PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA? A ALEGAÇÃO DA VÍTIMA X PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A APLICAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA  

06/07/2020

Bem sabemos que, para a incidência da Lei Maria da Penha, basta à comprovação de que a violência contra a mulher tenha sido exercida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva (ou tenha convivido) com a ofendida – hipóteses que deverão ser analisadas caso a caso.

É de sabença elementar que, o requisito para deferimento das Medidas Protetivas de Urgência pode ser sintetizado em um único ponto: a situação de violência doméstica e familiar contra a mulher.

A necessidade de proteção é presumida pela lei nessa situação. Já o meio probatório suficiente para a concessão da proteção, tendo sido considerado a alegação da mulher. O standard de análise é a verossimilhança dessa alegação, guiado pelo Princípio da Precaução – argumentos estes que, inclusive, tem sido utilizados, em larga escalara, pelo STJ[1].

Entrementes, com o fito de evitarmos a banalização do instituto, parece crível que, tenhamos cautela para cada caso trazido à apreciação judicial, sobretudo, por, eventualmente, os dizeres da suposta vítima estarem fora da marquise probatória mínima exigível – apesar de ser prescindível levantamento e análise do fumus bonis iuris, quiçá do periculum in mora, por não serem as medidas protetivas consideradas de natureza cautelar e sim, tutelas inibidoras ou reitegratórias, de conteúdo satisfativo.

Obviamente, o instituto de proteção à mulher é extremamente necessário e inarredável à sociedade e ao Estado Democrático de Direito. É inegável a evolução normativa desde a promulgação da Lei em 2010, principalmente, no campo material.

Entrementes, no que tange a isonomia entre os sujeitos de direito esta não deve se resumir pura e simplesmente na simples noção de “tratar os iguais de forma sempre igual”. A materialidade substancial do conceito de igualdade também deve ser valorada, principalmente nas relações jurídicas, onde se dispensa o tratamento dos iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.

A superioridade do gênero masculino, tão enraizada na sociedade, sequer necessita de discussão para legitimá-la, de modo que esta concepção é vista como um padrão normal de comportamento social, infelizmente.

 Esse paradigma se encontra tão historicamente cristalizado que ditados (im)populares, de natureza jocosa, se tornaram deveras comum, tais como: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” ou “ele pode não saber por que bate, mas ela sabe por que apanha”, acabam por naturalizar e legitimar a violência doméstica.

Bem se sabe da necessidade de se proteger as mulheres em situação de violência doméstica, sendo esta uma premissa “autoevidente” e derivada da própria realidade social brasileira.

Em dados recentes (e permanentes em ranking), o Brasil é o quinto país do mundo com a maior quantidade de assassinatos de mulheres, em taxas proporcionais à população[2].

Noutro norte, apesar da afamada “presunção de verdade” nos dizeres da suposta vítima, em fatos que envolvam a ocorrência de violência doméstica, os mesmos não podem ser interpretados em caráter absoluto, sob pena de ferirmos garantias individuais e, especialmente, a presunção de não-culpabilidade que deve permear toda apuração que caminhe neste sentido.

Soa forçoso apreciarmos e interpretarmos os dizeres da suposta vítima, em eventual prática ilícita relatada pela mesma, fora de um esteio probatório mínimo. Se assim não pensarmos – a colação de prova atrelada à narrativa da vítima – estar-se-ia caminhando, irrefragavelmente, para a presunção de culpabilidade em detrimento da presunção de não-culpabilidade, ferindo de morte a Presunção Constitucional de Inocência.

A famigerada regra – acredita-se que ainda vigente –, é a de que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer” (art. 156 do CPP), não podendo ser a mesma presumida, quiçá interpretada, em caso de dúvida, em desfavor do acusado, tudo isso em decorrência da inteligência do artigo 5º, inciso LVII da Constituição, pois “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Ainda sobre o Princípio da Presunção de Inocência, o Italiano Luigi Ferrajoli, um dos maiores Juristas e um dos principais Teóricos do Garantistmo, em seu livro Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal (FERRAJOLI, 2002, p. 441), escreve que: “a culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada. O fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”.

É de rigor que, em caso de dúvida, que a decisão seja dada em prol do acusado (princípio do in dubio pro reo), sendo a Presunção de Inocência uma regra de tratamento em todo e qualquer processo judicial.

O ditame Constitucional é o norteador máximo em nosso Ordenamento Jurídico, sendo todas as demais Legislações Extravagantes, sujeitas à primeira.

Logo, torne-se temerária – especialmente, inconstitucional –, toda e qualquer decisão que subverta seus fundamentos, vez que, qualquer Estado que se proclame como Democrático de Direito, a eficácia de qualquer intervenção restritiva de liberdade – tal como ocorre na decretação de Medidas Protetivas de Urgência que determinam, na maioria das vezes, afastamento, não aproximação e não contato com a ofendida e seus familiares –, não deverá se atrelar à diminuição das garantias individuais.

A legislação infraconstitucional – Lei Maria da Penha – não é, não pode ser e nunca será uma exceção à regra da Presunção Constitucional de Inocência, devendo, do mesmo modo que outras normas da mesma estatura, respeitar a Sistemática Acusatória presente em nosso Ordenamento Jurídico.

Bem sabemos que, os entendimentos país afora, são subversivos na intenção de, eventualmente, “dar satisfações ao clamor da sociedade por justiça” para que, também eventualmente, possam ver o Judiciário cumprindo seu papel de “pacificador” pela adoção ferrenha de políticas criminais que visam, cada dia mais, a punição, tais como o combate a violência doméstica e familiar contra a mulher sem o levantamento e análise sumária de prova dos casos.

É como se o acusado devesse ser “condenado”, mesmo em estado de dúvida, de modo que o princípio do in dubio pro reo é substituído pelo princípio do in dubio pro societate.

Ou seja, na dúvida pelo “sim” ou pelo “não”, se deve ir sempre pela sociedade e não pelas garantias individuais de qualquer acusado em processo – o que é um disparato.

A aplicação de Medidas Protetivas de Urgência pautadas tão somente nos dizeres isolados da vítima, a fim de se garantir a proteção presumida trazida no bojo da Lei, seria idêntico a tratar o acusado, presumidamente, como culpado por qualquer fato ou crime, recaindo, na hipótese, a prova da não ocorrência dos fatos sobre seus ombros e não sobre os ombros daquela que veio conclamar proteção do Estado, o que resulta na inversão da carga processual, cabendo àquele que deveria se presumir inocente a obrigatoriedade de se provar inocente.

Na espécie, o que de fato existe e se extrai de casos que assim se portam, é a verdadeira “coisificação do acusado”, onde, prescindível se torna a produção de prova em Direito, bastando à palavra isolada da vítima como termômetro de provocação da tutela estatal – o que, data vênia, é um erro.

Em suma, convém reforçar que, não existe “prova da inocência”, mas, a obrigatoriedade daquele que alega a “prova da não inocência”. Temos que parar de guinar o Direito em favor de resultados paliativos. Não se pode alterar as regras e incumbências do jogo. É preciso ler e seguir o manual.

 

Notas e Referências

[1] RHC: 34035 AL 2012/0213979-8; AgRg no AREsp: 423707 RJ 2013/0367770-5; AgRg no AREsp: 213796 DF 2012/0165998-9.

[2] WAISELFISZ, Julio. J. Mapa da Violência 2015: Homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso, 2015, pag. 72.

 

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