Prisão: uma fábrica de delinquentes                          

03/08/2019

Para o criminólogo Alessandro Baratta,

assistimos hoje a uma crise irreversível da legitimação instrumental dos sistemas punitivos. A função de prevenção especial positiva (ressocialização do infrator), que foi a base dos programas de reabilitação nos Estados Unidos e na Europa nos anos setenta, pode ser considerada hoje como uma hipótese refutada pelos programas de pesquisa de controle. A função de prevenção geral negativa (objetiva a dissuasão dos potenciais infratores), na qual se baseia grande parte do consenso que ainda goza o sistema penal no sentido comum pode ser considerada, por sua vez uma hipótese empiricamente não verificada e impossível de sê-lo. A função de prevenção geral negativa é hoje sustentada, especialmente nos Estados Unidos, em duas formas alternativas ou complementarias: a ‘neutralização’ do infrator (incapacitation) e a ‘intimidação específica’ (specific deterrence).[1]         

Das finalidades da pena de prisão apontadas - retributiva do mal causado pelo delinquente; prevenção da prática de novas infrações, através da intimidação do condenado e de pessoas “potencialmente criminosas” e regeneração do preso, no sentido de transformá-lo de criminoso em não criminoso - apenas uma suposta “retribuição”, cruel e inumana, vem sendo fantasmagoricamente atingida. Diante da realidade atual é inevitável concluir que o sistema penitenciário atua como verdadeiro fomento da reincidência e da criminalidade.

Neste sentido, Michel Foucault, para quem: “A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, se têm mais chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos (...)[2]

Mais adiante, Foucault observa que:

a prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil,  para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não ‘pensar o homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa’; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinquentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder (...)[3]

Sobre a prisão como “fábrica de delinquentes” e como uma “monstruosa opção”, valiosas são as palavras do Ministro Evandro Lins e Silva:

Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonham os nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinseri-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o ex-condenado só tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinquentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de condenados.[4]

Sem dúvida, a privação da liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo, outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até maior. A falta de privacidade, privação de ar, de sol, de luz, de espaço em celas superlotadas[5], os castigos físicos (torturas), a falta de higiene, alimentação nem sempre saudável, doenças inimagináveis[6], violência e atentados sexuais cometidos ora pelo próprio companheiro de infortúnio, ora pelos próprios carcereiros ou agentes penitenciários, a humilhação imposta, inclusive aos familiares dos presos, o uso de drogas como meio de “fuga” etc.[7]

Ao chegar a uma das penitenciárias do Estado, o condenado perde, além da liberdade, o seu nome, que é substituído por um número de matrícula. Muitas vezes perde sua roupa e recebe um uniforme, quando não perde todos os seus pertences pessoais para outros presos ou até mesmo para os guardas do presídio, enfim, perde o condenado a prisão toda a sua identidade, sua honra, sua moral...    

É, portanto, uma ingenuidade, uma ilusão acreditar que aquele que sobreviveu - muitos acabam morrendo na própria prisão - a todos os malefícios da prisão, estará “ressocializado” podendo ser “reintegrado” a sociedade. Aquele que cumpriu pena privativa de liberdade estará fadado à marginalidade, estará estigmatizado pelos anos que lhe restam de vida.[8]

O regenerado é “apenas uma múmia ressequida e meio louca” escreveu Dostoievski em sua obra autobiográfica Recordação da Casa dos Mortos, onde descreve o período de 4 anos em que esteve preso na Sibéria.

Outra contradição da pena está no seu próprio caráter retributivo e de reforma do condenado.

Quanto mais duradoura for a pena privativa de liberdade, maiores serão suas contradições e mais distante estará o preso de uma adaptação à vida fora da prisão. Por mais incrível que possa parecer, aquele que ficou preso durante anos acaba se incorporando a “sociedade prisional”, isto porque dentro das prisões existem outros costumes, outra linguagem, outros “códigos”, outras “leis” passam a vigorar, as quais são impostas pelo perverso sistema penitenciário. Aquele que ousar afrontar as normas estabelecidas pelo sistema certamente será punido, muitas das vezes, com a pena capital.[9]

Com o decorrer dos anos ocorre o fenômeno da “prisionização[10], ou seja, a “assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos, precipuamente, pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propenso a melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações e atitudes do criminoso habitual. Na prisão, pois, o interno mais desenvolverá a tendência criminoso que trouxe de fora do que anulará ou suavizará.[11] Na prisão, ao contrário do que alguns insistem em afirmar, “os homens são despersonalizados e dessocializados”.[12]

Augusto Thompson, ao abordar a contradição do sistema penitenciário e da pena de prisão afirma que, “se o preso demonstra um comportamento adequado aos padrões da prisão, automaticamente merece ser considerado como readaptado à vida livre.[13]

Thompson observa o antagonismo e as divergências inconciliáveis entre as formas de vida dentro e fora da prisão. Realmente, trata-se de um grande equívoco imaginar que aquele que se submeteu às regras intramuros e que manteve um comportamento satisfatório dentro da prisão estará, por isso, apto ao convívio social e a vida livre.

Não é demais lembrar, como dito alhures, que dentro das prisões forma-se outra sociedade, com regras e leis próprias, muitas vezes antagônicas, em relação ao mundo de fora da prisão. Assim, alguém que já se adaptou completamente à prisão, muitas vezes, já se encontra desadaptado à vida livre.[14]

Na prisão, os presos são obrigados a obedecerem, além da lei, várias regras de comportamento que lhes são impostas pelo sistema penitenciário e, algumas delas, por mero capricho da direção do estabelecimento, sem qualquer critério. As punições para aqueles que não se “adaptam”, ou melhor, se rebelam contra o sistema, são inúmeras. Por outro lado, aqueles que “colaboram” e se mostram “dóceis[15] com a direção e com a administração penitenciária são premiados com “recompensas” que, em verdade, já constituem direitos dos presos.[16]

                       

Referindo-se aos “recursos para o bom adestramentoMichel Foucault afirma que:

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (...)[17] 

Diante deste sistema penal perverso, degradante, desumano, torpe e cruel, somado a hipocrisia do Estado em ocultar os verdadeiros fins da pena, é imprescindível buscar alternativas que, embora longe de solucionar os problemas, possam, ao menos, amenizá-los. Mas, para isso, urge que se admita, desde já, o fracasso da pena de prisão[18] e a falácia do atual sistema.

 

 

 

Notas e Referências

[1] BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 5, janeiro-março de 1984, p. 17-18.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.  Trad. Lígia M. Pondé Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987. p. 234.

[3] FOUCAULT, ob. cit., p. 235.

[4] SILVA, Evandro Lins e. De Beccaria a Filippo Gramatica.  Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Renavan, 1991, p. 40.  Eugenio Raúl Zaffaroni afirma que: “A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante (...) O preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privado de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais, etc.).” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdida: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p.135).

[5] Arminda Bergamini Miotto vê nas grandes penitenciárias, bem como na superpopulação carcerária fatores de incremento à reincidência, segundo a professora “nas penitenciárias de grande porte, geralmente situadas na região da capital para onde convergem todos os condenados da respectiva Unidade da Federação, lotando-as e superlotando-as, as circunstâncias fazem com que a situação seja essa, ainda que a administração entenda que deva ser diferente e deseje que possa sê-lo. Sem falar no que, ademais, costuma acontecer numa penitenciária de grande porte,  provavelmente superlotada, aí está uma relevante explicação para o tão grande número de reincidentes entre os egressos.” (MIOTTO, Arminda Bergamini. O controle social sob o ponto de vista criminológico. A prevenção da reincidência. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, 22, out/dez. 1985).

