Por Adalberto Narciso Hommerding – 21/04/2015
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Parte 2
Na primeira parte do presente texto, tratei do procedimentalismo inerente à justiça processual de matriz rawlsiana. Nesta segunda parte, tratarei do substancialismo - ou substantivismo - para, ao final, analisar a viabilidade de se operar, ou não, com a concepção procedimental no âmbito do Direito brasileiro, verificando, ainda, se a concepção substantivista é ou não anti-procedimental. Pois bem.
O substantivismo propõe desenhos constitucionais e leituras constitucionais que impõem limites normativos à ação política e que estão mais adiante da simples proteção do procedimento considerado justificado[2]. A concepção substantiva, por um lado, é estrutural e põe confiança no procedimento, mas uma confiança até certo ponto; por outro lado, justamente por ser substantiva, encarrega-se de um aspecto que, diria eu, é um aspecto “existencial” do direito: os conteúdos materiais da Constituição, expressados nos direitos fundamentais, que, portanto, correspondem a verdadeiros “direitos morais”, nos moldes do que ensina, por exemplo, Ronald Dworkin e sua teoria da integridade. Neste aspecto, penso com Dworkin que a moralidade é veiculada pelos direitos fundamentais – ou seja, os direitos fundamentais terminam por se constituir em direitos morais – e, em especial, pelos princípios, introdutores do “mundo prático” no Direito (Streck) quando da aplicação da Constituição e dos textos legais, mais ou menos na perspectiva de que trata Lenio Luiz Streck com a Nova Crítica do Direito[3] no Brasil.
A conclusão de Aguiló Regla, portanto, é a de que se deve questionar o procedimentalismo “como” uma teoria da justiça, e que a harmonização de uma teoria da autoridade com a teoria da justiça sempre será o problema do direito e das democracias constitucionais, do qual não temos como escapar. É que o ideal democrático concebido como uma superação da exclusão política leva a ver a democracia não só como procedimento (forma), senão também, e principalmente, como resultado (substância)[4].
Dito de outro modo, o Direito possui uma “dimensão de autoridade” (facticidade) e uma “dimensão de justiça” (validez). Essas duas dimensões devem ser compatibilizadas, sem que uma, portanto, se esqueça da outra. Mas, ao se entender que o procedimentalismo deve ser visto como uma “teoria da justiça”, o acento deveria ser colocado na autoridade do Direito, o que faria com que o rosto de conteúdo moral do Direito ficasse esquecido. Em outras palavras, a justiça ficaria esquecida, sem o que não seria possível, portanto, falar em teoria da justiça mesmo. Ou seja, há um problema insolúvel, mas com o qual se tem de conviver caso se queira trabalhar com o Direito.
Nem o procedimentalismo pode ser tratado como teoria da justiça e nem a justiça pode depender só da autoridade, da facticidade do Direito, ou mesmo somente dos conteúdos morais, ou seja, da justiça, da validez do Direito. Aí penso que deve haver uma combinação que preserve a autoridade e a justiça, bem como a integridade e a coerência do Direito de que trata Ronald Dworkin[5]. É que a questão procedimental remete ao modelo ideal de sociedade democrática proposto por Dworkin. De fato – e aqui invoco Dworkin pela caneta de Albert Calsamiglia[6] -, é possível que um procedimento seja equitativo e seu resultado não seja justo; ou, ao contrário, um procedimento pode não ser equitativo, mas seu resultado justo.
E isso não é uma mera questão terminológica ou conceitual. Justiça e equidade são coisas distintas, assim como são substância e procedimento, preservada, em qualquer caso, a diferença ontológica. Mas, como isso ocorre? Como se pode falar de procedimento equitativo e resultado não justo, ou o contrário? Veja-se. Dworkin propõe a construção de uma ponte entre a ciência da legislação e a teoria do Direito (jurisprudência). Assim, questiona o paradigma positivista de John Austin, sobre o qual foi construída a ciência jurídica anglosaxona dos séculos XIX e XX. Como explica Calsamiglia[7], “Austin sostuvo que una ciencia completa del derecho debía tratar de dos problemas fundamentales. Por una parte la Ciencia de la Legislación se ocupaba de cómo debe ser el derecho. La ciencia de la Legislación es una disciplina prescriptiva y sus cultivadores son los políticos y filósofos. Junto a la Ciencia de la Legislación existe otra disciplina – la Jurisprudencia -, cuyo objeto es la descripción del derecho positivo. La Jurisprudencia responde a la cuestión de cómo es el derecho. Esta es la disciplina típicamente jurídica cultivada por los juristas. El paradigma positivista no sólo exigió la distinción entre las disciplinas, sino que sostuvo que no existían puentes entre la Jurisprudencia y la Ciencia de la Legislación”.
