Processo eletrônico no novo CPC: é preciso virtualizar o virtual. Elementos para uma teoria geral do processo eletrônico (Parte 2)

11/09/2015

Por S. Tavares Pereira - 11/09/2015

Leia a parte 1 aqui.

A lei 11.419, a ênfase para a digitalização e o esmaecimento da virtualização

Muita digitalização. Zero de virtualização.

A lei 11.419/2006 – a lei do processo eletrônico – não contém o termo virtual.

Ela apresenta, entretanto: 9 ocorrências da palavra digital/ais; 5  da palavra digitalização; 3 da palavra digitalmente, 5 da palavra digitalizados/as e 1 da palavra digitalizando,  num total de 22 ocorrências de palavra com raiz “digital”.

As palavras apresentam-se espalhadas ao longo do texto, em diferentes dispositivos – artigos, parágrafos etc. Encontram-se na lei: “arquivos digitais”, “assinatura digital”, “certificado digital”, “assinado digitalmente”, “digitalizando-se o documento físico”, “equipamentos de digitalização”, “documentos digitalizados e juntados”, “processo de digitalização”, “documentos cuja digitalização seja tecnicamente inviável”, “digitalização de autos”, “mídia não digital”, “digitalmente”, “armazenados de modo integralmente digital em arquivo eletrônico” e “cópia digital de título executivo”.

Numa lei de 20 artigos, isso dá uma média superior a um aparecimento por artigo.  Ou seja, o Brasil dispõe de um processo eletrônico fundado na digitalização, como não poderia deixar de ser.  O que se está propondo é um avanço para um processo eletrônico que incorpore, de maneira robusta, a virtualização, porque esta é condição necessária, indispensável, para acelerar o processo decisório, exatamente o calcanhar-de-aquiles do processo eletrônico atual.

A ênfase legal para o fenômeno da digitalização escamoteou a importância de se ir além e de se prestigiar a introdução, no sistema processual, das possibilidades que somente a virtualização pode trazer.  Na verdade, conscientemente ou inconscientemente, fez-se um movimento de fuga da complexidade, o que compromete inteiramente o futuro do processo eletrônico. Como diz Niklas Luhmann,

Desde el punto de vista formal el concepto de complejidad se define, entonces, mediante los términos de elemento y relación. El problema de la complejidad queda, así, caracterizado como aumento cuantitativo de los elementos: al aumentar el número de elementos que deben permanecer unidos en el sistema, aumenta en proporción geométrica el número de las posibles relaciones, y esto conduce, entonces, a que el sistema se vea obligado a seleccionar la manera en que debe relacionar dichos elementos.”[1]

Parece fato inquestionável, hoje, que a mera digitalização das peças e demais elementos dos autos processuais – como tem ocorrido no Brasil -  não é condição suficiente para se alcançar um processo eletrônico com as características necessárias para colocar a tecnologia de forma otimizada a serviço de uma melhor prestação jurisdicional, qualitativa e quantitativamente falando.  É condição necessária, mas não suficiente. Muita esperança tem sido posta no processo eletrônico marcado apenas pela digitalização. Entretanto, tais expectativas somente serão atendidas pelo próximo processo, o processo virtual.

O parágrafo único desafiador

Há um dispositivo na lei 11.419/2006, na verdade um comando expresso, que tem sido esquecido pela maioria dos SEPAJs atuais. A impossibilidade de dar cumprimento a esse comando legal é, talvez, a expressão mais contundente da impotência do processo eletrônico digital existente no Brasil hoje.  Nessa norma, o legislador determinou que se fizesse o que é impossível fazer num processo desenhado e desenvolvido segundo os ditames da mesma lei. Mais parece um titubeio legislativo. Ou um devaneio.

Esse comando da lei 11.419/2006 só será atendido se o novo CPC der o passo avante. No âmbito de um novo processo, que permitirá o desenho de um sistema processual com as características expostas neste artigo, o legislador de 2006 será finalmente atendido.

Não se trata apenas de atender àquela determinação. O que o caso evidencia é que, num processo com nova concepção, abrir-se-ão caminhos para que o sistema processual efetivamente incorpore os meios de tirar a sobrecarga atual de trabalho dos operadores.

Diz o parágrafo único do artigo 14 da lei 11.419/2006: “Os sistemas devem buscar identificar os casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada.”

