Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 18/02/2017
Como se sabe, de acordo com o que dispõe o art. 41 da Lei nº 11.340/2006, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena, não será aplicada a Lei nº 9.099/1995, a qual prevê a dispensa da lavratura do auto de prisão em flagrante nas hipóteses de crimes de menor potencial ofensivo.
Assim, em qualquer hipótese de prisão em flagrante por crime praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, o Delegado de Polícia deverá proceder à lavratura do respectivo auto? E nesses casos, a formalização do auto de prisão em flagrante dependeria da manifestação da vontade da vítima?
Embora pareça óbvia, a resposta não é tão simples, isto porque, com a decisão do STF, na ADI 4.424, de fevereiro de 2012, entendeu-se que o Ministério Público pode agir independente da vontade da mulher vítima de violência doméstica ou familiar. Ou, de modo mais incisivo: o STF entendeu que os crimes que configuram violência doméstica e familiar contra a mulher são de ação penal pública incondicionada.
O passo seguinte para chegarmos à resposta ao questionamento acima é sabermos o que se deve entender por violência doméstica e familiar contra a mulher. Nos termos do art. 7º da Lei nº 11.340/2006, são formas de violência familiar contra a mulher, entre outras, a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral, esta última, de maior interesse cognitivo neste tópico, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Ocorre que, nos crimes contra a honra, a regra é que somente se procede mediante queixa (art. 145 do CP). Ou seja, ao contrário da regra dos demais crimes, os que ofendem a honra são, na sua maioria, de ação penal privada.
E aqui está o ponto crítico do debate gerado pela mencionada decisão do STF: todos os crimes que configuram violência doméstica e familiar contra a mulher passaram a ser considerados de ação penal pública incondicionada, incluindo aí os de ação penal pública condicionada e os de ação penal privada? Apenas os anteriormente considerados de ação penal pública condicionada à representação passaram a ser de ação penal pública incondicionada? Ou ainda: apenas a lesão corporal dolosa (entendemos que somente crimes dolosos configuram as situações de violência doméstica e familiar contra a mulher) deixou de ser de ação pública condicionada à representação e passou a ser de ação penal pública incondicionada?
Infelizmente os Ministros não explicitaram o tema em seus votos. Contudo, podemos deles extrair algumas conclusões.
Sabe-se que, excluindo o Ministro Cezar Peluso, todos os demais acompanharam o relator, Ministro Marco Aurélio, o qual decidiu pela inconstitucionalidade do art. 12, inc. I e art. 16 da Lei Maria da Penha, que faziam referência à representação da ofendida nas ações penais públicas. Ou seja, posicionou-se no sentido de que o Ministério Público pode dar início à ação penal independente da manifestação de vontade da vítima.
Da leitura dos votos dos demais Ministros que seguiram o relator, observa-se que todos usam expressões do tipo “mulher agredida”, “violência” ou diretamente “lesões corporais” contra a mulher, o que nos leva a crer que faziam referência ao crime de lesão corporal dolosa leve, esta considerada, pela Lei 9.099/1995, de ação penal pública condicionada à representação. Tanto que a decisão foi no sentido de que o Ministério Público pode agir independente da manifestação de vontade da vítima. Ora, esta decisão só faz sentido se referente aos crimes de ação penal pública, seja ela incondicionada ou condicionada à representação da vítima.
Isto porque, nos crimes de ação penal privada, o Estado deixou a cargo exclusivamente da vítima decidir pela persecução penal na fase de investigação, bem como promover a respectiva ação penal. Nesses casos, o Ministério Público nada tem que ver com a respectiva persecução criminal, ressalvados os casos que atuará como custos legis, ou seja, como fiscal da lei.
O próprio Ministro Gilmar Mendes, embora tenha acompanhado o relator, afirmou ter dificuldade em saber qual o tipo de ação penal melhor protegia a mulher, se pública incondicionada ou se pública condicionada à representação.
Desse modo, entendemos que a referida decisão do STF atingiu apenas os crimes de ação penal pública condicionada à representação, os quais passaram a ser de ação penal pública incondicionada[1]. Nestes casos, portanto, o Delegado de Polícia deverá autuar o conduzido em flagrante, independentemente da vontade da vítima.
Já os crimes de ação penal privada, estes continuam sendo assim considerados, mesmo depois da decisão do STF. E, dessa forma, o Delegado de Polícia somente poderá formalizar a prisão em flagrante do conduzido se a vítima manifestar esta vontade. Do contrário, incorrerá em ilegalidade.
Outro não é o entendimento de Rogério Sanches e Ronaldo Batista, para quem, nas hipóteses de crimes de ação penal pública condicionada à representação e de ação penal privada, a manifestação da vítima é essencial à formalização da prisão em flagrante do autor. Do contrário, se não representar ou não manifestar interesse na posterior propositura da queixa, será ele colocado em liberdade, ante a impossibilidade de lavratura do flagrante[2].
Ainda sobre esta polêmica, outra questão merece a atenção dos profissionais do Direito, em especial do Delegado de Polícia. Não raras vezes, a mulher vítima de violência doméstica e familiar, ao chegar na delegacia de polícia, desiste de dar continuidade ao procedimento, por variadas razões. E, ao ser informada que agora o procedimento não depende mais de sua vontade (desde que não seja um crime de ação penal privada, como ficou dito acima), ela se recusa a se submeter ao exame de corpo de delito, essencial nos casos de lesão corporal, por exemplo. Nestes casos, como deve proceder a autoridade policial?
É bem verdade que a Lei Maria da Penha considera suficiente, como meios de prova, os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde (art. 12, § 3º). Mas e se a vítima também se recusar a ir ao hospital ou posto de saúde?
Entendemos que, sendo o crime de ação penal pública incondicionada, a vítima é obrigada a se submeter ao exame de corpo de delito, podendo, portanto, ser conduzida coercitivamente até o Instituto Médico Legal, se por força do art. 11, inc. II, da lei em comento, segundo o qual, no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências, encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; seja por aplicação analógica do art. 201, § 1º do CPP, pelo qual, poderá a autoridade conduzir coercitivamente o ofendido se este não comparecer, sem motivo justificado, e após ser devidamente intimado.
O fundamento para a referida condução é o estrito cumprimento de um dever legal do Delegado e seus agentes.
Além disso, a vítima, ao agir desse modo, estará, em tese, praticando crime, ou desobediência, ou resistência, ou desacato, ou até mesmo favorecimento pessoal, a depender das circunstâncias, embora, neste último caso, possa ser a vítima isenta de pena (art. 348, § 2º, do CP).
Por outro lado, o chamado princípio do nemo tenetur se detegere, também conhecido como o direito de não produzir prova contra si mesmo (art. 5º, inc. LXIII, da CF), como se infere facilmente do próprio nome dado ao princípio, somente se aplica àquele cuja conduta possa constituir prova ou elemento de prova de um fato criminoso praticado pelo próprio declarante. A vítima, portanto, não pode alegar o referido direito para proteger seu agressor.
Em último caso, se a recusa da vítima impossibilitar a realização da perícia ou análise médica, entendemos ser aplicável, por analogia, o art. 167 do CPP, podendo os depoimentos de testemunhas do fato, bem como fotografias das lesões, suprir o respectivo exame.
Notas e Referências:
[1] Para os autores CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2012, p. 88, a decisão do STF só atingiu o crime de lesão corporal dolosa leve e culposa, as quais passaram a ser de ação penal pública incondicionada.
[2] Id. Ibid., p. 88.
Bruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.
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Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.
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