Prescrição e decadência em relação a pessoas com deficiência mental ou intelectual: uma análise das incoerências do sistema  

15/07/2020

Coluna Direito Civil em Pauta / Coordenadores Daniel Andrade, David Hosni, Henry Colombi e Lucas Oliveira. 

No dia 06 de julho de 2020, completaram-se cinco anos da promulgação da Lei nº 13.146, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Datas e marcos comemorativos configuram-se como momentos oportunos para uma análise reflexiva acerca da adequação e da efetividade das normas legais. No tocante ao EPD, em que pese a doutrina se dividir entre aqueles que o criticam vigorosamente e aqueles que o elogiam de maneira quase panfletária, é preciso compreender que suas disposições possuem aspectos positivos e negativos.

Um de seus principais méritos foi, sem dúvida, colocar em foco questões jurídicas envolvendo pessoas com deficiência, por muito tempo invisibilizadas. É inegável que o EPD tem gerado, desde sua promulgação, o incremento de profícuos debates em prol da real inclusão desses sujeitos na sociedade e da efetivação de seus direitos fundamentais. Entretanto, na busca por igualdade, em alguns momentos, o legislador acabou por desconsiderar as barreiras que as pessoas com deficiência encontram para sua participação plena e efetiva na sociedade, acentuando desigualdades.

Nesse contexto, uma temática que foi alterada indiretamente após a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência e que merece análise mais detida, refere-se à prescrição e à decadência. Esses institutos são verdadeiros mecanismos estabilizadores[1], na medida em que lidam com os efeitos do tempo no exercício de direitos, buscando evitar que situações precárias se eternizem. Dessa feita, a partir do pressuposto de que a vida das pessoas carece de estabilidade e segurança, a inércia do titular no exercício de um direito ou de uma pretensão, em regra, conduz mais cedo ou mais tarde a sua perda, como forma de repelir incertezas.

De maneira geral, uma vez violado certo direito, nasce uma pretensão que, se não exercida, se extinguirá após o decurso de todo o prazo prescricional previsto em lei (art. 189 do Código Civil). Já a decadência consiste na extinção de um direito potestativo, em virtude de seu não exercício em um determinado lapso temporal.[2] Uma vez iniciado o prazo prescricional ou decadencial, em regra, ele transcorrerá sem paralisações. Contudo, há situações legalmente previstas que irão impedir, suspender ou interromper a fluência do prazo, afetando, consequentemente, o momento em que a prescrição se efetivará. No que concerne à temática deste trabalho, o art. 198, I do Código Civil estabelece que a prescrição não corre contra os incapazes do art. 3º, que são os absolutamente incapazes. O art. 195 determina que os relativamente incapazes têm ação contra os seus assistentes que derem causa à prescrição, ou não a alegarem oportunamente. Ainda, o art. 208 da codificação estende a aplicação dessas regras à decadência. A finalidade das disposições é a proteção dos sujeitos que, em virtude das peculiares circunstâncias em que se encontram, não poderiam adequadamente zelar pelos seus direitos.

Esse regime jurídico já era alvo de críticas independentemente das reformas empreendidas pelo EPD. A despeito da literalidade do art. 198, I do Código Civil, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no julgamento do Recurso Especial nº 1.595.136, que o prazo prescricional contra absolutamente incapaz inicia seu curso assim que nomeado um curador ao interdito, de modo a evitar a eternização de pretensões[3]. Nesse mesmo sentido, Rodrigo da Guia Silva e Eduardo Nunes de Souza[4], ao analisarem o discernimento e sua relevância para o regime jurídico da prescrição e da decadência, também sugerem que a fluência dos prazos deva ser permitida contra todos os absolutamente incapazes representados. Isso porque o representante administra os bens e direitos do representado e todos os atos por ele praticados, na qualidade de representante, são válidos. Dessa forma, não haveria motivos para o tratamento diferenciado na seara dos efeitos do tempo nas relações jurídicas. Seguindo os mesmos pressupostos, os autores propõem que se o credor é relativamente incapaz e está desprovido de assistência, a prescrição e a decadência não deveriam correr contra ele, pois também se trata de sujeito que não dispõe de pleno discernimento e necessita de proteção.

