Presunção de inocência e construção midiática da verdade nos casos criminais - Por João Marcos Braga de Melo

22/01/2016

Por João Marcos Braga de Melo - 22/01/2016

"A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade"

(Carlos Drummond de Andrade, Verdade)

Durante os anos da Alemanha nazista, consagrou-se como expoente na doutrina constitucional Carl Schmitt, autor defensor da impossibilidade de se acessar uma “verdade absoluta”, mas entusiasta da ideia segundo a qual “a vontade do Estado deve ser dada de início e não pode ser em nenhum caso o resultado de uma discussão; o povo deve poder expressar diretamente e sem mediações sua unidade política[1]. De acordo com o constitucionalista alemão, “povo” seria “unidade orgânica e, com consciência nacional, de onde surgem as concepções do todo estatal orgânico[2] e a participação democrática seria reduzida “a um substrato populacional etnicamente homogêneo e reduzi-la (a participação) à aclamação, destituída de argumentos, das massas incapazes”.[3]

Modernamente, muito se pesquisa acerca da influência dos textos de Carl Schmitt na estruturação do Código de Processo Penal de 1941, especialmente sobre a ideia de “verdade real” manifesta na exposição de motivos e muito reproduzida nos diversos manuais de Direito Processual Penal[4]. No citado marco, partia-se do pressuposto de que o juiz é um ente detentor de superioridade moral e intelectual acima de qualquer das partes e, por isso, seria ele capaz de assegurar a verdade real.

Entretanto, hoje em dia se sabe que não há saber absoluto e que é impossível se acessar uma “verdade real”. Mesmo a ciência cujo método pretendeu-se colocar como modelo de todo o saber – a Física[5] – já há muito deixou de lado o mecanicismo, sendo comum entre seus estudiosos os que se excedem na mística. Não é demais concluir que todo o saber ocupa-se de um âmbito da realidade e o faz a partir de perspectivas e com certa intencionalidade. É inevitável que, ao reconhecer os dados para a elaboração dos conceitos, escolhamos aqueles que guardem pertinência com nosso objeto e melhor se adequem ao nosso método[6]. O saber científico se organiza pescando os dados do mundo[7].

Sob o novo paradigma de verdade, o processo passa a ser o espaço de discussão e embate comunicativo entre defesa e acusação para se chegar à verdade. Nele a solução do caso não se encontra dada, não há certeza, mas ele “é o dispositivo estruturado para permitir que as partes possam criticamente colaborar para a formação da convicção judicial.[8]. Assim, cumpre à acusação a demonstração da validade da sua pretensão acusatória, o que somente ocorrerá após o trânsito em julgado, pois “o processo é fundado sob a presunção de inocência, que garante o estado original de incerteza que marcará a persecução penal, da notícia crime ao momento imediatamente anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória.[9]

Em contrapartida aos juízos anteriores à discussão processual, a presunção de inocência é importante garantia do indivíduo e limita o poder do Estado. Dela decorre uma forma de tratamento do acusado, segundo a qual nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito reputado culpado, nem submetido à pena antes do fim do processo. É uma decorrência lógica de ser a jurisdição a atividade necessária para obter a prova de que uma pessoa cometeu crime, como bem lembra FERRAJOLI[10]. Sob a nova perspectiva de verdade, o princípio da presunção da inocência é garantia da verdade dos autos, pois:

“Não existe um critério exterior (como por exemplo, o da concordância entre o objeto e o conhecimento) para comprovar a veracidade das declarações e das percepções, mas se não nos referimos de modo contínuo e irrenunciável – não só no cotidiano, como também na ciência – à uma verdade pressuposta na qual nos afirmamos, discutimos, concedemos, compreendemos: então a verdade somente pode ser investigada e comprovada entre aqueles que se ocupam com os objetos. A verdade se origina no Discurso, no Diálogo.” (HASSEMER, Introdução aos fundamentos do Direito Penal, p 187)

Recentemente as garantias constitucionais e processuais, especialmente o princípio da presunção de inocência, têm sido ameaçadas pela constante pressão midiática em torno dos processos criminas. Verifica-se um verdadeiro afã para afirmar a “verdade” de casos em que sequer foi desenvolvida a atividade jurisdicional. Mais absurda é a tentativa de se concretizar a existência de culpados antes mesmo da manifestação defensiva acerca da pretensão acusatória.

