Princípio do juiz natural: a (in)competência das Varas da Justiça Militar Estadual para julgamento de atos não disciplinares

28/04/2015

Por Jefferson Augusto de Paula, Eduardo Henrique Titão Motta e Ranka Diriángem Sandino da Gama - 28/04/2015

O princípio do juiz natural está contemplado em nossa Constituição da República no art. 5º, em dois momentos, sendo o primeiro no inciso XXXVII: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e, no inciso LIII, que diz: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Tal direito está no rol dos direitos e das garantias fundamentais justamente por sua crucial importância.

A garantia é decorrente do princípio do devido processo legal, vínculo autolimitativo da persecução estatal[5], e está implicitamente no inciso LIV do art. 5º, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Assim, o princípio do devido processo legal é gênero do qual o princípio do juiz natural é espécie.

Este inclusive é o entendimento de Nelson Nery Junior:

“(...) bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantissem aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais são espécies.

Assim é que a doutrina diz, por exemplo, serem manifestação do “devido processo legal” o princípio da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de utilizar-se em juízo prova obtida por meio ilícito, assim como o postulado do juiz natural, do contraditório e do procedimento regular.”[6]

No Judiciário a competência determina quais matérias este ou aquele órgão judicial deve julgar. Esta delimitação de matérias, vale dizer, é a limitação de cada órgão judicial, que evita que um adentre na esfera do outro. “Esta limitação se chama ‘competência’, que é a medida exata da jurisdição do órgão judicante, ou seja, a fração que lhe compete, no amplo exercício da função estatal de aplicação da justiça”[7]. “Trata-se, pois, do juiz pré-constituído por lei, ou seja, antes de o fato ser julgado, para garantir a imparcialidade do magistrado”[8].

“O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do estado, e, enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.”[9]

Ferrajoli sustenta que a garantia do juiz natural indica essa normalidade da ordem das competências no juízo, pré-constituída pela lei, entendido por competência o limite da jurisdição de que qualquer juiz é natural.”[10]

Segundo Aury Lopes Junior o princípio do juiz natural é de crucial importância para o Estado Democrático de Direito:

“O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para sua própria existência. Como exemplificamos anteriormente, na esteira de MARCON, o Princípio do Juiz Natural é um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico-temporal.”[11]

A moderna jurisprudência tem acompanhado a doutrina, reconhecendo a importância do juiz natural:

“O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (...). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, represente fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004).

Visto a importância deste direito, passaremos a analisar a competência das Varas da Justiça Militar Estadual, e sua atuação na análise das ações decorrentes dos atos disciplinares militares.

A Competência Cível das Varas da Justiça Militar Estadual e sua atuação na análise dos atos disciplinares militares

A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, alterou significativamente o Poder Judiciário, e em especial, a questão da competência da Justiça Militar.

Uma das importantes alterações foi a atribuição de competência cível à Justiça Militar dos Estados. O art. 125 da Constituição Federal foi alterado, determinando, em seu §4º, a competência da “Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares (...)”.

Entretanto, não consta nem no texto constitucional tampouco na Exposição de Motivos nº 204, de 15 de Dezembro de 2004 – chamada de Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano, que introduz a Emenda Constitucional nº 45, nenhuma referência do alcance do termo Atos Disciplinares Militares.

O texto também não especifica se “as expressões ações judiciais contra atos disciplinares militares e controle jurisdicional sobre as punições disciplinares militares serão ou não sinônimas”[12].

Ressalte-se que a inclusão da matéria administrativa é novidade para o Juízo Militar, de competência originária estritamente criminal. Importante também frisar que a Justiça Militar Federal, disciplinada nos arts. 122, 123 e 124 da CRFB/88, até hoje não exercem a competência cível nos moldes da Justiça Militar Estadual, tratando somente dos crimes militares definidos em lei.

A inclusão da novel competência cível à Justiça Militar Estadual traz consigo, em virtude da não delimitação do alcance do que seriam os tais “atos disciplinares militares”, diversos conflitos de competência,[13] os quais são resolvidos pelos tribunais e câmaras superiores. A competência para processar e julgar ações judiciais contra atos disciplinares militares passa das Varas De Fazenda Pública aos Juízos Militares.

No Paraná, o que determina tal competência é a Súmula nº21 do Tribunal de Justiça do Paraná, que estabelece queas ações judiciais contra atos disciplinares militares, nos termos da emenda constitucional n. 45, de 2004, devem ser processadas e julgadas perante a vara da auditoria da justiça militar”.

Além dos questionamentos sobre a existência das Justiças Militares nos Estados e sobre o tratamento das Varas das Auditorias Militares como Justiças Militares nos Estados, surge após a edição da emenda a dúvida sobre o real alcance do termo atos disciplinares militares. Para tanto, conceitos como o de ato administrativo e ato disciplinar precisam ser apresentados.