De fato, é incoerente impedir ou suspender os prazos prescricionais e decadenciais contra os absolutamente incapazes, ainda que representados, mas considerar em curso os prazos contra todos os relativamente incapazes, ainda que não assistidos. Se a ideia da causa impeditiva/suspensiva constante no art. 198, I da codificação é proteger quem não detém plenas condições de compreender e tomar decisões por si só, o tratamento não deveria ser discrepante entre absolutamente e relativamente incapazes. Garantir a esses últimos apenas o direito de regresso para cobrar eventuais prejuízos em face de seus assistentes, não se mostra uma solução efetiva em todos os casos. Melhor teria sido fixar como critério para a fluência dos prazos a existência ou não de representante ou assistente devidamente constituído para o apoio na defesa dos interesses do incapaz.

Ocorre que essas incongruências se aprofundaram com a entrada em vigor do EPD. Como é sabido, o Estatuto alterou os artigos 3º e 4º do Código Civil de modo a não mais considerar como absolutamente incapazes, pessoas com deficiência mental ou intelectual com redução significativa ou mesmo ausência de discernimento. Em função do caráter estrito do regime de incapacidades, esses sujeitos só poderão ser considerados relativamente incapazes quando não exprimirem qualquer vontade (art. 4º, III do Código Civil), categoria à qual não se aplica a hipótese em análise que suspende ou impede a prescrição e a decadência.

Essa mudança, muito embora tenha sido motivada pela tentativa de efetivar a igualdade das pessoas com deficiência em relação às demais pessoas, foi realizada de maneira pontual e sem considerar o ordenamento jurídico brasileiro de maneira sistemática. Afinal, uma vez que o sujeito é considerado incapaz, suas relações jurídicas passarão a ser regidas por uma série de normas protetivas. Em contrapartida, quando certos indivíduos são retirados da categoria de incapazes sem qualquer ressalva, a eles não serão mais aplicadas as normas de proteção. Assim, o EPD trouxe repercussões que provavelmente não foram imaginadas pelo legislador e que acabam por desproteger as pessoas com deficiência mental ou intelectual, como já defendido em outra oportunidade[5]. No tocante aos institutos de prescrição e decadência, os prazos passaram a correr contra essas pessoas, as quais poderão, no máximo, tentar reaver os prejuízos em face dos assistentes, quando consideradas relativamente incapazes.[6]

Poder-se-ia argumentar que a fluência do prazo prescricional é a contrapartida ao reconhecimento da autonomia desses sujeitos. A possibilidade de autodeterminação está sempre conectada à responsabilidade pelas escolhas feitas e pelas condutas perpetradas. Todavia, é inquestionável que há pessoas com deficiência mental ou intelectual que não reúnem condições mínimas para gerir seu patrimônio e seus negócios de maneira autônoma, não podendo ser responsabilizadas exatamente da mesma maneira que as demais pessoas. Tais situações exigem a intervenção do Estado de modo a buscar a efetivação de uma igualdade material. Inclusive, esse parece ser o intento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, que parte da constatação de que as pessoas com deficiência encontram barreiras para sua plena inclusão na sociedade, devendo esses obstáculos serem removidos.