Qual sistema eletrônico de processamento de ação judicial, hoje, está apto a “buscar identificar” a ocorrência dos fenômenos jurídicos indicados?  O atendimento a esse comando legal supõe um imenso conhecimento do sistema a respeito de vários elementos dos autos processuais. E, pior, de distintos autos processuais. A disciplina legal em torno desses institutos demonstra a riqueza de informação necessária para se articular um algoritmo que possa, ao menos, sugerir a possibilidade de ocorrência de uma das situações processuais aventadas.  “Ah, pode-se ao menos informar que os dois processos têm as mesmas partes.” Será? Talvez até nesse nível elementar (partes) pode ser duvidoso, para alguns sistemas, expedir uma afirmação.

E não se diga que não se avançou porque há a necessidade de todos os processos estarem sob a forma eletrônica. Da maneira como estão sendo concebidos os SEPAJs, jamais será possível atender a esse comando legislativo. Pense-se, por exemplo, apenas nos detalhes para caracterização da coisa julgada.

O sistema processual eletrônico atual, suas peças digitais e suas limitações. Revisando e exemplificando.

No título do artigo, fala-se em virtualizar o virtual. Na verdade, poder-se-ia, no máximo, dizer virtualizar o digital. A provocação do título serve para realçar a diferença entre as duas ideias e marcar bem a distinção entre elas, às vezes utilizadas como sinônimas.

Papel, bits, bytes e informação

Se dígito é tomado com o sentido de bit (a menor quantidade de informação que um computador trata), então digitalizar tem o sentido de representar em bits. Embora o computador trabalhe com bits (é comum dizer-se que tudo é zeros e uns na memória do computador), pode-se dizer que é apenas num patamar mais elevado, de agrupamento de bits (os bytes), que os conteúdos começam a fazer algum sentido para os computadores e para os humanos. A letra A, por exemplo, é um conjunto organizado de bits e, em geral, ocupa um byte (oito bits) na memória. Entre o registro na memória e o que se vê na tela, entra um programa de computador que transforma os bits do byte num conjunto maior de bits que, representados no monitor, representam uma figura que os humanos conseguem “ler” (recuperar visualmente). Essa “mágica” transformadora – que sabe, pela quantidade e disposição dos bits nos bytes (inputs), como transformá-los em um outro conjunto de bits que, exposto numa tela, torna-o um símbolo legível por humanos (forma conveniente para o destinatário) - é a essência a realçar do processo de virtualização. Vê-se o que, de fato, é de outra forma.

É preciso levar essa mágica para um outro patamar no âmbito do processo eletrônico[2]. Ampliar essa mágica é implantar inteligência no sistema processual para que o sistema não apenas transforme bits em bytes, mas aprenda a lidar com conjuntos de bytes e possa, manipulando-os, auxiliar os humanos de uma forma mais efetiva.

A digitalização, já se viu, é um processo de representação feito num sentido. Por exemplo: do papel (imagem visual) para o disco magnético (registro físico-tecnológico). A virtualização também é um processo de representação, pode-se dizer, mas feito no sentido oposto. A digitalização vai no sentido dos bits, a virtualização, como aqui proposta, é um fenômeno que parte dos bits e, de maneira inteligente, chega a modelos de representação e a processos de tratamento da informação acessíveis e confortáveis para os humanos. O destinatário é o homem, a máquina não trivial do processo (Foerster).

As peças monolíticas dos autos em papel continuam nos autos eletrônicos. E toda a lógica do sistema processual orienta-se por elas.

Nos sistemas processuais eletrônicos brasileiros atuais, apesar de ter sido mudada a mídia – do papel para o disco rígido –, continua-se a trabalhar com peças (falando-se só delas, mas isso vale para o todo!) que não são virtuais. São peças digitais, mas não virtuais[3].  O suporte físico agora não é mais o papel. É um disco magnético.  O registro da peça processual, que no papel se fazia com letras e possibilitava a leitura direta pelos sentidos (olho humano), passou a ser feito com bits, cada um representando um minúsculo ponto de uma imagem, espacialmente localizado num plano. Dali, do disco rígido, somente um programa de computador pode remontar as “letras” para que o humano analise a informação registrada. Ou seja, toda recuperação de informação é necessariamente mediada[4]. Ocorre, no caso, uma desdigitalização.

