Por Rosimeire da Silva Meira - 14/05/2017
Consoante previsão contida no art. 312 do Código de Processo Penal Brasileiro a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Entretanto a convicção de que a prisão preventiva garantirá a “ordem pública” não passa de mera manipulação para que a sociedade se sinta hipoteticamente segura, em detrimento da liberdade do cidadão sujeito de direitos que sequer foi oportunizado o contraditório e já se depara apenado cumprindo sua pena no regime mais severo possível, porquanto é isto que prisão preventiva representa, um cumprimento antecipado da pena no regime fechado. Na prisão preventiva, primeiro se castiga e depois se processa. O preso provisório certamente está em situação pior do que o preso definitivo, não por menos as prisões cautelares são consideradas medidas extremamente excepcionais, admitida em ultima ratio.
Destarte, como elucidar que a prisão preventiva deixou de ser medida extremamente excepcional e passou a ser praticamente uma regra geral, com tantos apaixonados defensores, verdadeiros fãs da segregação cautelar?
Os decretos de prisão preventiva vivenciados na prática são na maioria rhetorike e estampados de frases feitas, verdadeiras palavras-chave do texto que fundamenta prisão cautelar. Quem, militante na área criminal, nunca teve uma prisão em flagrante convertida em prisão preventiva ou um pedido de revogação de prisão cautelar negado que não contenha, no mínimo, a cláusula pétrea “para garantia da ordem pública”. Ora, alguém consegue explicar o que é essa tal de garantia da ordem pública?
Aury Lopes Junior com sapiência proclama à realidade:
Garantia da ordem pública: por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante [...]. Não sem razão por sua vagueza e abertura é o fundamento preferido, até porque ninguém sabe o que dizer... Nessa linha é recorrente a definição de risco para ordem publica como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera um abalo social, com comoção da comunidade, que perturba sua tranquilidade. Alguns, fazendo uma confusão de conceitos ainda mais grosseira, invocam a “gravidade” ou a “brutalidade” do delito como fundamento da prisão preventiva. Também há quem recorra à “credibilidade das instituições” como fundamento legitimante da segregação, no sentido de que se não houver a prisão, o sistema de administração de justiça perderá credibilidade. A prisão seria um antídoto para a omissão do Poder Judiciário, Polícia e Ministério Público[1].
Vislumbra-se que a garantia da ordem pública está em infindável crise de identidade. Não por menos os Mestres Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa na Obra Processo Penal no Limite, reservou um capítulo próprio para o tema Crise de identidade da “ordem pública” como fundamento da prisão preventiva. No referido capítulo, elucidam com sapiência que “é recorrente a definição de risco para ordem pública como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera um abalo social, uma comoção na comunidade, que perturba sua “tranquilidade”[2].
Fato é que a invocação da prisão preventiva para “garantia da ordem pública” tem sido a ilusão perfeita no manejo de ousar repassar para uma sociedade tão sofrida com a violência, uma sensação de segurança que na verdade inexiste, pois na realidade o que se pretende com a prisão cautelar, na maioria das vezes, é apenas dar confiabilidade ao aparelho estatal repressor, através da punição antecipada do sujeito de direitos.
Não há muito tempo me deparei com uma decisão onde a Respeitável Juíza de Plantão ao analisar a prisão em flagrante entendeu por bem converter em preventiva sob os seguintes argumentos:
Os conduzidos, embora não registrem antecedentes criminais (fls. 38-40), preferiram aderir à criminalidade na busca do dinheiro fácil produzido pela mercancia de entorpecentes. Nesse cenário social e probatório, é evidente que a soltura imediata dos conduzidos deixaria latente a falsa noção da impunidade e serviria de estímulo para idêntica conduta, fazendo avançar a intranquilidade que os crimes dessa natureza vêm gerando na sociedade como um todo. Daí por que inevitável à conclusão sobre a necessidade da custódia para acautelar a ordem pública. É importante que os conduzidos percebam, desde logo e de uma vez por todas, as consequências do ingresso nas veredas do crime. Aí está o periculum libertatis. Saliento ainda que as medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319), no caso em concreto, não se apresentam hábeis e suficientes a promover o restabelecimento e manutenção da paz social, levando-se em conta o que acima delineado (CPP, art. 282, § 6º)[3].
Certamente de todas as decisões que já vislumbrei, essa foi a que mais violou o devido processo legal e a presunção de inocência. Com todo o respeito, a Meritíssima não possuía qualquer conhecimento acerca finalidade de prisão cautelar, pois meramente foi negligente e antecipou a pena dos conduzidos, desvirtuando o sentido e a natureza da prisão cautelar ao atribuir-lhe função de prevenção.
