PROCESSO E POLÍTICA

24/07/2020

Ao Meu Amigo, Irmão e Professor

André Luiz Maluf de Araújo

A relação entre processo e política é um dado que transparece. Talvez inexista estudo mais fascinante para um processualista apaixonado pela sua ciência. Mas o estudo dessa relação exige um enorme cuidado. Afinal de contas, o vocábulo política [gr.: πολιτικός; lat.: politĭcus; al.: Politik; fr.: politique] sofre de profunda indeterminação semântica, seja como substantivo, seja como adjetivo. As nuances da palavra espelham as nuances da própria realidade a que ela se reporta. Por conseguinte, sem uma precisificação do termo política, não se pode relacioná-la com segurança ao direito processual (e, por conseguinte, aos direitos procedimentais civil, penal, trabalhista, eleitoral, administrativo, tributário etc.). Para tanto, o léxico da língua inglesa traz valiosa contribuição. Lembre-se que a terminologia técnica anglo-americana possui três palavras para designar a política: 1) policy [= planos, programas ou planejamentos políticos]; 2) politics [= processo de luta ou disputa política]; 3) polity [= instituições políticas]. Logo, poder-se-ia eventualmente cogitar in abstrato de três relações: a) processo ↔ policy; b) processo ↔ politics; c) processo ↔ polity. No entanto, sabe-se in concreto que nem todas elas são pertinentes. a) Ao jurista do direito processual é indiferente o conjunto dos problemas técnicos que se possam enfrentar mediante projetos governamentais [policy]. A edição de políticas públicas, por exemplo, quando muito diz respeito ao direito administrativo (embora ativistas defendam - à margem de qualquer previsão constitucional - a instrumentalização do «processo» para a estruturação discricionária de políticas públicas pelo juiz). b) Tampouco lhe há de interessar o conjunto dos conflitos e dos consensos que marcam as relações entre os atores políticos [politics]. O pleito político por cargos eletivos, por exemplo, quando muito fala de perto ao direito eleitoral. c) Ao processualista importa, a bem da verdade, o conjunto das instituições que influenciam a política e a maneira jurídico-constitucional como elas se ordenam [polity] (para uma diferenciação, v., por todos: VOWE, Gerhard. Politics, Policy, Polity. Encyclopedia of Political Communication. v. 2. Org.: KAID, Lynda Lee e HOLTZ-BACHA, Christina. Sage Publications, 2008, p. 620-621). Isso porque o seu objeto de preocupações é o processo em juízo e, inevitavelmente, o juízo em si. Ou seja, o processualista se atrai tanto pelo processo (que controla as instituições judiciárias) quanto pelas instituições judiciárias mesmas (que por ele são controladas). De toda forma, é preciso não se confundir o direito-do-processo com o direito-das-instituições-judiciárias. Não raro, parte considerável dos processualistas diz fazer dogmática do processo [= teoria jurídico-normativa da garantia contrajurisdicional processual] quando, na realidade, faz dogmática da jurisdição [= teoria jurídico-normativa do poder jurisdicional] (sobre a distinção, v. nosso Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. <https://bityli.com/BZWoX>). Pior: muitas vezes, fazem policy disfarçada de science. Vendem obliquamente planos estratégicos de otimização jurisdicional como se fossem interpretações científicas da Constituição e das leis procedimentais. São menos processualistas [proceduralists] que jurisdicionalistas [jurisdictionalists], menos juristas [jurisconsults] que políticos [politicians].