[6] Sobre as doença na cadeia, o médico Drauzio Varella nos informa que: “As doenças de pele,  por exemplo, epidêmicas nas celas apinhadas, compreendiam a dermatologia inteira: eczemas, alergias, infecções, picadas de percevejos, sarna e a muquirana, um ácaro ousado que se esconde nas dobras das roupas, capaz de saltar longas distâncias de uma pessoa à outra.” (VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 91).

[7] Hulsman observa que: “o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril.” (HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói -RJ, Luam, 1993, p. 62).

[8] Carnelutti observa que: “Ao aproximar-se do fim do período prisional, aguarda o sentenciado, com alegria, a liberdade. Ao sentir-se livre das grades, contudo, sente o seu drama: não consegue emprego, em virtude de seus maus antecedentes. Nem o Estado e nem o particular lhe facilitam uma colocação. A pena, portanto, não termina para o sentenciado.” (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. São Paulo: Conan, 1995, p. 8).

[9] Maria Lúcia Karam informa que: “Grande parte destes homicídios brutais, entre os próprios presos, nasce da convivência forçada, que faz com que qualquer incidente, qualquer divergência, qualquer desentendimento, qualquer antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporções insuportáveis. O desgaste da convivência entre pessoas, que, eventualmente, não se entendam, aqui é inevitável. As pessoas que não se ajustam, os inimigos, são obrigados a se ver todos os dias, a ocupar o mesmo espaço, o que, evidentemente, acirra os ânimos, eleva a tensão, exacerba os sentimentos de ódio, levando, muitas vezes, a que um preso mate outro, por motivos aparentemente sem importância.” ( ob. cit., p. 182).

[10] Para Zaffaroni, “esta imersão cultural não pode ser interpretada como uma tentativa de reeducação ou algo parecido ou sequer aproxima-se do postulado da ideologia do tratamento; suas formas de realização são totalmente opostas a este discurso, cujo caráter escamoteador é percebido até pelos menos avisados. A mera circunstância de que 70% dos presos da região não estejam condenados mostra a evidente confissão da falsidade do discurso ressocializante.” (Ob. cit. p. 136). Alessandro Baratta se refere ao processo de socialização ao qual é submetido o preso, sob um duplo ponto de vista: da “desculturação” (desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade) e o da “aculturação” ou “prisionização”.  Este último, trata-se, segundo ele, “da assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária...”  (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 184).

[11] THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 1993 p. 95-96.

[12] HULSMAN, Louk. Ob. cit., p. 63.

[13] THOMPSON, Augusto. Ob. cit. p. 11.

[14] Idem, p. 13.

[15] Para Michel Foucault “a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”. Ob. cit., p. 127.

[16] Segundo Maria Lúcia Karam “os regulamentos, aos quais o preso deve obedecer sem explicações, nem possibilidades de questionamento, a permanente vigilância, a aplicação de punições por quaisquer transgressões àqueles regulamentos, o sistema de regalias, em que direitos básicos se transformam em recompensas por comportamentos que a administração define como bons, sufocam as melhores qualidades da pessoa e incentivam a submissão, a delação, a falta de iniciativa, a passividade, a dissimulação e a covardia.” (KARAM, Maria Lúcia. Ob. cit. p. 182-183),

[17] FOUCAULT, Michel. Ob. cit., p. 153.

[18] Segundo Pedro Armando Egydio de Carvalho, “estatísticas confiáveis, relatadas em trabalhos oficiais, dão conta da ineficácia do aprisionamento. Da parte do Estado, a manutenção do presidiário é caríssima, em torno de três salários mínimos mensais; ademais, o custo, em virtude de serem os cárceres fatores de incentivo à criminalidade futura, é um desperdício do dinheiro público, aplicado para nutrir uma reincidência criminal da ordem de 47%.” (CARVALHO, Pedro Armando Egydio de. O sentido utópico do abolicionismo penal, in Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 143).

 

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