Como aponta Sanguiné, quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sintoma de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito, etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva politico-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza[4].
Não restam dúvidas que na hipótese acima descrita a Meritíssima afastou por completo a natureza cautelar e transformou a prisão preventiva em meio de prevenção e punição antecipada. A segregação cautelar jamais deve ter o condão de inibir que o acusado infrinja a lei ou finalidade de desestimular outras pessoas a infringir.
Cinco dias após a decisão da Magistrada o próprio parquet requereu a revogação da prisão preventiva de uma das partes e solicitou o arquivamento dos autos em relação a ela, nos termos abaixo delineados:
Por fim, quanto à prisão preventiva decretada em desfavor de [...], diante da inexistência de indícios suficientes de seu envolvimento nos fatos investigados, uma vez que, segundo consta, possivelmente era apenas a proprietária do imóvel, requer seja revogada a medida decretada, sendo imediatamente posta em liberdade, com o consequente arquivamento dos autos em relação a ela[5].
Entre a prisão e a soltura a conduzida ficou segregada 7(sete) dias, passando por todos os constrangimentos imagináveis. Agora se questiona como ficará o psicológico dessa cidadã que teve todos seus direitos violados para “acautelar a ordem pública”. O Estado lhe proporcionará meios para reestabelecer seu status a quo? Certamente não! Sequer conhecerá o seu destino ao deixar o cárcere.
Ora é incabível e inaceitável que prisão preventiva possa ser utilizada pelo Magistrado como ferramenta de punição antecipada daquele a quem simplesmente se arrogou a prática de um delito. Onde está a premissa constitucional de que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória e de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
O encarceramento, sem dúvidas, retira do cidadão toda sua moral e dignidade; Moral, porquanto seguramente o mesmo nunca mais será visto pela sociedade sem que seja lembrado pelo cárcere. Criou-se até a nomenclatura “ex-presidiário”. O brasileiro é intolerante e também preconceituoso, faz julgamento antecipado e superficial do seu próximo. No Brasil, a ressocialização do “ex-presidiário” é quase impossível, não existem programas governamentais para a sua reinserção social, e a sociedade hipocritamente não perdoa aquele que já foi encarcerado; Dignidade, vez que só quem já sentiu na pele sabe o que é estar segregado. Aquele belo conto de que ao preso serão resguardados todos seus direitos constitucionais, não passa de mera mitologia. O preso assim que ingressa no sistema prisional deixa de ser um indivíduo dotado de direitos e passa a ser tratado como verdadeira “coisa”. Já não é mais chamado pelo nome, recebe uma matrícula que fica estampada em suas vestimentas como um código de barras de um objeto, dali em diante até o seu nome é esquecido, passa a ser chamado por números e viver em um mundo à parte da realidade, em condições ambientais subumanas, enfrentando problemas como superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação, falta de cuidados médicos, etc. Anula-se um ser dotado de razão e passa a intimidá-lo com o pretexto de manter a ordem e a segurança.
Agora se pergunta, há evidências comprovadas de que a prisão preventiva, que tanto fere os direitos do cidadão, agenceie o progresso no contexto coletivo? Há evidências de que promova melhoria na segurança pública? Há evidências que reduz a criminalidade?
A prisão cautelar sequer possuiu fundamento ativo. Promotores e Magistrados estão banalizando a prisão cautelar para exibir à plateia uma falsa retirada dos sintomas e, aparentemente, uma cura para criminalidade que não existe. Depreca-se das prisões cautelares algo que elas não podem dar.
Á prisão preventiva em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros[6].
Como justificar que somos o quarto país no mundo que mais encarcera, no entanto, a criminalidade só teima em elevar-se, ano após ano. Nosso sistema prisional está sobrecarregado e a esmagadora maioria dos atingidos pelo sistema é proveniente das classes miseráveis da sociedade, as quais sofrerão ainda mais com os efeitos perversos do desrespeito ao sistema de garantias fundamentais.