De todo modo, quem concebe um modelo de jurisdição, concebe outrossim um modelo de processo. Existe correlação linear entre uma coisa e outra. A toda teoria sobre a jurisdição corresponde uma teoria sobre o processo, e vice-versa. Nem sempre o processualista as correlaciona explicitamente. A propósito, por vezes sequer tem consciência dessa correspondência. Porém, uma teoria sempre traz consigo a outra em potencial. Uma se subentende na outra. Enfim, o par jurisdição-processo apresenta dependência mútua. E essa interdependência é uma expressão do princípio republicano (sobre o tema, v. nosso Processo, jurisdição e república. <https://cutt.ly/5p4n0gr>). Pudera: o vínculo jurisdição-processo é um vínculo poder-contrapoder. Onde há um poder do Estado [+], ali há de haver as respectivas garantias contraestatais [-], que o limitam. Decididamente, não pode haver poder incontrastável. Ao poder administrativo corresponde as garantias contra-administrativas [v. g., licitação, concurso público, impessoalidade]; ao poder jurislativo, as garantias contrajurislativas [v. g., mandado de injunção, controle abstrato de constitucionalidade, proporcionalidade]; ao poder jurisdicional, as garantias contrajurisdicionais [v. g., advocacia, fundamentação, processo]; ao poder ministerial, as garantias contraministeriais [v. g., reclamação ao CNMP, reclamação às ouvidorias do MP, habeas corpus]; ao «poder constituinte derivado», as garantias contrarreformadoras [v. g., cláusulas pétreas] (para uma classificação das garantias, v. nosso Notas para uma garantística. <https://cutt.ly/vp8uIXB>). Não sem motivo o processo consta do rol de direitos e garantias individuais [CF/1988, art. 5º, LIV]. O cidadão em juízo tem o direito fundamental de primeira dimensão ao processo (ao «devido processo legal»). Portanto, processo é «direito de defesa» ou «direito de resistência» [Abwehrrecht] contra o Estado (sobre o processo como Abwehrrechte: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Se o processo é uma garantia de liberdade, ele é um direito de defesa. <https://cutt.ly/yp8dGuL>). Liga-se ao valor Liberdade. Logo, a teoria do processo como método, utensílio, ferramenta ou instrumento a serviço da jurisdição é uma doutrina autoritária. Mais: é um evidente non sense, pois configura captura, pelo Estado, de uma garantia instituída justamente contra ele. Pior: faz vista grossa à topologia constitucional do processo, que é previsto no título sobre direitos e garantias fundamentais [CF, Título II], não nos títulos sobre a organização do Estado [CF, Títulos III et seqs.]. Daí por que há uma relação de proporção inversa entre a jurisdição e o processo: quando a jurisdição cresce, o processo decresce de forma proporcional, e vice-versa. Afinal, quando a dimensão da autoridade estatal aumenta, o espaço de liberdade do cidadão diminui de forma proporcional, e vice-versa. Um vácuo processual implicaria uma super-, hiper- ou mega-jurisdição, aniquiladora e arbitrária; um maciço processual, uma sub-, hipo- ou mini-jurisdição, aniquilada e pusilânime. Com outras palavras: quanto maior a «força» do processo, menor a «força» da jurisdição [↑ P → ↓ J]; quanto menor a «força» do processo, maior da «força» da jurisdição [↓ P → ↑ J]. Por isso, todo jurisdicionalismo equivale a um antigarantismo, assim como todo garantismo equivale a um antijurisdicionalismo. 

Se é verdade que em todo modelo de processo está implicado um modelo de jurisdição, também é verdade que em todo modelo de jurisdição está implicado um modelo de Estado. Isso porque a definição de jurisdição interfere nas definições de jurislação e administração. Lembre-se que são três os poderes primordiais do Estado: i) jurislação [= criação do direito]; ii) administração [= aplicação parcial do direito]; iii) jurisdição [= aplicação imparcial do direito]. Como se vê, trata-se de três conceitos complementares, sem superposição, que, soldados, varrem por completo o horizonte da atividade jurídica do Estado. a) Numa situação de equilíbrio, o trio jurislação-administração-jurisdição cria um bloco simétrico de poderes independentes e harmônicos entre si (é o caso das democracias equilibradas contemporâneas - ex.: Alemanha, Itália, Espanha e EUA). Todavia, b) numa situação de desequilíbrio, cria-se aí um bloco assimétrico, em que um poder se sobrepõe aos outros dois: b.a) hipertrofiada a jurislação, o bloco administração-jurisdição decresce de forma proporcional (é o caso das supremacias legislativas - ex.: Luxemburgo, França até 2008 e Reino Unido até 2009); b.b) hipertrofiada a administração, o bloco jurislação-jurisdição decresce de forma proporcional (é o caso das ditaduras executivas - ex.: Itália fascista, Espanha franquista, Iugoslávia e União Soviética); b.c) hipertrofiada a jurisdição, o bloco jurislação-administração decresce de forma proporcional (é o caso das autocracias judiciárias - ex.: Brasil atual). Partindo-se de uma constante 6, pode-se afirmar numericamente que, no triângulo jurislação-administração-jurisdição, os pesos de ascendência se distribuem do seguinte modo: a) na democracia equilibrada, (2, 2, 2); b.a) na supremacia legislativa, (3, 2, 1), (3, 1, 2) ou (3, 1.5, 1.5); b.b) na ditadura executiva, (2, 3, 1), (1, 3, 2) ou (1.5, 3, 1.5); b.c) na autocracia judiciária, (2, 1, 3), (1, 2, 3) ou (1.5, 1.5, 3). Contudo, como já visto, quando a jurisdição cresce, o processo decresce de forma proporcional, e vice-versa. Isso significa que a dilatação do processo implica a retração da jurisdição e, em consequência, a dilatação do bloco jurislação-administração; da mesma maneira, a retração do processo implica a dilatação da jurisdição e, em consequência, a retração do bloco jurislação-administração. Nesse sentido, dentro do contexto constitucional brasileiro vigente atual, uma visão processual-garantista tende a compactuar com uma visão global mais democrático-liberal, pois deposita mais peso de ascendência sobre o eixo legislativo-executivo, cujos ocupantes são eleitos democraticamente pelo povo; em contrapartida, uma visão jurisdicionalista-instrumentalista tende a compactuar com uma visão global mais aristocrático-autoritária, pois deposita mais peso de ascendência sobre o eixo judiciário, cujos ocupantes não são eleitos, mas aprovados em concurso de provas e títulos, ou nomeados politicamente. A conclusão não poderia ser outra: em todo modelo de processo está implicado um modelo de Estado. Daí a razão pela qual em todo modelo processual há uma concepção sobre a política [polity]. E, não raro, isso tem servido para a intrusão de ideologias sorrateiras, que quase sempre os juristas mais instruídos se obstinam em esconder (deles, os menos instruídos - que compõem a esmagadora maioria - são meras correias passivas de transmissão)