Para Diogo Freitas do Amaral, ato administrativo é:

ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[14] 

Segundo Diógenes Gasparini, ato administrativo pode ser considerado como “toda prescrição unilateral, juízo ou conhecimento, predisposta a produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado (...) sob o fundamento de cumprir finalidade assinalada no sistema normativo, sindicável pelo judiciário.”[15]

No campo do direito administrativo disciplinar, onde o poder público regula as relações dos particulares consigo, o conceito de ato disciplinar deriva do conceito de ato administrativo, sendo dele uma espécie.

José Armando da Costa sustenta que “não é o ato disciplinar outra coisa que não uma espécie de ato administrativo, estando, pois, mutatis mutandis, sujeito aos mesmos princípios e às mesmas normas que regem o ato administrativo”.[16]

Para Jorge Cezar de Assis:

“Ato administrativo disciplinar é a manifestação unilateral de vontade da administração Pública Militar que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato impor uma sanção disciplinar ao servidor militar em face do cometimento de uma infração disciplinar preestabelecida, e ao fim de um processo apuratório em que se lhe faculte a ampla defesa”.[17]

A definição mais recorrente na jurisprudência do que seriam atos disciplinares militares, entretanto, é a de que são "a manifestação unilateral de vontade da Administração Militar que, agindo nessa qualidade e objetivando manter a ordem que convém ao regular funcionamento de sua organização, impõe obrigações aos seus servidores, modifica, extingue ou declara direitos"[18].

Após a análise de tais conceitos, definimos, o ato disciplinar militar como o ato jurídico consistente numa sanção imposta unilateralmente ao militar após processo, visando impor obrigações e garantir a continuidade do serviço público por meio do poder hierárquico sancionador.

O ato, portanto, deve possuir os requisitos essenciais à edição de qualquer ato administrativo lato sensu. Um ato – na maior parte das vezes – sancionador, que visa preservar a disciplina no serviço público militar. A jurisprudência do STF trata, em síntese, o ato disciplinar como ato de aplicação de punição.[19]

Vislumbra-se, entretanto, uma usurpação de competência das Varas da Justiça Militar Estadual em certas ações, em flagrante desrespeito ao princípio do Juiz Natural, quando proferem decisões judiciais sobre atos que não se enquadram na definição de atos disciplinares, mas sim, atos administrativos comuns,  conforme a distinção oportunamente estabelecida.

A instauração e instrução de processo administrativo-disciplinar em desfavor de militares estaduais são atos de império da administração militar, vinculadas e determinadas com base no poder hierárquico. Somente ao fim do processo é que será editado o devido ato disciplinar.

“Com efeito, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades dos de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se tal não ocorrer, serem os infratores sujeitos às respectivas sanções. Disciplina funcional, assim, é a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos.”[20]

Para o STJ, o acréscimo da competência cível na jurisdição militar deve ser examinado com cautela por duas razões, já considerando o caráter de especialidade e a tradição da justiça castrense:

“(a) trata-se de Justiça Especializada, o que veda a interpretação tendente a elastecer a regra de competência para abarcar situações outras que não as expressamente tratadas no texto constitucional, sob pena de invadir-se a jurisdição comum, de feição residual; e

(b) não é da tradição de nossa Justiça Militar estadual o processamento de feitos de natureza civil. Cuidando-se de novidade e exceção, introduzida pela "Reforma do Judiciário", deve ser interpretada restritivamente.

Partindo dessas premissas de hermenêutica, a nova jurisdição civil da Justiça Militar Estadual abrange, tão-somente, as ações judiciais propostas contra atos disciplinares militares, vale dizer, ações propostas para examinar a validade de determinado ato disciplinar - a reintegração de militar afastado sem o devido processo legal, excesso de punição, ilegalidade da pena, abuso de autoridade do superior hierárquico - ou as consequências desses atos.”[21]

A orientação do Superior Tribunal de Justiça é corretíssima, pois, baseando-se no expressamente estabelecido no texto constitucional, a regra é a limitação da competência das Varas da Auditoria Militar Estadual, somente para processamento e julgamento de atos – propriamente – disciplinares militares, restando os demais atos administrativos para competência do Juízo da Fazenda Pública.

Porém, a jurisprudência do Tribunal de Justiça Paranaense, não segue a mesma orientação do Superior Tribunal de Justiça, pois, estende a competência da Vara da Auditoria da Justiça Militar Estadual para julgamento não somente dos atos disciplinares militares, mas também, para quaisquer atos vindos de autoridades militares, vejamos:

“E nem se diga que atos disciplinares militares consistem apenas em punições disciplinares, tais como, por exemplo, a exclusão de policial militar da Corporação, vez que, se assim o fosse, estaria se dividindo uma competência que é absoluta em razão da matéria, permitindo-se que apenas as condenações impostas no âmbito administrativo disciplinar pudessem ser questionadas perante as Varas da Auditoria da Justiça Militar Estadual, e os demais atos praticados no âmbito disciplinar militar, tais como, por exemplo, a sugestão de instauração de processo administrativo contra policial militar, questionados somente perante as Varas da Fazenda Pública.”[22]

Esta interpretação do Judiciário Paranaense trouxe insegurança aos jurisdicionados, pois, trata-se de uma alteração extensiva da Constituição da República Federativa da União.