O legislador distinguiu documento eletrônico de documento digitalizado (artigo 11 da lei 11.419/2006, por exemplo). No documento eletrônico, que também é digital, eleva-se um pouco o nível de conhecimento a respeito do que está digitalizado. Há programas que permitem, em arquivos nesse formato, mexer nas letras, mudar a forma, enfim, “editar”. Chega-se ao nível dos bytes ou dos caracteres.

Entretanto, as peças monolíticas, duras, permanentes, inteiras, continuam nos autos.  Mesmo num arquivo em formato “.pdf”, apesar da imposição de um formato de codificação,  trabalha-se com a “imagem do documento”, não com seus conteúdos. Aliás, o formato foi adotado principalmente para evitar a alteração dos conteúdos.

-Quero ver a petição inicial, o despacho tal, a sentença, o acórdão!

Sem problemas. Vai-se ao sistema, o arquivo digital é desdigitalizado e ganha forma, num monitor, para leitura pelo humano curioso. Ou é baixado para ulterior impressão.

Tudo se transforma, entretanto, se o curioso pretender ir um pouquinho além da virtualização primária:

-Quero ver a fundamentação do terceiro pedido! Ou a cláusula 2ª da CCT de 2010!

Claro, poder-se-á ver. Mas para isso deverá ser buscada a petição ou o texto da CCT. E, a partir daí, olho (até quando os olhos vão agüentar?) e setinhas levarão o interessado a extrair a informação da imagem exibida. Às vezes, depois de um bom incômodo. Os milhões despendidos em sistemas processuais, até agora, não nos levaram a esse patamar elementar de atendimento às curiosidades dos interessados: advogados, juízes, assistentes.

Isso porque as peças são produzidas e juntadas como algo insosso, sólido e indecifrável pelo programa processual. No máximo, os programas conseguem recompor os pontos ou bits, num monitor ou numa impressora, para refazer a imagem das letras no papel. Sabe-se, também, que, num arquivo ‘escaneado”, se o registro da imagem das letras é confiável, é possível recuperar as letras e gerar um arquivo editável (documento eletrônico). É o processo de reconhecimento ótico de caracteres (OCR), também conhecido como digitalização do conteúdo literal da imagem.

Em relação a todas essas imagens presentes nos autos processuais eletrônicos atuais, o máximo que o sistema processual “sabe” é que existe um arquivo digital, que deve ser aberto e exibido por determinado software capaz de ler cada ponto da imagem e exibir num monitor. Qualquer conteúdo informacional contido naquela imagem continua a ser extraído pelo usuário, visualmente, não mais a partir do papel (embora sejam muitos os que ainda imprimam antes de usar), mas a partir da imagem exposta num monitor.  As coisas não mudam muito quando se fala de um documento eletrônico, produzido por um editor de texto do mercado.

Vai-se do bit ao olho do advogado, do assistente ou do juiz.

O juiz e o gerente: a fraqueza e o poder.

Tome-se o exemplo das imagens “escaneadas” e juntadas aos autos. Podem ser as imagens de envelopes de pagamento de um processo trabalhista.  Quando o advogado baixa as imagens (ou o juiz as examina no monitor), não está lidando com arquivos virtuais. Trata-se, na verdade, de arquivos digitais.

A situação é completamente diferente na empresa onde está o sistema que gerou aqueles envelopes. O gerente pode pedir ao sistema, de uma forma muito simples (comando SQL, por exemplo), que liste os envelopes do empregado tal, dos meses em que houve o pagamento de horas extraordinárias além de 40. E que apresente um total. Depois ele pode pedir que mostre o envelope do mês em que houve maior excesso de horas. E o sistema exibe o envelope no monitor. Ele monta, na hora, este envelope. No linguajar de Gazzaniga, os elementos da entrada (dados que estão nos discos do sistema de folha de pagamento) são montados segundo o formato que o destinatário espera.

O que faz o juiz quando quer saber isso num processo?

Das três, uma: chama o assistente, envia os autos para o contador ou, então, usa olhos, caneta, calculadora e produz a informação! Com bravura...

Volte-se ao advogado que foi até o sistema processual, zanzou prá lá e prá cá, escolheu uma imagem de um envelope de pagamento e baixou.

Esqueça-se o arquivo baixado e pense-se nas páginas do sistema processual pelas quais o advogado transitou. Essas sim são virtuais. Elas não existem. Como o envelope de pagamento do gerente, elas são montadas para o usuário, na hora em que são buscadas. Provavelmente, um minuto depois, o navegador as montará diferentes, para o mesmo usuário ou para os outros milhões que, naquele momento, estão acessando o site.

Um navegador é exatamente isso. Um programa que “monta uma imagem de página” toda vez que é demandada. E a exibe no monitor. Se houver o acesso de um milhão de pessoas, simultaneamente, um milhão de vezes a página será “montada”, virtualmente (aquele processo inteligente que atua a partir das entradas, conhecendo-as, e preocupado com o que espera o destinatário momentâneo), para exibição nas telas dos usuários. A página é aquele ser existente por meio das tecnologias da informação e da comunicação. E que “é montada” (ocorre a mágica), não apenas exibida.

Virtualizar é introduzir inteligência no sistema processual

O que está por trás dessa transitoriedade de existência das páginas, dessa montagem para exibição, pode parecer trivial, mas não é. Ela supõe muito mais que o mero exibir de “pontos numa tela de monitor”, como já se viu nos tópicos anteriores.  Ela exige um nível superior, mais refinado, de conhecimento do sistema a respeito daquilo que ele está manipulando.  A imagem exibida não é apenas a projeção de um conjunto simples, ponto a ponto, univocamente, de bits existentes num disco rígido, num monitor (caso típico da exibição de uma imagem digital).

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O sistema passa a ser ciente e potencial manipulador/processador de “informações/dados” contidos nos documentos que armazena. E pode ser programado para tratar tais informações da maneira que se entender necessário.Numa construção virtual, o sistema, segundo sua estrutura operacional (seus algoritmos), “monta a história”, considerando os conteúdos a serem exibidos, os mecanismos de tratamento, a formatação a que devem ser submetidos etc. Para os fins deste trabalho, lembre-se, algo que distingue digital de virtual é a introdução de algum nível adicional de conhecimento sistêmico (consciência) a respeito dos conteúdos representados pelos bits e bytes de um arquivo digital, antes da exibição ao usuário. Alguns chamariam esse conhecimento de meta-informação.

Se a ideia é levada às peças processuais, percebe-se logo que a questão do tamanho se esboroa.  Não haverá peças processuais. Elas serão montadas no momento da construção, ou da consulta, com o tamanho que precisarem ter, de maneira inteligente e com o nível desejado (e programado) de “ciência” a respeito dos conteúdos.

As peças poderão ter “visões” adequadas e convenientes para quem as está acessando: juiz, advogado, partes (foco no destinatário, o que não significa que um não possa ver a visão do outro!).  Ver-se-á o que se desejar ver, no momento em que precisar ver, e, inclusive e se for o caso, nos limites do que for permitido ver (questão da publicidade!).

Por isso, é preciso virtualizar o digital. É necessário que o novo CPC preveja, expressamente, a possibilidade da virtualização das peças processuais e do processo como um todo (autos virtuais). Estar-se-á dando, assim, um passo fundamental para se avançar com o processo virtual para patamares em que a tecnologia será utilizada de maneira nobre e eficaz para auxiliar os operadores jurídicos: advogados, procuradores, assistentes e, claro,  notadamente o juiz, no momento de decidir.

Tamanho de uma peça processual: função de muitas variáveis

Originalmente, este artigo partia da questão do tamanho das peças processuais para refletir sobre a virtualização. Fazia uma análise das razões pelas quais as peças processuais têm se tornado cada vez maiores, passava pelas variáveis que se articulavam para gerar esse aumento de tamanho e, ao final, desembocava num desmonte analítico-cartesiano de uma peça-tipo para exibir os elementos sobre os quais a tecnologia poderia trabalhar, desde que se adotasse a virtualização. Esse exercício continua válido.

Lembre-se, seguindo na direção apontada pelo neurofisiologista Gazzaniga, que a “história” montada para a consciência parte de elementos de entrada. O processo transformador (intérprete) conhece esses elementos e as expectativas do destinatário (consciência) e gera uma saída que faça sentido para ele.

Variáveis e elementos de uma petição inicial

Faz-se, nos próximos subitens deste item 4, um exercício rápido, mas útil, para se pensar na virtualização de uma peça processual específica: a petição inicial. A partir dele, é possível pensar em espancar as peças digitais monolíticas do processo, substituindo-as por peças virtuais, inteligentes.

Tome-se uma petição inicial ideal, elaborada com um editor de texto comum. Considerá-la contextualmente e desmontá-la lógico-cartesianamente demonstra que: a)  uma imensidão de variáveis está em jogo e  contribui para um tamanho maior e b) a tecnologia pode ajudar, atuando sobre muitas dessas variáveis, para, entre outras coisas, “reduzir o tamanho”.

Algumas variáveis interessam para a virtualização. Outras não. Veja-se: o estilo pessoal do redator, a facilidade do famoso copia-cola trazido pelo computador, a facilidade de remendar a peça até o último momento (quem lembra do tempo do carbono? Os recém-formados, ao ouvirem carbono, pensam no efeito estufa! Os antigos ainda lembram do efeito “apaga em cascata, folha a folha!”), a facilidade de acesso e consulta à doutrina e à jurisprudência,  a qualidade do cliente e suas exigências, o “faturamento” (puxa, você cobrou isso para escrever uma folhinha?), a quantidade de pedidos, a quantidade de teses a serem expostas ou analisadas na peça, a quantidade de partes e testemunhas, a qualidade da tese – pacificada ou inovadora – o nível em que a peça está chegando ao processo, e por aí vai.

Num esforço de organização, que nem de longe pretende ser exaustivo ou adequado,  é possível agrupá-las em ao menos 5 categorias:

a) Subjetivas; b) Objetivo-contextuais; c) Tecnológicas; d) De conteúdo e e) Estruturais-textuais.

Variáveis subjetivas

Envolvem qualidades pessoais do redator. Exemplificativamente:  (i) estilo,  (ii) facilidade para expor objetivamente fatos e direito, (iii) nível de conhecimento da língua e dos direitos material e processual e (iv) familiaridade com os novos recursos tecnológicos. A tecnologia só mediatamente pode ajudar no aperfeiçoamento dessas variáveis.

Programas sérios e bem montados para a difusão intensa da cultura tecnológica – que ensinem a tecnologia, desmistifiquem, desmontem medos e “provem” as vantagens de sua utilização – precisam ser parte integrante do esforço de evolução para o processo virtual.

Variáveis objetivo-contextuais

Não estão ligadas aos redatores, mas ao seu entorno: (i) exigências do cliente, cada vez mais esclarecido e informado; (ii)  necessidade de “produzir para faturar”; (iii) a obrigação de “cumprir metas” e, apesar de tudo, manter a qualidade e as possibilidades processuais (não é só no âmbito judicial que as metas têm sido estabelecidas); (iv) os desencontros judiciais a respeito das teses jurídicas; (v)  os mecanismos de orientação constitucional somente agora estabelecidos com maior rigor; (vi)  a mobilidade constitucional, uma característica do neoconstitucionalismo calcado em princípios tomados como pautas sempre abertas; (vii) as exigências legal-formais para as diferentes peças processuais;  (viii) os rigores em relação à análise da forma, levando todos a pensar em errar pela abundância e (ix) os novos direitos, que chegam em gerações (Bobbio) e desafiam a capacidade de trato das questões e de julgamento em tempo razoável.

Esses são alguns exemplos de como o mundo circundante se reflete (projeta-se e condiciona) no trabalho do produtor da peça jurídica. Todas essas variáveis  tornam mais complexa a operação do direito e obrigam os agentes a utilizar a tecnologia, da forma mais eficaz possível, para superar os desafios. Num mundo de crescente complexidade, a tecnologia pode e deve ser acionada, de forma criativa, para otimizar as condições de trato dessa complexidade.

Em vários dos exemplos, a virtualização poderá postar-se ao lado do produtor da peça para o auxiliar: melhoria da qualidade sem perda de produtividade, atendimento facilitado das formas etc.

Variáveis tecnológicas

Ditas tecnológicas porque oriundas da chegada e da incorporação, na vida do direito e do processo, das tecnologias da informação e da comunicação.

Pode-se destacar: (i) as facilidades trazidas pela tecnologia, no sentido da busca de informação doutrinal e jurisprudencial; (ii) as facilidades de edição de texto, com o famoso copia-cola, encontram-se entre as campeãs da proliferação das peças longas; (iii) as facilidades para incluir coisas nos textos já prontos, que permite responder à inarredável tendência para “aperfeiçoar” a peça (é humano e generalizado!); (iv) o acesso aos mais  variados argumentos encontráveis na internet para acrescentar ao discurso; (v) os mecanismos de busca, as listas de discussão e o amadurecimento das soluções a muitas mãos e cabeças e  (vi) as redes sociais.

