiar é implacável ao mostrar que estamos bastante distantes deste ideal. Sob o prisma dos diversos saberes que transitam pelas destituições, as assimetrias de poder e a hierarquização dos saberes ainda são uma constante.

Nessa toada, observamos ser ainda bastante comum a subalternização de áreas de conhecimento, sendo que especialmente as ciências sociais aplicadas e humanas acabam por assumir o status inferiorizado perante às demais.

Paralelo a isso, da perspectiva da relação desigual entre as diversas áreas de conhecimento que interagem nos processos de destituição, sobretudo aquelas que são revestidas de status inferiorizado, ainda são tratadas contendo atribuições e competências indissociadas. Diante disso, de forma imediatista, credita-se a todo e qualquer profissional da área de ciências sociais aplicadas e humanas as mesmas atribuições, de forma indistinta, olvidando-se que se constituem em especializações do conhecimento, inscritas na divisão sociotécnica do trabalho mediante competências e atribuições específicas e próprias de cada área de conhecimento.

Por outro lado, denotamos ainda observar que a relação entre as diversas áreas do saber no âmbito das destituições é tensionada por disputas corporativistas, cujas fronteiras estão em permanente desconstrução e reconstrução, revelando-se limitações na realização de um trabalho de fato integrado.

Sob o prisma da intersetorialidade, vemos que em termos práticos pouco se efetiva, haja vista a atuação fragmentada dos diversos serviços que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do(a) Adolescente[9]. Impera ainda a lógica individualista por parte dos serviços, cujas ações têm sido historicamente localizadas e fragmentadas, não compondo um projeto comum que permita a efetividade de sua abrangência e maior eficácia no alcance dos principais objetivos por elas buscados (BAPTISTA, 2012)[10].

Relativamente à intersetorialidade no campo das políticas e serviços que compõem a rede de atendimento à infância e juventude, torna-se fundamental ainda superar o desconhecimento quanto ao papel dos serviços, o que contribui para evitar a multiplicidade de ações esparsas, isoladas, e que muitas vezes sobrepõem-se umas às outras[11].

Portanto, diante de tudo isso, algumas vezes é num horizonte muito, mas muito distante que se encontra o foco na criança ou adolescente interessado(a) na ação judicial, considerando-se que a atenção está direcionada na resolução do emaranhado de impasses tais como os supracitados. Outras prioridades acabam por tornar-se mais urgentes, deixando a absolutez de repousar na criança e no(a) adolescente.

Por derradeiro, integrar esforços interdisciplinares e intersetoriais frente aos intricados dramas que atravessam os processos de destituição do poder familiar, mesmo que a contragosto, configura-se num caminho irreversível. Isto porque enfrentar o enigma do recrudescimento das desigualdades sociais que enreda as histórias de vida de famílias que são submetidas ao rompimento de vínculos familiares, de modo a se obter respostas efetivas na restituição de direitos sociais, implica em ultrapassar os muros da instituição, os poderes instituídos, o individualismo e a fragmentação, ainda familiares nas lógicas profissionais e institucionais que protagonizam tais processos judiciais. E neste tocante, não existe espaço para a discricionariedade.


Notas e Referências:

[1] MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Poder familiar. IN: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 5a ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011. pp.103-192.

[2] IN: IAMAMOTO, Marilda Villela. Questão social, família e juventude: desafios do trabalho do Assistente Social na área sociojurídica. IN: SALES, Mione Apolinário et al. (orgs.) Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

[3] Traduzidas na precariedade do acesso aos direitos humanos mais básicos: alimento, saúde, educação e proteção, dentre outros.

[4] Conforme Fávero (2007), é nesse cenário que as famílias mais vulnerabilizadas podem ser duplamente penalizadas. Em primeiro lugar em virtude da condição de miséria, e em segundo por responder a medidas de natureza coercitiva, dentre elas processo de Perda e Suspensão do Poder Familiar em razão, muitas vezes, de negligenciar os cuidados da prole à medida que também foi negligenciada pelo Estado. IN: FÁVERO, Eunice Terezinha. Questão Social e Perda do Poder Familiar. São Paulo: Veras Editora, 2007.

[5] Envolve a (re)construção do conhecimento unitário e totalizante do mundo frente à fragmentação do saber.  KAVESKI, F. C. G. Concepções acerca da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade: um estudo de caso. In: II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, Vitória/Vila Velha, 2005.

[6] É a articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social. JUNQUEIRA L.A.; INOJOSA, R. M.; KOMATSU, S. Descentralização e intersetorialidade: na gestão pública municipal no Brasil: a experiência de Fortaleza. Série Concurso de Ensayos CLAD. Caracas: UNESCO/CLAD, 1998. pp. 24.

[7] Não se pode ignorar que, como faz parte de uma população excluída socialmente e que o processo de exclusão vem se acentuando, a tendência é o aumento de ações de Perda e Suspensão do Poder Familiar aos serviços judiciais, os quais, perversamente, põem-se no lugar dos ausentes programas oficiais de auxílio previstos no ECA. Tais programas devem compor uma proposta ampla de política social, não se limitando a intervenções pontuais e focalizadas. A autora reflete ainda que as causas estruturais que determinam as condições de pobreza dos sujeitos não são passíveis de serem enfrentadas por meio dessas ações judiciais. Ou seja, o enfrentamento da desigualdade social perpassa necessariamente pela garantia dos direitos sociais intermediados pelas políticas públicas sociais (FÁVERO, 2007).

[8] Consiste na consequência normal da síntese dialética provocada pela interdisciplinaridade, quando esta for bem-sucedida (WEIL, D’AMBROSIO e CREMA, 1993, p. 31). WEIL, Pierre; D’AMBROSIO, Ubiratan; CREMA, Roberto. Rumo à Nova Transdisciplinaridade: sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Summus, 1993.

[9] CENDHEC. Centro Dom Elder Câmara de Estudos e Ação Social. Sistema de Garantia de Direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999.

[10] BAPTISTA, Myrian Veras. Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. Revista Serviço Social e  Sociedade, n. 109. São Paulo: Cortez, 2012. pp. 179-199.

[11] De acordo com Baptista (2012), a estruturação do Sistema de Garantia de Direitos da criança e adolescente não contempla uma política setorial apartada, mas ressalta a perspectiva de integralidade da ação, que atravessar de forma transversal e intersetorial todas as políticas públicas, incluindo nesse sistema o campo da "administração da justiça", ao lado do campo das "políticas de atendimento".


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


Imagem Ilustrativa do Post: Disgustito // Foto de: Mario Antonio Pena Zapatería // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/oneras/3837143758

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura