Primeiros fundamentos sobre a sustentabilidade na sua dimensão jurídica

13/04/2018

Nas minhas colunas sobre Sustentabilidade, tenho insistido às minhas leitoras e leitores acerca da importância política, social, jurídica, ambiental/natural, econômica desse novo paradigma de vida. Estranho, pois o “novo” parece não se incorporar como obviedade de nossos dias. A sua exigência por uma nova mentalidade[1] e práticas que transformem a mente egoísta numa perspectiva mais cooperativa, solidária transfronteiriça parece estar apenas naqueles livros de literatura que expõem as nossas mazelas, mas não conseguem ter vida própria na realidade, sair das páginas que foram escritas.

Na verdade, o que se constata é o oposto. Quando a Sustentabilidade se torna uma força ideológica, capaz de se reinventar – especialmente graças às engrenagens econômicas –, é impossível verificar qualquer espécie de avanço na mudança de mentalidade na qual exige a Sustentabilidade. Por esse motivo, se torna necessário esclarecer e insistir: a autorregulação da Terra - a partir das evidencias termodinâmicas, químicas, físicas e biológicas – pode acelerar o desaparecimento da espécie humana causada por nós. Veja-se: a interferência antropogênica na Natureza é um problema político[2], cujas respostas não parecem satisfatórias desde 1972 na Conferencia de Estocolmo quanto à exigência de uma outra racionalidade aplicada à Sustentabilidade.

Antes de se esboçar o desenho de um conceito operacional sobre a Sustentabilidade jurídica, deve-se esclarecer alguns fatos nos quais permitam enxergar a necessidade dessa nova mentalidade e verificar como, muitas vezes, o Direito, na sua acepção doutrinária mais comum, nem sempre tem condições de resolver as mazelas em torno do Bem Comum[3].

Primeiro, a finitude da Terra, como já sustentei em diferentes textos, precisa ser trabalhada em dois planos: a) no seu sentido físico; b) no sentido de que favorece o desenvolvimento da vida. Esses dois argumentos indicam o alcance e o limite da interferência humana na Natureza. Qual a percepção do leitor ou da leitora quando enxerga essa foto?

 

Vamos iniciar o pensamento a partir da letra “b”. A primeira impressão – e a mais usual – é de um corpo que vaga no espaço. Estamos nessa nave espacial sem pilotos, ou, ainda, o ser humano é o piloto? Se o for – o que é demasiadamente improvável, mas há quem pense sob o ângulo da postura antropocêntrica – a existência da vida e sua manutenção se transformou numa comédia ao estilo “Apertem os cintos, o piloto sumiu”.

No entanto, o nosso Planeta, visto a partir do universo, incita preocupação pela sua fragilidade. Esse argumento não está todo errado, mas há um equivoco. Precisa-se distinguir o que é a Terra entendida como superorganismo vivo, especialmente no seu aspecto físico constitutivo, e, ainda, quais elementos favorecem o desenvolvimento da vida.

Ao se contemplar nossa “Casa Comum” e a sua rede vital ecossistêmica, percebe-se a necessidade do ser humano entender a sua complexidade e suas próprias características. Essa percepção e a formulação de seu entendimento não é tarefa simples, pois a cada nova observação, a cada nova tentativa de se formular um problema de pesquisa e responder a(s) sua(s) hipótese(s), surgem outros níveis de articulação entre o observador e o fenômeno observado. Não quero retornar ao paradigma cartesiano da separação entre mente (res cogito) e matéria (res extensa) com as palavras “observador” e “fenômeno observado”, mas insistir que os critérios de adaptação dos fenômenos vivos ocorrem por meio de diferentes formas de organização e estruturas[4] que determinam quais mecanismos se tornam viáveis a ambos para que ocorra o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da vida. Essa proposição pode ser sintetizada pela Teoria da Cognição de Santiago[5].

O oxigênio, por exemplo, era altamente prejudicial à manutenção dos primeiros micróbios e seres unicelulares. Entretanto, a partir de suas mudanças estruturais e a simbiose, aos poucos, esses seres tornaram-se multicelulares e pluricelulares. A fotossíntese começou a ser gerada como fenômeno residual das cianobactérias (algas+fungos). A partir desse momento, o oxigênio passa a ser o elemento necessário à manutenção da vida.