A tecnologia abriu caminhos para a geração do caos em termos de peça processual. Viu-se, acima, que há muita coisa trabalhando na direção da maior quantidade dos litígios. Nos processos daí oriundos, há uma vastíssima cesta de razões, de todas as origens,  para pedir e para contestar.

Nada é demais. Nem suficiente. Sempre cabe mais um argumento. À mão ou à máquina de escrever, ficar-se-ia nas primeiras páginas, após um esforço seletivo do que pudesse constituir o melhor argumento. Com internet, mecanismos de busca, decisões à vontade para consultar, conhecer e prever possíveis caminhos do processo (juízes, composições de turma etc), a abundância jamais é alcançada. Não há ponto de saturação.

Somente com  tecnologia bem usada, com ampla “virtualização” do processo (com ênfase para as peças), pode-se responder a essa exacerbação das possibilidades do jogo processual promovida pela tecnologia.  Tecnologia contra tecnologia.

Variáveis de conteúdo

Parece axiomático que a complexificação da vida social ampliou, de forma exponencial, a possibilidade de litígios. Não houve apenas um crescimento do número de litígios. Os litígios se qualificaram. Também eles ganharam complexidade. Quantidade de partes, testemunhas, pedidos, preliminares, prejudiciais.  Causas de pedir, razões de defesa.

As dificuldades de acesso à justiça matavam no nascedouro um torvelinho de demandas. Os novos procedimentos amplificaram o acesso. Trouxeram a facilidade para demandar. A afirmação das minorias e o reconhecimento de inumeráveis direitos, quase sempre ensejadores de grande controvérsia no âmbito moral, vieram contribuir para tornar mais amplas, complexas e extensas as demandas e seus fundamentos.

A tecnologia está na base desse incremento. Usá-la criativamente para responder a esse incremento é um dever.

Variáveis estrutural-textuais

Este é o grupo mais sensível e responsivo à virtualização. A virtualização funda-se, em boa medida, no tratamento de algumas dessas variáveis. Os elementos estrutural-textuais podem ser:

a) textos fático-expositivos; b) textos argumentativo-doutrinários; c) textos argumentativo-jurisprudenciais (ementas, trechos de acórdãos); d) textos auto-argumentativos e e) textos extrínseco-formais.

As possibilidades de reuso desses textos são evidentes. E o conhecimento dos elementos pelo sistema processual abre inumeráveis caminhos para a evolução do apoio sistêmico aos operadores.

A exposição dos fatos deverá ser feita pelo redator. Num primeiro momento, parece não haver espaço, neste ponto, para reuso de textos. Isso não é exato. Há milhões de ações percorrendo os canais judiciais onde os fatos são exatamente os mesmos. O mesmo raciocínio aplica-se para os textos auto-argumentativos, embora de forma mais restrita. O Sepaj deve, também, saber a relação desses fatos com os demais elementos da peça.

A utilização de suporte doutrinário, que ocupa boa parte das peças processuais, pode e deve submeter-se às possibilidades da virtualização efetiva do processo.

Os apoios jurisprudenciais poluem, permita-se a expressão, a imensa maioria  das peças processuais. Um mesmo texto – uma ementa ou trecho de acórdão – replica-se aos milhões pelas peças. Após o primeiro contato – quando o texto perde a condição de acontecimento informacional – tais textos passam a ser meros ocupantes de espaços em discos e em monitores.

Finalmente, há os textos extrínseco-formais. Eles se espalham aos milhões, nos processos, dos despachos às sentenças. Um alvará não precisa ter vida monolítico-digital, precisa ter vida virtual. Um mandado de busca e apreensão de certo bem vale-se de uma descrição que também deve ser a adotada no leilão e na carta de adjudicação e na decisão que julgar eventuais embargos.  Numa petição inicial, que foi escolhida para essa análise, os textos extrínseco-formais se estendem do vocativo ao requerimento. Os próprios pedidos podem e devem ser enquadrados nessa categoria. Eles são elementos fundamentais da “história montada” e o sistema deve ter firme e bem definido conhecimento desses elementos e suas relações nos autos. Eles serão o grande fio condutor da construção sistêmico-estrutural autopoiética[5].