Mais adiante: “El punto de vista de Austin y de sus seguidores supone que el derecho es un producto acabado y que el científico del derecho tiene un objetivo fundamental: describir y explicar ese derecho. El científico es un descriptor de ese producto. Las teorías jurídicas de Kelsen y Hart están en esa línea y constituyen las versiones más sofisticadas del paradigma austiniano”[8].
O intento de Dworkin, segundo Calsamiglia, é demonstrar que a tarefa da ciência jurídica não é descrever o Direito desde fora, senão oferecer solução aos problemas que se colocam. Sua teoria quer possuir um aspecto justificador das decisões judiciais. E isso implica uma tarefa de construção e justificação, tarefa que deve ser incumbida aos científicos do Direito, aos filósofos do Direito e da política, que já não podem mais ser considerados “observadores imparciais”, mas “construtores de soluções”. Aí é que a ponte entre a ciência da legislação e a jurisprudência pode ser reconstruída.
Depois de analisar os desacordos entre os juristas sobre as soluções que oferece o sistema jurídico (desacordos factuais, desacordos sobre a idéia de justiça, sobre o significado das normas) e os problemas com relação à coação do Estado e a implicação das doutrinas convencionalistas e pragmáticas – o que não será trabalhado aqui em razão dos limites do texto -, Dworkin atinge o ponto que de fato interessa ao tratar da temática do procedimento: como operar com um modelo ideal de sociedade democrática? Ou, qual é o modelo que justifica a coação do Estado? Para Dworkin, uma sociedade democrática deve respeitar os seguintes princípios: equidade, justiça, legalidade (ou devido processo legal) e integridade. E são eles que justificariam a coação do Estado. A equidade é o valor do igual poder de cada um dos indivíduos nesta sociedade. Uma das especificações mais relevantes do princípio de equidade é que cada um deve contar como um e nada mais que um.
Neste aspecto, o princípio de dar a cada pessoa um voto é um princípio equitativo[9]. A justiça refere-se aos resultados que as decisões produzem. Qualificaremos uma decisão como justa se ela atribui e distribui os recursos conforme a um modelo ideal determinado. A equidade refere-se ao procedimento e à imparcialidade; a justiça, aos resultados. A distinção conceitual é importante porque podem ocorrer casos de decisões justas com procedimentos não equitativos e decisões injustas com procedimentos equitativos[10]. A legalidade, por sua vez, faz com que em uma sociedade democrática somente se admita como legítimo o poder juridificado. Assim, o poder estatal deve funcionar juridicamente. Uma sociedade bem desenhada não admite polícias paraestatais e nem o uso da força não-jurídica. O Direito distribui a força coletiva. É ele próprio a organização da força. Um bom direito democrático deve canalizar o exercício da força por meio dos canais estabelecidos.
Por fim, a integridade é uma virtude. Para Dworkin, uma sociedade democrática está bem desenhada se responde à virtude da integridade. Uma primeira intuição do que Dworkin entende por integridade pode expressar-se apelando à linguagem ordinária. Na linguagem natural dizemos que uma pessoa é íntegra moralmente quando age conforme a princípios. A virtude da integridade supõe não só a existência de alguns princípios, senão também sua organização coerente. Dworkin sugere tratar a comunidade como se fosse uma pessoa moral[11].
Agora, por que a justiça é diferente da equidade? E que significa essa distinção para o procedimento, para a teoria da justiça procedimental? Bom, um procedimento equitativo, segundo Dworkin, tende a produzir resultados justos. Assim, uma primeira intuição nos mostra que se garantirmos a equidade dos procedimentos será possível alcançar resultados justos. Isso não é certo, no entanto, porque, como dito, é possível que um procedimento não equitativo produza resultados justos e um procedimento equitativo produza resultados injustos.