Não há pesquisa alguma que comprove a hipótese de que a panpunição tenha o condão de reduzir a criminalidade. Mas isso não importa: a fé dos perseguidores de plantão e do senso comum impõe que assim seja, logo, vive-se como se assim fosse – eis a verdade que não é verdade e que acaba por ter efeito de verdade. Nietzche, quando fala sobre o cristianismo, esclarece isso: “Sobretudo, ele sabe que em si é completamente indiferente que algo seja verdadeiro, mas que é de suprema importância em que medida se acredita que seja verdadeiro (“O anticristo”, p. 32). A retórica da impunidade como “a causa da criminalidade, é mero discurso-da-casca, saber-de-invólucro, de superfície, infantil e infantilizador improvado e improvável. “é possível que se aja engano de si mesmo para estes e aqueles produzirem um grande efeito. Pois os homens creem na verdade daquilo que visivelmente é objeto de uma forte crença” (Humano demasiado humano” p. 53, n. 52). São os homens “bons” que tem como inimigo os homens “maus”: a serem aniquilados. Os possuidores da indiscutível “verdade”: a criminalidade explode a impunidade. Qual, então, a óbvia conclusão? Punir e mais punir, o que é visível na realidade brasileira, pelo espetacular aumento de pessoas encarceradas e pelo profundo caos do animalesco sistema prisional. E se pune cada vez mais e o numero de delitos (ao menos aqueles que escapam da cifa oculta) aumenta. E se pune mais (não se tem mais onde colocar os condenados ou presos provisórios), cada vez mais um círculo vicioso! Mas a retórica não perdoa, não desiste, não negocia: verdade evangélica, certeza bíblica: a causa geradora da criminalidade é a impunidade. A convicção é inabalável e inabalada. Todos afirmaram e em todos os lugares: juram perante a bíblia. A fé gritante na “verdade” (impunidade como geradora da criminalidade), de tão aceita e tão debatida, de tão não posta ao crivo de outros olhares, nem mesmo acadêmico, transforma-se em mito, não admite que sequer dela se possa duvidar: “... quando a fé é necessária acima de tudo, então é preciso desacreditar a razão, o conhecimento, a investigação: o caminho que leve a verdade se transforma em caminho proibido” (“O Anticristo, p. 42) [7].
Dessemelhante da “verdade que não é verdade”, mas que se faz crer ser verdade, como descreve Carvalho no texto acima, o recolhimento cautelar ao cárcere não diminui a criminalidade e só deve ser necessário para impedira à fuga ou para que não sejam ocultadas as provas dos delitos. Devemos ser intransigente com a salvaguarda das conquistas alcançadas a fim de esquadrinharmos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Ora não se constrói “uma sociedade livre, justa e solidária” e não se promove “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III e IV, CRFB), quando se olvida o que disse Cançado Trindade: “Para compreender o mundo em que vivemos, tão complexo e dissimulado, é imprescindível o conhecimento humano, e os limites deste ultimo, hão de fomentar o sentido da solidariedade humana, na atenção cuidadosa à condição dos demais, porque em última análise, todos dependemos de todos, a sorte de cada um está inexoravelmente ligada a ordem dos demais[8].
Destarte, devemos deixar de sermos alvos dos “Bodes Expiatórios”, como pronunciou Alexandre Morais da Rosa em seu artigo já publicado neste site, para sermos seres pensantes, compreender o mundo em que vivemos e termos consciência de que a prisão preventiva é totalmente desnecessária na busca da redução da criminalidade.
A crença de que o crime decorre da impunidade afasta da discussão qualquer possibilidade de que se investiguem as causas subjacentes ou de que se possa perquirir se de fato o bem jurídico tutelado merece proteção de um Estado Democrático[9].
Notas e Referências:
[1] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p.635.
[2] LOPES JUNIOR, Aury e ROSA, Alexandre Morais da. Processo Penal no Limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 79.
[3] Autos 0000608-64.2017.8.24.0064 da Comarca de São José-SC.
[4] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p.635.
[5] Autos 0000608-64.2017.8.24.0064 da Comarca de São José-SC.
[6] LOPES JUNIOR, Aury e ROSA, Alexandre Morais da. Processo Penal no Limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 82.
[7] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2014, p. 37-38 e 83-84, in PRAZERES, Deivid Willian dos. Em Busca das Garantias Perdidas. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 41/42.
[8] PRAZERES, Deivid Willian dos. Em Buscar das Garantias Perdidas. Empório do Direito: Florianópolis, 2016, p. 37.
[9] PRAZERES, Deivid Willian dos. Em Busca das Garantias Perdidas. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 41.
. Rosimeire da Silva Meira possui Graduação em Direito pela UNIVALI - Universidade do Vale do Itajaí. Advogada Criminal - OAB/SC 26.835, devidamente associada à AACRIMESC - Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina. . .
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