Enfim, há imenso espaço, aqui, para se utilizar a tecnologia e caminhar, de forma consistente, para a virtualização efetiva das peças processuais. Pode ser exuberante o resultado do desmonte virtual das peças, com a introdução de visões próprias, segundo o interessado na leitura. Os chamados “hiperlinks” podem ser acionados de uma maneira eficaz, no âmbito do sistema processual, para permitir que o usuário, em vez de ler a peça, navegue na peça. É possível criar “visões da peça”, com ou sem jurisprudência, com ou sem doutrina, só auto-argumentos, só fatos, tudo sobre o pedido “x”, enfim, o que se desejar.


Notas e Referências:

[1] LUHMANN, Niklas. Introducción..., p. 137.  Luhmann refere-se a um sistema que tenha de dar conta, completamente, das referidas relações. Mais adiante, na mesma lição, p. 138, o jussociológico reporta que os sistemas avançam, em sua concepção estrutural, para abandonar esse conceito de complexidade simples (todos os elementos ligados a todos os outros) e  adotar o conceito de complexidade complexa (em que se estabelecem seletivamente as relações entre os elementos), ganhando em capacidade de variação.

[2] Em outro momento, propôs-se o princípio da máxima automação, uma forma diferente de transmitir essa ideia hoje tão necessária ao sistema eletrônico de processamento de ação judicial.

[3] Pensando-se apenas  na virtualização primária ou desdigitalização, as peças são virtuais. É óbvio que não se trata de raciocinar nesse nível elementar.

[4] Nos velhos tempos da informática, quando se registravam os caracteres em cartões perfurados, muitos humanos – inclusive o autor – eram capazes de ler os furinhos do cartão e saber que caracter estava registrado na coluna.

[5] “El sistema posee un campo de estructuras delimitadas que determinan el espectro de lo posible de las operaciones del sistema  […] Las estructuras condicionan el espectro de la posibilidad en el sistema; la autopoiesis determina lo que es posible de facto en la actualidad de la operación. El patrón de las estructuras precondiciona lo que es susceptible de ser tratado; la autopoiesis determina lo que de facto ha de ser tratado.”  Luhmann, Niklas. Introducción..., p. 104. Portanto, os elementos sempre estão referidos e orientados para as estruturas.  E vice-versa.  A estrutura sistêmica deve estar preparada para  receber os pedidos – e suas relações com os demais elementos da peça – para que a estrutura do processo específico (autopoiese) se construa com amplificação dessas relações. Isso maximiza as possibilidades de o sistema auxiliar os operadores.

GAZZANIGA, Michael S. Who´s in charge? Free Hill and the science of the brain. New York:Harper Collins Publishers, 2011. 260p.

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft).  Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 131003. Disponível em: http://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/00432-el-derecho-de-la-sociedad-niklas-luhmann.html. Acesso em: 10 nov. 2011.

__________________. Introducción a La teoria de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.

__________________. Legitimação pelo procedimento. Trad. De Maria da Conceição Côrte-Real. Brasilia:UnB, 1980. 210p.

__________________. Sistemi sociali. Fondamenti di una teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna:Società editrice il Mulino,  1990. 761p.

__________________. Sociología do directo II. Trad. De Gustavo Bayer. Rio de Janeiro:Edições Tempo Brasileiro, 1985. 212p.

PEREIRA, S. Tavares. Processo eletrônico, máxima automação, extraoperabilidade, imaginalização mínima e máximo apoio ao juiz: ciberprocesso.   Disponível em: HTTP://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/35515. Acesso em: 3 abr. 2009.

________________.  O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade.   Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1937, 20 out. 2008.  Disponível em: <HTTP://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp¿id=11824>. Acesso em: 16 mar. 2009.


S. Tavares Pereira é mestre em Ciência Jurídica (Univali/SC) e aluno dos cursos de doutoramento da UBA. É especialista em Direito Processual Civil Contemporâneo pela PUC/RS, juiz do trabalho aposentado do TRT12 e, antes da magistratura, foi analista de sistemas/programador. Advogado. Foi professor de direito constitucional, do trabalho e processual do trabalho, em nível de graduação e pós-graduação, e de lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados em nível de graduação. Teoriza o processo eletrônico à luz da Teoria dos Sistemas Sociais (Niklas Luhmann). 


Imagem Ilustrativa do Post: Google Keep note art  // Foto de: @sage_solar // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/sagesolar/17050225387

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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