Vejam-se, neste aspecto, os exemplos utilizados por Dworkin a que Calsamiglia[12] faz menção: “Supongamos que cuatro personas – tres chicos y una chica – deciden constituir una sociedad para hacer deporte. Cada una de ellas es propietaria de un 25 por 100 del capital por unanimidad diseñan unos estatutos en los cuales cada uno tiene un voto y las decisiones se toman por mayoría. La primera decisión importante es comprar un campo y construir una pista de tenis. Se adopta la decisión por unanimidad. Una vez realizada la operación, los socios se reúnen para redactar un reglamento de uso de la pista. Los tres chicos deciden por mayoría que la chica no puede jugar nunca. El procedimiento es equitativo, y, sin embargo, el resultado que produce es manifiestamente injusto. Este es un contraejemplo a la tesis ‘meramente procedimental’ de la justicia. Se necesita alguna cosa más que el procedimiento equitativo para que la decisión sea correcta. Pero – al mismo tiempo – sería posible un procedimiento no equitativo que produjera resultados justos, como por ejemplo que decidiera uno solo y que el contenido de la decisión fuera que todos tienen las mismas oportunidades de jugar y que, por tanto, la chica tiene los mismos derechos que los otros. En este caso tenemos un procedimiento no equitativo que produce un resultado justo”.
Veja-se, portanto, como não é possível cindir os âmbitos de justiça e equidade, ou, ainda, de substância e procedimento. A democracia e sua legitimação dependem ambas de um bom desenvolvimento de ambas as perspectivas. Assim, “no sólo debemos exigir que el procedimiento sea equitativo, sino que también produzca un resultado suficientemente justo para que pueda justificar la coacción del estado. La distinción conceptual es necesaria y nos alerta frente a legitimaciones procedimentales. Nos avisa que una comunidad no sólo se justifica por el procedimiento, sino también por el contenido de su derecho”[13].
O procedimentalismo, portanto, permanece no âmbito estrutural do Direito, tão-somente. O procedimento, por si só, não atende a um modelo de sociedade democrática. É que a forma não se separa da substância, em razão da “diferença ontológica” existente entre ambas[14]. O procedimentalismo, visto por esse aspecto da forma, sem que haja em sua base a substância, não é mais que facticidade pura, autoridade pura. Não tem a ver com validez e, portanto, não tem a ver com legitimação democrática, ainda que autores como Habermas, por exemplo, defendam o contrário.
A teoria procedimental, assim, não permite a legitimação da democracia, mesmo em sociedades pluralistas, porque as sociedades democráticas não são ou não podem ser “qualquer” tipo de sociedade. Elas são sociedades cujos atos estatais estão justificados conforme a princípios, e, dentre eles, a equidade e a justiça, ademais da legalidade e integridade. E isso é algo muito fácil de compreender – e de fato assim ocorre –, na medida em que, sem o atendimento a um destes padrões, destes princípios, a democracia modelar fica sem uma das suas “pernas”.
Ou seja, não há procedimento sem substância; não há procedimento que possa ou poderá ser “não-equitativo”; não pode haver equidade sem, ao menos, uma idealização de justiça, e assim por diante. Luigi Ferrajoli[15] demonstra que a conotação puramente formal de democracia não é suficiente para identificar todas as condições em presença das quais um sistema político é classificável como democrático e, mais especificamente, como uma “democracia constitucional”. Nesse aspecto, a democracia formal deve estar integrada por limites e vínculos substantivos ou de conteúdo, como são tipicamente os direitos fundamentais. E aqui, segundo Ferrajoli, há algumas razões que levam a pensar e concluir que uma noção puramente formal de democracia é insuficiente.
