Por Paulo de Souza Queiroz – 03/04/2017
De acordo com a Constituição (CF, art. 5°, LVII), ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória[1]. Trata-se de uma presunção juris tantum (relativa), não juris et de jure (absoluta), porque, se o fosse, absolutamente nada poderia ser feito contra o suposto autor de um crime.
Embora a CF fale de culpado, o princípio é aplicável também aos condenados a medidas de segurança (internação em hospital psiquiátrico etc.).[2] Se o princípio vale para os imputáveis, há de valer, com maior razão, para os semi-imputáveis e inimputáveis, porque mais vulneráveis (princípio da proporcionalidade).
Diz-se culpado todo aquele que for assim declarado por sentença em razão da prática de infração penal punível (crime ou contravenção).
Presumir inocente ou não considerar culpado são fórmulas equivalentes que não afirmam que o indiciado, o denunciado ou o sentenciado seja de fato inocente, mas que, apesar de eventualmente preso em flagrante e ter confessado o crime, de responder a uma investigação, a processo ou já condenado (sem trânsito em julgado), e tudo mais conspirar contra ele, deve ser tratado como se inocente fosse.
Cuida-se, pois, de uma regra de tratamento (e de prova) que permanece válida ainda que contrarie todas as circunstâncias e provas do crime, de modo que o princípio incide (em todos os graus de jurisdição) independentemente da verossimilhança da imputação que recai sobre o acusado.
Como se trata de uma presunção relativa de não culpabilidade, é possível a adoção, mas sempre em caráter excepcional, de medidas cautelares pessoais e reais contra o indiciado ou acusado. A prisão provisória obrigatória é vedada, por mais grave o delito. Assim, por exemplo, só é legítima a decretação de prisão preventiva se houver prova da materialidade do delito e indícios suficientes de autoria (fumus commissi delicti) e o periculum libertatis. Nem impede a realização de acordo de transação ou de suspensão condicional do processo (Lei n° 9.099/95), entre outros.
Dado o status legal de não culpado, de inocente, cabe à acusação (MP ou querelante), e não ao réu, todo o ônus de provar – validamente - a punibilidade do denunciado segundo o devido processo legal. Não se prova a inocência, mas a culpa.
Justo por isso, compete ao órgão acusador (e somente a ele) demonstrar a veracidade dos fatos alegados na denúncia/queixa, isto é, o cometimento de uma infração penal punível (crime ou contravenção) com todos os seus elementos essenciais e acidentais[3]. Mais concretamente: é dever seu provar que houve um crime (v.g., um homicídio, não um suicídio), praticado dolosamente, e não por imprudência, que não concorreram excludentes de tipicidade, de ilicitude, de culpabilidade (erro de tipo, legítima defesa, erro de proibição inevitável etc.) ou causas extintivas de punibilidade (prescrição etc.).
Se o crime é, do ponto de vista descritivo-analítico, um fato típico, ilícito e culpável (e também punível, segundo alguns), não faria sentido que o ônus da prova que recai sobre o acusador público ou privado se limitasse a apenas uma parte desses elementos.
Além de fazer prova da prática de um delito, deve também provar eventuais circunstâncias qualificadoras, causas de aumento de pena e agravantes (v.g., emprego de veneno, motivo fútil ou torpe, reincidência etc.). Se houver dúvida razoável quanto aos fatos, ao direito ou quanto às circunstâncias, deverá favorecer o imputado. O princípio in dubio pro reo vale, pois, para as questões fáticas e jurídicas, para os temas principais e acessórios.
Assim, não cabe ao acusado provar o seu álibi (embora recomendável que o faça), nem demonstrar a presença de causas de justificação (legítima defesa etc.)[4]. Mas isso não quer dizer que a defesa deva se limitar a fazer alegações sem se preocupar com a prova e a verossimilhança de suas teses, seja em razão dos riscos inerentes a uma tal postura, seja em virtude da possibilidade de anulação do processo por ausência de defesa.
Não são aplicáveis, por conseguinte, ao processo penal as regras sobre a repartição do ônus da prova, nem as presunções legais do Código de Processo Civil (CPC, arts. 373 e 374). Também por isso, é de todo criticável o art. 156, caput, do CPP[5]. Não tem valor algum tampouco o frequentemente invocado in dubio pro societate, por implicar uma inversão indevida do dever de provar[6].