Quanto ao argumento proposto na letra “a” já se observa outro contraste. Se fossemos responder a indagação: A Terra é frágil e finita? A resposta seria: depende. Sim, todas as condições químicas, biológicas e termodinâmicas sofrem diferentes interferências – especialmente pelas atitudes antropogênicas – o que causa desequilíbrio nos ciclos de regeneração e reprodução da Natureza. Por esse motivo, afirma-se, de modo acertado, que se vive na Era do Antropoceno[6]. No entanto, a Terra é robusta, forte, no seu sentido geofísico. Lembrem de uma senhora mais forte, como é o caso da Rainha Vitória. Nesse caso, nosso Planeta consegue aguentar muitos impactos similares a 30 (trinta) bombas atômicas e, com o tempo, regenerar-se, autorregular-se. Sem os humanos? Claro.

Diante desse cenário, o que todos esses argumentos sinalizam para se entender a importância da Sustentabilidade jurídica? Primeiro, vamos recapitular o conceito operacional de Sustentabilidade[7]: É a compreensão ecosófica acerca da capacidade de resiliência entre os seres e o ambiente para se determinar - de modo sincrônico e/ou diacrônico - quais são as atitudes que favorecem a sobrevivência, a prosperidade, a adaptação e a manutenção da vida equilibrada.

As palavras grifadas indicam como a racionalidade jurídica se torna pouco efetiva na proteção de um Bem Comum como é a rede ecossistêmica da vida. Não obstante o argumento de que a Terra, entendida no seu significado geofísico, tem capacidade maior de resiliência para que haja o desenvolvimento relacional entre os seres e os ambientes, ou seja, para que haja maior adaptação da vida. A sobrevivência e manutenção termodinâmica da Terra implica, por esse motivo, numa Racionalidade da Sustentabilidade, cuja matriz é um saber ecosófico, um saber dialogal entre os ramos do conhecimento. Talvez, a expressão cartesiana cogito, ergo sum deva ser substituída por sentio et cogito, ergo sum. Essa é a premissa para se compreender a Sustentabilidade no seu sentido jurídico.

As diferentes fontes normativas[8] espelham os critérios – nacionais, internacionais, supranacionais e transnacionais – para se desenvolver e identificar lugares, espaços de alcance e efetividade dos comportamentos humanos junto à cadeia vital terrestre. O espaço do Estado-nação já não comporta instrumentos de coerção necessárias quando se trata da articulação política, jurídica, econômica, ambiental/natural, social no mundo. A jurisdição nacional não consegue identificar razoavelmente os autores de um dano difuso, tampouco quantificar monetariamente a extensão desses danos, sejam para humanos e não humanos. A tarefa se apresenta hercúlea, senão impossível, se pensada dentro desses parâmetros. Se as fontes normativas têm como fundamento primário um saber ecosófico, consegue-se visualizar os agentes, as experiências, os locais, as estratégias e os modos de articulação para se chegar numa resposta satisfatória diante desse problema político, jurídico e econômico denominado crise da Sustentabilidade.

É possível, nesse primeiro momento, trazer um rol exemplificativo – nunca taxativo – daquilo que constitui como espaços de possibilidades ao desenvolvimento da Sustentabilidade jurídica: a) Política Jurídica; b) Circulação de Modelos Jurídicos; c) Direitos da Natureza; d) Direito (Socio)Ambiental; e) Direito e Justiça Global; f) Direito à Sustentabilidade; g) Direitos Humanos; h) Direito Constitucional; i) Pluralismo Jurídico; j) Tratados, Acordos e Convenções Internacionais; k) Direito Comparado; l) Direito Comunitário; m) Jurisprudência das Cortes Internacionais.

A partir dessa tessitura jurídica, amparada pelo saber ecosófico, a promoção da Sustentabilidade deixa, aos poucos, de ser ideologia de poucos para trazer a metamorfose de um tempo, de uma utopia capaz de elevar as civilizações a outro patamar de humanidade. Não se trata, como já comentei no início deste texto, das ideias e ideologias – novas e velhas – terem a capacidade de se reinventarem para manter os mesmos cenários de destruição, segregação, indiferença e intolerância global. A função ecológica da Sustentabilidade jurídica demanda não apenas nova mentalidade, mas, também, espírito de proteção à nossa “Casa Comum”.   

Nesse caso, o que seria, em termos de um conceito operacional, a Sustentabilidade jurídica[9]? Agora, se pode especificar o seu conteúdo: É a interação entre os diferentes níveis de articulação, organização, linguagem e estrutura das fontes normativas para assegurar os modos de desenvolvimento das vidas e sua dignidade.

Ao se compreender as exigências de um novo tempo que não se subordina a uma Razão Instrumental, tampouco aos interesses e necessidades de nações diante de seu compromisso de responsabilidade com todos, sejam humanos e não humanos. A Sustentabilidade jurídica inaugura uma outra acepção das finalidades jurídicas e reafirma o seu entendimento da dignidade da vida, desde o seu significado existencial que surge no microcosmo e se expande ao macrocosmo. É a permanente caminhada, esse ir e vir entre os portões do inferno à cidade prateada celestial na qual se entende a importância dessa rede vital ecossistêmica abrigada pela Terra. Sem essa condição, insisto, a Sustentabilidade jurídica é apenas um nome vazio de uma vazia e pretensa convivialidade entre tudo e todos.             

 

[1] VARELA, Francisco. O caminhar faz a trilha. In: THOMPSON, William (org.). Gaia: uma teoria do conhecimento. Tradução de Silvio Cerqueira Leite. 4. ed. São Paulo: Gaia, 2014, p. 48.

[2] SAAVEDRA, Jaime Fernando Estenssoro. História do debate ambiental na política mundial 1945-1992: a perspectiva latino-americana. Tradução de Daniel Rubens Censi. Ijuí, (RS): Editora da UNIJUÍ, 2014, p. 29.  

[3] "O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais grupos, destaca-se de forma especial a família enquanto célula basilar da sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum. Nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. [...] Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum". FRANCISCO. Laudato si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus/Loyola, 2015, p. 95.

[4] MATURANA, Humberto. O que se observa depende do observador. In: THOMPSON, William (org.). Gaia: uma teoria do conhecimento. Tradução de Silvio Cerqueira Leite. 4. ed. São Paulo: Gaia, 2014, p. 68.

[5] “A ideia central da teoria de Santiago é a identificação da cognição, o processo de conhecimento, com o processo do viver. [...] cognição é a atividade que garante a autogeração e a autoperpetuação das redes vivas. Em outras palavras, é o próprio processo da vida. A atividade organizadora dos sistemas vivos, em todos os níveis de vida, é uma atividade mental. As interações de um organismo vivo – vegetal, animal ou humano – com seu ambiente são interações cognitivas. Assim, a vida e a cognição tornam-se inseparavelmente ligadas. A mente – ou melhor, a atividade mental – é algo imanente à matéria, em todos os níveis de vida”. CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 50.

[6] Desde os anos 80, alguns pesquisadores começaram a definir o termo Antropoceno como uma época em que os efeitos da humanidade estariam afetando globalmente nosso planeta. O prêmio Nobel de Química (1995) Paul Crutzen auxiliou na popularização do termo nos anos 2000, através de uma série de publicações discutindo o que seria essa nova era geológica da Terra […] na qual a influência humana se mostra presente em algumas áreas, em parceria com as influências geológicas. “A humanidade emerge como uma força significante globalmente, capaz de interferir em processos críticos de nosso planeta, como a composição da atmosfera e outras propriedades”. ARTAXO, Paulo. Uma nova era geológica em nosso planeta: o Antropoceno? Revista da USP, São Paulo, n. 103, 2014, p. 15. Disponível em:« http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/99279» Acesso em: 14 jan. de 2018. 

[7] Conceito Operacional elaborado pelo autor deste texto.

[8] “Na medida em que o Direito Global contesta a hegemonia homogeneizadora do Estado nacional, típico do modelo Vestfáliano, para a produção normativa, abre uma senda para a consideração de manifestações antes marginais como jurídicas e normatizadora das dinâmicas sociais e institucionais. Nesse sentido, a proposição de fontes normativas do Direito Global decorre da Sociedade e, cumulativamente, da capacidade institucional das suas instituições no exercício da autoridade que possuem. Portanto, como primeira premissa, as fontes normativas do Direito Global surgem das plurimas instituições sociais atuantes nos cenários da globalização”. STAFFEN, Márcio. Interfaces do direito global. 2. ed. Rio de Janeiro. Lúmen Juris, 2018, p. 59.  

[9] Conceito operacional elaborado junto com o acadêmico Matheus Figueiredo Nunes de Souza, Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade Meridional – IMED.

 

 

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