É que, primeiro, o Estado de Direito e, em especial, o Estado Constitucional de Direito, não admite a existência de poderes não submetidos à lei; então, a exigência de que os poderes públicos sejam exercitados pelo povo da forma que for, configurando, assim, a democracia como “poder popular” tão somente, não tem sentido. Segundo, há necessidade de um limite substancial para a sobrevivência da democracia; é que sempre é possível que, com métodos democráticos se suprimam, por maioria, os mesmos métodos democráticos (direitos de liberdade, direitos sociais, direitos políticos, pluralismo político, divisão de poderes, etc.). Terceiro, há um nexo indissolúvel, ignorado pela concepção puramente formal de democracia, entre a soberania popular, a democracia e as classes de direitos fundamentais substanciais, sobretudo os direitos de liberdade. Como diz Ferrajoli, “la voluntad popular se expresa auténticamente sólo si puede expresarse libremente. Y puede expresarse libremente sólo a través del ejercicio, más allá del derecho a voto, de las libertades fundamentales por parte de todos y cada uno: de la libertad de pensamiento, de prensa, de información, de reunión, de asociación. Por esto, no hay soberanía popular sin derechos de libertad individual”.
Por fim, quarto, não há uma “vontade unitária” do povo. O povo, assim, não é um “macro-sujeito” dotado de uma vontade própria homogênea. Assumir una perspectiva similar – e isto Hans Kelsen polemizou com Carl Schmitt há muitos anos – é assumir uma ideologia que leva, por fim, à legitimação do poder absoluto da maioria, e de algum “caudillo”, e a ocultar a pluralidade de interesses e das opiniões e o conflito de classes que atravessam o dito “povo”.
No plano do Direito é possível afirmar que a democracia substancial se realiza por meio da realização dos direitos e garantias fundamentais, que estão vinculados à justiça, aos conteúdos materiais e morais. A democracia formal, no entanto, é condição de possibilidade de realização da democracia substancial, e isso ocorre pela via do procedimento. Não é por outra razão que Robert Alexy[16], por exemplo, define o Direito como um conjunto de regras, princípios e procedimentos, e que as normas de procedimento devem ser de forma a que, com suficientes probabilidades e medida, seu resultado responda aos direitos fundamentais[17].
É assim que os tribunais, em verdade, como aponta Pablo Lucas Verdú, decidem sobre questões do poder político, reformulando questões que dizem respeito aos direitos fundamentais e do Estado Democrático e social de Direito[18]. É certo, também, que o procedimento resolve uma controvérsia, mas não a decide. Os únicos que decidem são os participantes no procedimento e são eles os únicos que podem adotar ou não atitudes imparciais[19], caso dos juízes que devem produzir sua decisão a partir dos argumentos das partes, desde a intersubjetividade, portanto, e não de modo “solipsista” e arbitrário. O procedimento e a substância, assim, parecem atender a um ideal de Constituição como um conjunto de “normas fundamentais”, nos moldes de que trata Riccardo Guastini[20].
Essa concepção, que é uma concepção adotada hoje em dia pelos “estudiosos do Direito Público” - como diz Guastini -, a meu juízo, não está e não pode estar vinculada a uma concepção mecânica ou meramente procedimental de Constituição em face justamente do paradigma neoconstitucional e seus três elementos a que faz menção Miguel Carbonell[21], ou seja, os textos constitucionais com alto nível de substancialidade, as práticas jurisprudenciais realizadas sob parâmetros interpretativos novos e os desenvolvimentos teóricos que, ao mesmo tempo em que explicam, criam os fenômenos jurídicos.
Estes três elementos, penso, não são nada mais nada menos que uma conseqüência de se aceitar a Constituição como um conjunto de normas fundamentais que, segundo Guastini[22], podem ser consideradas as seguintes: “1) las normas que disciplinan la organización del Estado y el ejercicio del poder estatal (al menos en sus aspectos fundamentales: la función legislativa, la función ejecutiva y la función jurisdiccional), así como la conformación de los órganos que ejercen esos poderes (por ejemplo, las normas que disciplinan la formación del órgano legislativo); o bien 2) las normas que disciplinan las relaciones entre el Estado y los ciudadanos (por ejemplo, las eventuales normas que reconocen a los ciudadanos derechos de libertad); o todavía 3) las normas que disciplinan la ‘legislación’ (entendida en sentido ‘material’, como la función de crear el derecho), o sea, las normas que confieren poderes normativos, que determinan las modalidades de formación de los órganos a los que esos poderes son conferidos, que regulan los procedimientos de ejercicio de esos poderes, etc.; o en fin 4) las normas (…) que expresan los valores y principios que informan todo el ordenamiento”.