De acordo com a Súmula 444 do STJ, é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base. Não é possível, por isso, aumentar-se a pena a pretexto de o condenado responder a inquéritos, a ações penais ou já ter contra si outras condenações (não transitadas em julgado), sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência, independentemente do nome que se dê à circunstância judicial (personalidade voltada para o crime, maus antecedentes, má conduta social etc.).
Apesar disso, há precedentes do próprio STJ contra a aplicação da causa de redução de pena do art. 33, §4°, da Lei n° 11.343/2006, que exige primariedade e bons antecedentes, se o agente responder a inquéritos ou a processos. A contradição é evidente, já que, se não há maus antecedentes para fins de majorar a pena-base, tampouco haverá para efeito de negar o privilégio da referida lei de drogas (redução de 1/6 a 2/3). Num e noutro caso, o fundamento para impedir a valoração contra o réu é precisamente o mesmo: violação ao princípio da presunção de inocência.
O princípio é aplicável também à execução penal, já que sempre que houver dúvida, por exemplo, sobre se o condenado praticou ou não falta grave, se tem ou não direito à progressão de regime, se violou ou não as regras do livramento condicional, tal contará em seu favor.
Quanto à revisão criminal (CPP, art. 621), cabe ao condenado fazer prova das alegações que autorizariam a rescisão da coisa julgada. Mas, ao contrário do que pretende parte da doutrina[7], havendo dúvida razoável sobre a legitimidade da condenação, é possível desconstituí-la. Assim, por exemplo, se o autor da revisão alega inocência e as novas provas produzidas instalam dúvida razoável sobre a plausibilidade da condenação, é justo anulá-la. Afinal, não seria razoável manter uma condenação que possivelmente encerra um erro judiciário.
Execução provisória da sentença
Como regra, a execução da sentença penal condenatória só é possível após o trânsito em julgado, em razão do princípio da presunção de inocência. Assim, só depois de exauridos os recursos cabíveis, aí incluídos os recursos extraordinários, é lícito determinar o cumprimento da pena.
Apesar disso, é possível a execução provisória ou antecipada da sentença em favor do condenado que se encontre preso em caráter provisório (prisão preventiva etc.), desde que já tenha ocorrido o trânsito em julgado para a acusação, não obstante a defesa haja interposto recurso (apelação etc.).[8] Justo por isso, a interposição de recurso apenas pela defesa não impede o condenado de gozar os benefícios previstos na LEP (livramento condicional etc.), desde que tenha cumprido os requisitos legais para tanto.
A execução antecipada em favor do réu (preso provisório) que recorreu da sentença condenatória é possível pelos seguintes motivos: 1) Como só a defesa recorreu, não é possível reformatio in pejus; 2) Não seria razoável que o condenado provisório tivesse tratamento mais duro que o condenado definitivo; 3) Não faria sentido que o condenado fosse prejudicado por exercer um direito, o de recorrer; 4) O princípio da presunção de inocência foi instituído histórica e constitucionalmente em favor do indivíduo, e não do Estado, razão pela qual não sofre aí violação alguma; 5) A execução provisória tem previsão legal expressa (LEP, art. 2°, parágrafo único[9]).
Em suma, proferida a sentença condenatória e havendo recurso apenas da defesa, o preso/condenado provisório pode postular todos os direitos postuláveis pelo preso/condenado definitivo.
Além da hipótese supra, temos que é possível a execução provisória da sentença em favor do preso provisório mesmo se houver recurso da acusação, inclusive para aumentar a pena, se e quando o seu eventual provimento não tiver repercussão sobre o pedido formulado em execução, como nos seguintes casos: 1) Se o recurso não objetivar aumento de pena, quando, v. g., insurgir-se apenas contra a parte da sentença que absolveu um dos corréus ou lhe aplicou pena considerada branda; 2) Quando vise à absolvição do réu ou à atenuação da pena; 3) Quando, havendo recurso para majorar a pena, o seu possível provimento não for prejudicial ao reconhecimento do direito postulado. Assim, por exemplo, se o Ministério Público apelar para ser reconhecida uma causa de aumento de pena de um terço sobre uma condenação de 6 anos, o que a elevaria para 8 anos, tal acréscimo não afetaria o direito ao livramento condicional se o réu, primário e sem antecedentes criminais, já houvesse cumprido mais de metade da pena, embora lhe bastasse o cumprimento de mais de um terço (CP, art. 83, I). Com efeito, ainda que provido o recurso da acusação, o sentenciado já teria atingido mais de 1/3 da nova pena (8 anos), fazendo jus, portanto, ao livramento condicional.
Em resumo, apenas o recurso da acusação capaz de majorar a pena e prejudicar o reconhecimento do direito postulado pode inviabilizar a execução provisória em favor do condenado.
Atualmente (a partir de 17/02/2016) o STF, conforme decisão proferida no habeas corpus 126.292/SP, relator Ministro Teori Zavascki, passou a admitir a execução provisória também em prejuízo do réu que foi condenado e aguardava o julgamento do processo em liberdade e havia interposto recurso especial ou extraordinário, ao fundamento de não terem efeito suspensivo.[10] Em 5/10/2016, o plenário do STF reafirmou a possibilidade de execução da pena tão logo mantida a sentença condenatória em segundo grau. Por se tratar de decisão proferida em controle abstrato/concentrado de constitucionalidade (CF, art. 102, §2º), vincula os demais órgãos do Poder Judiciário.
Em resumo, de acordo com o STF, é possível a execução provisória da sentença, com imediata expedição de mandado de prisão, sempre que: 1) exauridos os recursos ordinários (apelação etc.); 2) pender de julgamento recurso especial (STJ) ou extraordinário (STF).
Admitida a execução provisória da sentença (contra ou a favor do preso provisório), o condenado fará jus a todos os direitos previstos na Lei de Execução Penal, se atendidos os requisitos legais. Se, no curso da execução, sobrevier acórdão que, provendo o recurso da defesa, absolver o réu, será posto em liberdade.
Notas e Referências:
[1] O princípio, que remonta ao direito romano, constou da declaração de direitos do homem e do cidadão de 1789 (art. 9°) e está previsto em vários tratados internacionais, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, 2).
[2] De um modo geral, a doutrina considera que a sentença que aplica medida de segurança ao inimputável autor de crime é “absolutória imprópria”; absolutória porque reconheceria uma causa excludente de culpabilidade (a inimputabilidade) e imprópria porque aplicaria, apesar isso, uma sanção penal (medida de segurança). Temos, porém, que se trata de uma sentença condenatória, seja porque todos os requisitos exigidos para a condenação devem estar presentes (fato típico, ilícito, culpável e punível, exceção feita à inimputabilidade por transtorno mental grave), seja porque a medida de segurança é tão ou mais lesiva à liberdade quanto a pena propriamente dita. Para maiores detalhes, ver Paulo Queiroz, direito penal, parte geral. Salvador: juspodivm, 2017.
[3] Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito processual penal. Coimbra: Coimbra editora, 1974, p.211 e ss.
[4] Em sentido contrário, Fernando da Costa Tourinho Filho (Código de Processo Penal Comentado. Vol. I. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 505): “ônus da prova nada mais é senão o encargo, que compete à parte que fizer a alegação, de demonstrá-la. Provar não é obrigação; é simples encargo. Se a parte que fizer a alegação não prová-la, sofrerá amarga decepção. Cabe à acusação demonstrar, e isto de modo geral, a materialidade e a autoria. Já à defesa incumbe provar eventual alegação de exclusão da antijuridicidade do fato típico (causas excludentes da criminalidade, excludentes da antijuridicidade, causas justificativas ou descriminantes) ou excludentes de culpabilidade. Se o réu invoca um álibi, o ônus da prova é seu. Se argui legítima defesa, estado de necessidade etc..., o onus probandi é inteiramente seu (…) Se alegar e não provar, a decepção também será sua...”.
[5] Art.156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I– ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II– determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
[6] Ver Aury Lopes Júnior. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2017.
[7] Assim, por exemplo, Renato Brasileiro de Lima. Manual de direito processual penal. Salvador: editorajuspodivm, 2017.
[8] Nesse sentido, a Súmula 716 do STF: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento de pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.” Também assim, a Súmula 717 do STF: “Não impede a progressão de regime de execução de pena, fixada na sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.”
[9] Art. 2º A jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária, em todo o Território Nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal. Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária.
[10] Assim também, a Súmula 267 do STJ já dispunha: A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão.
.
.
Paulo de Souza Queiroz é doutor em Direito (PUC/SP), Membro do MPF e Professor da UnB – Universidade de Brasília.
.
.
Imagem Ilustrativa do Post: “I thought I’d payed my TV Licence” Honest !!!! // Foto de: Craig Sunter // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/16210667@N02/14411888347
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.