Busca-se hoje construir a ideia das grandes operações policiais como medida de salvação da corrupção no nosso país[11]. Percebe-se, ainda, que a grande mídia tem desenvolvido verdadeira campanha, às vezes estética, para vangloriar os responsáveis pelas grandes operações[12] e subjugar os investigados[13]. Essa forma de lidar com os casos penais acaba legitimando a atuação das autoridades envolvidas na construção do caso, se não à margem da lei, de forma não usual. No dia 19 de janeiro de 2016, por exemplo, foi divulgado que o Ministério Público Federal teria ocultado trechos do depoimento de empreiteiro famoso, investigado na Operação Lava Jato. Essa medida, se verdadeira, encontra-se calcada na ideia de que os fins justificam os meios e não está em conformidade com a função reservada ao MPF pela nossa Constituição da República. Por mais que seja legítimo o combate à “corrupção”, dentro dos limites constitucionais, pode ser perigosa a construção da verdade dos autos pela mídia, especialmente quando a defesa não teve tempo e meios para descontruir a tese de acusação.

Nunca é demais relembrar que em 1989, Peter Cohen lançou o seu mundialmente famoso documentário Arquitetura da Destruição. Na obra se descreve a conformação da estética nazista, que fora influenciada pela ideia de belo na Antiguidade Clássica, especialmente em Roma e em Atenas. Havia na Alemanha de Hitler uma ideia de “purificação” da arte: as formas deveriam ser simétricas, descreverem o projeto de homem “perfeito”. Do belíssimo documentário de Cohen se pode extrair a lição de que a maldade e crueldade podem ter várias feições, nem sempre claras e de fácil identificação. Por trás da simétrica e bem estruturada estética nazista escondiam-se os horrores dos campos de concentração. Tomemos cuidado, pois, para que por trás das nossas operações não se ocultem arbitrariedades e ilegalidades incompatíveis com o Estado de Direito.


Notas e Referências:

[1] MOUFFE, Chantal, Pensando a Democracia com e contra Carl Schmitt. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. p. 8. Disponível em http://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/publicacoes_assembleia/periodicas/cadernos/arquivos/pdfs/02/teoria.pdf.

[2] SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 45.

[3] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das probas obtidas por métodos ocultos, pgs. 28, 29 -1ed – São Paulo: Marcial Pons, 2014

[4] Acerca da ideia de “verdade real”, no processo penal, Veja-se a lição de Geraldo Prado: “Neste marco [Código de Processo Penal de 1941] de referências, portanto, tinha a sua validade determinada por ser uma das expressões da racionalidade do Estado, que assumira em tese o monopólio legítimo do exercício da forma e haveria de desempenhar as funções inerentes a este monopólio empregando a <<violência legítima>> com ferramenta para assegurar sua potestade sancionadora. Neste âmbito, <<punir>> correspondia a exigir o cumprimento de normas penais. Normas que expressavam a razão pública (razão de estado) sobre temas imbricados à preservação da unidade da própria sociedade conforme deduzida pela pura razão. Assim, toda manifestação do aparelho estatal presumivelmente seria expressão dessa racionalidade correspondente a uma determinada unicidade totalizadora, consoante Carl Schmitt, unicidade que estabeleceria uma identidade unificada por uma subjetividade produzida de cima para baixo, que escamoteia os conflitos e diferenças existentes no seio da sociedade concreta”. PRADO, Geraldo. Obra citada, pg. 29.

[5] Veja-se o nascimento da sociologia, em Auguste Comte, como a Física Social.

[6] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 2010. p. 59.

[7] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 2010. p. 59.

[8] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das probas obtidas por métodos ocultos, p. 19 -1ed – São Paulo: Marcial Pons, 2014

[9] Idem, p 17.

[10] Para mais, veja FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão.

[11] Observe-se, por exemplo, a capa da retrospectiva de 2015 da Revista Veja, em que se diz ter sido o Juiz Sérgio Moro o salvador do ano.

[12] Na capa da Retrospectiva de Veja supracitada, o Juiz Sérgio Moro aparece com uma feição estética muito próxima ao herói Superman. Nesse sentido veja a seguinte reportagem disponível em <<http://www.revistaforum.com.br/2015/12/30/no-photoshop-de-veja-fabricam-se-messianismos-e-oraculos/>>.

[13] Veja-se a última capa de Veja, em que três investigados na Operação Lava Jato aparecem em situação visivelmente abatida e de vulnerabilidade.


João Marcos Braga. . João Marcos Braga de Melo é Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), membro do escritório Tórtima, Tavares & Borges Advogados Associados.. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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