Ainda assim, quem fizer autêntica dogmática processual, deverá fazê-la desde os fundamentos políticos do processo na Constituição. No final das contas, é nela que estão prescritos os modelos institucionais de Estado, jurisdição e processo para a Nação; é nela que se desenha a polity de um país; nela o processo é traço primordial desse desenho. A politicidade do processo radica na unidade do sistema constitucional positivo, não na multiplicidade das convicções ideológicas individuais. Ela é definida pela objetividade omnilateral da Constituição, não pelas subjetividades unilaterais dos seus intérpretes. Frise-se: é nenhuma a relevância das opções ideológicas dos juristas (cf. SOUSA, Diego Crevelin. Contraditório como critério para a definição da titularidade das funções processuais: a divisão funcional de trabalho entre partes e juiz. UFES [dissertação de mestrado], 2020, p. 136-137: “Em seu âmbito privado, cada um é livre para bandear para o espectro ideológico que cala à sua particular visão de mundo [...]. Mas não interessa à dogmática jurídica definir qual é a melhor ideologia, tampouco separar, desde o debate ideológico, os juízes engajados e desengajados. Para ela, juízes devem cumprir os deveres impostos pelo direito positivo (notadamente a Constituição), seja qual for a tonalidade ideológica pontualmente institucionalizada”). Se a Constituição Federal de 1988 confere ao processo a dignidade de direito individual [art. 5º, LIV], essa «decisão política fundamental» [grundlegende politische Entscheidung] há de sujeitar a comunidade dos processualistas, ainda que aqui e ali ocasionalmente sejam feridas suscetibilidades antiliberais. Ainda que simpatize com um pensamento aristocrático-autoritário, que reduza o processo a uma mera ferramenta do Estado-juiz a serviço de slogans e palavras de ordem como «eficiência» e «cooperação», o jurista deve abdicar de sua simpatia e interpretar o processo de modo democrático-liberal, reconhecendo nele uma garantia de liberdade do cidadão em juízo e, portanto, um freio ao arbítrio jurisdicional. Nada há no processo de «tecnicidade instrumental», «instrumentalidade técnica» ou «método operacional». Trata-se de expressões eufemísticas - com ares de «assepsia» - que ocultam a sujidade de razões exógenas instrumentais. Elas tentam desenquadrar o processo dos «direitos de defesa» [Abwehrrechte] e capturá-lo dos jurisdicionados para a jurisdição. Percebe-se, assim, que é impossível uma ciência processual desenraizada de uma ciência constitucional. Por sua vez, é impossível uma ciência constitucional desenraizada de uma ciência política. Logo, é impossível uma ciência processual desenraizada de uma ciência política. Várias questões sobre processo são insolúveis sem o domínio de temas como república, democracia, federação, povo, representação, legitimidade, Estado, governo, soberania, cidadania, liberdade, igualdade, lei, direitos humanos. Com cada um deles é imprescindível relacionar o processo, constituindo-se tematicamente uma genuína «ciência política do direito processual». Decerto se trata de temas que ainda escapam à dogmática tradicional brasileira, que é menos processual que jurisdicional-procedimental. É indiscutível, por exemplo, a importância analítica de questões sobre pressupostos, requisitos e condições de atos procedimentais (petição inicial, denúncia, queixa, citação, intimação, contestação, resposta à acusação, reconvenção, exceções, incidentes, audiência, sentença, recursos, ações impugnativas, etc.). Elas não são, entretanto, o limite do possível. Aliás, subjaz-lhes um substrato político, que não se pode relegar às bordas de uma indeterminada região extrajurídica. É preciso desentocá-los. Trazê-los à tona. Sem isso, jamais se saberá se um doutrinador faz ciência, respeitando os fundamentos políticos constitucionalmente positivados, ou se faz política desonesta, tentando manipular-nos com suas preferências políticas pessoais.

 

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