Veja-se que uma concepção de Constituição no sentido de conjunto de normas fundamentais, caso das Constituições brasileira e espanhola, por exemplo, não comporta concepções meramente mecânicas ou procedimentais. Eu diria mais, já em repetição: a concepção mecânica não é uma concepção que pode ser aproveitada pelo neoconstitucionalismo que condiciona sua própria existência a um catálogo constitucional de direitos morais fundamentais que colocam acento na dimensão substantiva do Direito e que, no entanto, não se separa da procedimentalidade. Não tem sentido, portanto, por tudo o que se disse até aqui, falar de uma justiça processual pura; algo, a meu ver, um pouco “utópico”.
Também não há por que falar de uma justiça processual perfeita, que está vinculada a concepções mecânicas, e não a concepções normativas de Constituição. E tampouco tem sentido falar de procedimentalismo “como” procedimentalismo, se considerado desde o ponto de vista da terceira concepção de justiça processual de Rawls, qual seja, do ponto de vista da justiça processual imperfeita. É que, repito, o procedimentalismo, do ponto de vista da concepção de justiça processual imperfeita, não é procedimentalismo, senão substancialismo – como ensina, por exemplo, Aguiló Regla -, que reconhece a convivência de normas constitutivas e reguladoras, e a idéia de Constituição normativa, que assegura os limites do exercício do poder político, impondo a Constituição sobre a lei e garantindo aos cidadãos os direitos fundamentais como posições subjetivas que, por sua vez, servem de guias da ação do Estado e de seus órgãos.
Há que se lembrar o que ensina Juan Ruiz Manero[23]: as normas constitutivas, que conferem poderes normativos, têm sentido enquanto orientadas à produção ou aplicação de normas reguladoras. E isso, penso, é fundamental. A Constituição brasileira é política e jurídica. O Brasil, porém, é um país de “modernidade tardia” (Streck), razão pela qual a Constituição deve ser vista como mais jurídica que política, justamente porque se necessitam colocar freios ao poder político. Há pouco mais de duas décadas o Brasil saiu de um regime ditatorial. A Constituição tem quase a mesma idade que a do regresso à democracia. E não se pode esquecer que colocar freios ao poder político é algo que uma Constituição jurídica pode fazer melhor.
Em conclusão, as ditas normas constitutivas, ao menos no caso do Brasil, perdem espaço para as normas reguladoras, garantidoras dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos das minorias, uma vez que servem como limites das competências do poder político. Dito de outro modo, no Brasil não há como pensar em possibilidade diversa da de Constituição jurídica e normativa, e substancial: a Constituição “real” (Hesse) não deixa! A concepção puramente processual, ou seja, o procedimento no primeiro sentido de que trata John Rawls, é algo possível. Mas, como dito, é algo “possível”, o que não necessariamente significa que assim será. No caso da Constituição brasileira isso não ocorre e também não é possível, pois, ao lado das normas constitutivas, há um vasto catálogo de normas reguladoras que garantem os direitos fundamentais, o que acentua seu forte caráter substantivo.
Veja-se o que foi dito sobre a Constituição como um conjunto de normas fundamentais (Guastini). O segundo caso de justiça processual de que trata Rawls, o da justiça processual perfeita, também não se aplica à perspectiva brasileira. É que, como dito, esta justiça está vinculada à concepção mecânica de Constituição, em oposição à Constituição normativa que é a concepção mais forte no caso do Brasil. E isso por si só já é uma condição suficiente para que não se possa caracterizar a Constituição brasileira com uma concepção procedimental. Somente restaria a possibilidade de se adotar a terceira concepção, a de justiça processual imperfeita, e esta, por uma questão de lógica, também não pode ser adotada, ao menos no que diz respeito com a sua terminologia.
É que a Constituição brasileira, em verdade, apesar de estabelecer procedimentos por meio das normas constitutivas, também estabelece direitos e deveres por via das normas reguladoras. Isso faz com que ela não possa em hipótese alguma ser chamada de “Constituição procedimental”. Quero repetir e acrescentar aqui, por fim, o fato de que a Concepção substantiva também não é anti-procedimental, pois o procedimento é uma condição de possibilidade de realização dos direitos[24] que são estabelecidos por via das normas reguladoras. Isso leva a ter em consideração o fato de que o procedimentalismo puro ou perfeito, no âmbito brasileiro, não é viável, senão somente o procedimentalismo “não-procedimental”, caso do procedimentalismo imperfeito que, como dito, não passa de substancialismo.