A CRFB/88 determinou a Vara da Justiça Militar Estadual processar as ações judiciais contra atos disciplinares militares. O caráter analítico, “extenso, minudente, detalhista”[23] do texto Constitucional, que é garantia de segurança jurídica, nada previu sobre os demais atos decorrentes da abertura ou de sua instrução no âmbito administrativo serem também de competência da Vara da Justiça Militar Estadual.

Não se trata aqui de uma lacuna hermenêutica no texto magno, de uma abertura para interpretação do aplicador da norma, mas de um silêncio eloqüente do constituinte derivado.

Conclusão:

Toda vez que as Varas das Auditorias da Justiça Militar Estadual julgam processos onde se questiona a decisão de abertura e/ou instauração de um processo administrativo disciplinar, ou, se discute o indeferimento da produção de uma prova pela defesa, estamos diante de um ato administrativo que não pode ser considerado como um ato disciplinar militar, e, portanto, este Juízo (VAJME), não possui competência para julgar estes atos, os quais, permanecem competente o Juízo da Fazenda Pública.

A competência das VAJME´s é apenas processar as ações judiciais contra atos disciplinares militares, assim compreendidos, aqueles atos que se revestem de uma punição/sanção disciplinar ao militar.


Notas e Referências:

[1] Artigo científico elaborado pelo II Grupo de Estudos em Direito Militar da Academia Brasileira de Direito Constitucional.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. I, 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 245.

[6] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. – Coleção Estudos de Direito de Processo Enrico Tullio Liebman; v. 21. 8. ed. São Paulo, RT, 2006. p. 60

[7] SANTOS, Ernani Fidélis. Manual De Direito Processo Civil, 4ª ed, São Paulo, Saraiva, 1996, p.125.

[8] BULOS, Uadi Lammêgo de. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2008. p. 533.

[9] STF, HC 81963, Rel Min Celso de Mello, DJ de 28 Out 2004.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2ª Ed. São Paulo, RT, 2006, p.543.

[11] LOPES JR., Aury, Direito processual penal, 10ª edição, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 443.

[12] ASSIS, Jorge Cesar. A Reforma do Poder Judiciário e a Justiça Militar: Breves Considerações sobre seu Alcance. Revista de Estudos & Informações. Nov/2005, p. 19.

[13] Sobre o tema: STF, AR no REA nº 715.817 – SP; STJ, CC nº 99.474 – MG; TJPR CC nº 713.646-5; TJRS AC nº 70045727088.

[14] AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo. Vol. II, 2ª ed, Coimbra: Almedina, 2011. p. 238/239.

[15] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

[16] COSTA, José Armando da. Estrutura Jurídica Da Punição Disciplinar. Disponível em http://goo.gl/kImsEK . Acesso em 30 Nov 13.

[17] ASSIS, Jorge Cezar de. Curso de Direito Disciplinar Militar: Da simples trangressão ao processo administrativo. Curitiba, Juruá, 2008, p.161.

[18] BATISTA, Rogério Ramos e REZENDE, Fábio Teixeira. A competência da Justiça Militar para as ações contra atos disciplinares. In, Revista de Direito Militar, nº 52, Março/Abril, 2005, p. 28.

[19] STF – MS 20.999 – DF – T.P. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 25.05.1990.

[20] SANTOS FILHO, José Carvalho dos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. p. 48/49)

[21] STJ, CC nº 100.682 – MG, Rel. Ministro Castro Meira. Julgado em 10 Jun 2009.

[22] TJPR. AI nº 893.255-0 no MS nº 0000325-82.2012.8.16.0179. Rel Des. LEONEL CUNHA, Julg. 13 Mar. 2012.

[23]  BULOS, op. cit., p.381.


Jefferson 2Jefferson Augusto de Paula é Coordenador do I, II e III Grupo de Estudos em Direito Militar da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestre em Direito pela UNIVALI/SC. Coordenador de Extensão da ABDConst.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

Eduardo Titão2Eduardo Henrique Titão Motta é Pesquisador do I e II Grupo de Estudos em Direito Militar da Academia Brasileira de Direito Constitucional. 1º Tenente da PMPR. Bacharel em Segurança Pública pela Academia Policial Militar do Guatupê. Acadêmico de Direito da UFPR.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

Ranka2Ranka Diriángem Sandino da Gama é Pesquisador do I e II Grupo de Estudos em Direito Militar da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        


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