Notas e Referências:
[2] AGUILÓ REGLA, Josep. Cuatro pares de concepciones opuestas de la constitución. In: AGUILÓ REGLA, Josep; ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Fragmentos para una teoría de la constitución. Madrid : Portal Derecho, S.A., Iustel, Biblioteca Jurídica Básica, 2007, p. 48.
[3] Consulte-se STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2006.
[4] Cfe. AGUILÓ REGLA, Josep. Cuatro pares de concepciones opuestas de la constitución. In: AGUILÓ REGLA, Josep; ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Fragmentos para una teoría de la constitución. Madrid : Portal Derecho, S.A., Iustel, Biblioteca Jurídica Básica, 2007, p. 50.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo : Martins Fontes, 2002; DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo : Martins Fontes, 1999.
[6] CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 155-176.
[7] CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 157.
[8] CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 158.
[9] Cfe. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 164.
[10] Cfe. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 164.
[11] Cfe. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 158-164.
[12] Cfe. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 165.
[13] Cfe. CALSAMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Revista Doxa, n. 12. Alicante : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1994, p. 166.
[14] Veja-se o que Lenio Streck escreve sobre a diferença ontológica herdada da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger que, no Direito, uma vez compreendido como lócus privilegiado da compreensão, impede uma cisão entre os âmbitos procedimentais e substanciais: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3. ed. rev. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2001. Também o que sustentam no Direito norte-americano Leonard Tribe e Michael Dorf, para quem o procedimentalismo é nitidamente substancial, possuindo um caráter “tenazmente” substancial. TRIBE, Laurence, DORF, Michael. Hermenêutica constitucional. Tradução de Amarílis de Souza Birchal; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte : Del Rey, 2007.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Las garantías constitucionales de los derechos fundamentales. In: Revista Doxa, n. 29. Alicante : Departamento de Filosofía del Derecho Universidad de Alicante; Marcial Pons, 2007, p. 15-31.
[16] ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo : Landy, 2001.
[17] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Versión castellana: Ernesto Garzón Valdés. Madrid : Centro de Estúdios Políticos y constitucionales, 2001, p. 458.
[18] LUCAS VERDÚ, Pablo. La Constitución abierta y sus “enemigos”. Madrid : Beramar S.A., 1993, p. 74.
[19] AGUILÓ REGLA, Josep. Cuatro pares de concepciones opuestas de la constitución. In: AGUILÓ REGLA, Josep; ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Fragmentos para una teoría de la constitución. Madrid : Portal Derecho, S.A., Iustel, Biblioteca Jurídica Básica, 2007, p. 50.
[20] GUASTINI, Riccardo. Sobre el concepto de constitución. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos. Madrid : Trotta, UNAM, 2007, p. 17.
[21] CARBONELL, Miguel. Presentación: el neoconstitucionalismo em su laberinto. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos. Madrid : Trotta, UNAM, 2007, p. 9-12.
[22] GUASTINI, Riccardo. Sobre el concepto de constitución. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos. Madrid : Trotta, UNAM, 2007, p. 17-18.
[23] RUIZ MANERO, Juan. Una tipología de las normas constitucionales. In: AGUILÓ REGLA, Josep; ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Fragmentos para una teoría de la constitución. Madrid : Portal Derecho, S.A., Iustel, Biblioteca Jurídica Básica, 2007, p. 65-66.
[24] Que se veja o caso do procedimento judicial, o processo, que é uma condição de possibilidade do exercício da jurisdição e de realização dos direitos e garantias fundamentais. Neste sentido: HOMMERDING, Adalberto Narciso. Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo civil. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2007.
Adalberto Narciso Hommerding é Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul; Pós-Doutor pela Universidade de Alicante, Espanha, sob a supervisão do Professor Manuel Atienza; Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo/RS; Professor na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul – AJURIS, e na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de Santo Ângelo/RS. Também é autor de livros e artigos jurídicos em revistas especializadas. E-mail: adanarhom@via-rs.net
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