Para além da desproteção, o EPD acentuou incoerências do sistema.  Agora, os prazos de prescrição e decadência não correm contra crianças e adolescente menores de dezesseis anos, única hipótese de incapacidade absoluta na atualidade, mas irão correr contra um sujeito em coma, que não consegue formular e nem exprimir qualquer vontade. Há, portanto, um injustificado distanciamento entre as regras aplicáveis aos menores e aos maiores. O critério do discernimento foi abandonado[7], de modo que a disposição normativa se afastou do seu propósito inicial de proteção da pessoa que não possui condições de compreender situações fáticas e de exercer pessoalmente seus direitos e pretensões. Ademais, as pessoas com deficiência mental ou intelectual que consigam exprimir vontade, ainda que desprovida do necessário discernimento, serão sempre capazes (art. 6º do EPD) e sofrerão os efeitos decadenciais e prescricionais. Elas não poderão sequer exigir de alguém o ressarcimento pelos danos sofridos. Por fim, a causa impeditiva/suspensiva em questão continua a tratar como irrelevante a existência ou não de um representante ou assistente devidamente constituído para a defesa dos interesses do incapaz.

De todo modo, com fins a não se comprometer ainda mais a segurança jurídica e a isonomia, é preciso enfatizar que eventuais mudanças nesse campo precisam ser de lege ferenda e não com base em interpretações a partir de um arcabouço principiológico. Não raro encontram-se proposições que defendem situações contrárias ao texto legal, com base na aplicação de princípios constitucionais. Contudo, é preciso ter cautela nessas construções e, sobretudo, adotar certo rigor metodológico na atividade hermenêutica, de modo a não enfraquecer a legislação e nem mesmo aumentar a complexidade dos processos decisórios ou banalizar alguns conceitos, como o de dignidade da pessoa humana.[8]

A partir de todo o exposto, entende-se que a causa suspensiva e impeditiva da prescrição e da decadência ligada à incapacidade precisa ser revista, de modo a se conferir maior coerência ao sistema. Os princípios de certeza e estabilidade do direito devem ser harmonizados com a lógica de proteção dos sujeitos vulneráveis, sejam eles crianças e adolescentes ou adultos com deficiência mental ou intelectual com comprometimento do discernimento.

 

Notas e Referências

[1] VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria geral do direito civil. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2012. p. 325.

[2] Existem autores que defendam a inexistência de diferença ontológica entre prescrição e decadência, sendo a distinção resultado de mera política legislativa. Nesse sentido: GONÇALVES, Aroldo Plínio. A prescrição no Processo do Trabalho. Belo Horizonte: Del Rey, 1983. p.18. Todavia, em que pese a existência de equívocos no Código Civil brasileiro a respeito da classificação de algumas pretensões, entende-se ainda ser adequada e útil a diferenciação ontológica entre os dois institutos.

[3] De acordo com a fundamentação do acórdão, “o exercício da pretensão de indenização do seguro obrigatório (DPVAT), nos casos do absolutamente incapaz, fica postergado para o momento do suprimento da incapacidade, assim reconhecido por sentença judicial de interdição e nomeação de curador transitada em julgado, contando-se a partir de então a prescrição”. STJ. Quarta Turma. Resp. 1.595.136. Relator Min. Luís Felipe Salomão. Julgado em 28/11/2017; publicação em 1/12/2017. Apesar do julgamento ter sido em 2017, a questão fática se refere a período anterior à vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, motivo pelo qual a novel legislação não se aplicou ao caso. 

[4] SILVA, Rodrigo da Guia; SOUZA, Eduardo Nunes de. Discernimento da pessoa humana e sua relevância para o regime jurídico da prescrição e da decadência. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima; ALMEIDA JÚNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.) O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 99-166.

[5] LARA, Mariana Alves; PEREIRA, Fabio Queiroz. Estatuto da Pessoa com Deficiência: proteção ou desproteção? In: PEREIRA, Fabio Queiroz; MORAIS, Luísa Cristina de Carvalho; LARA, Mariana Alves (Org.). A teoria das incapacidades e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 95-124.

[6] Esse parece ser o posicionamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Em pesquisa no sítio eletrônico do Tribunal com os termos prescrição, decadência e Estatuto da Pessoa com Deficiência, foram localizados quatro acórdão a respeito do tema em análise. Muito embora todos digam respeito a situações ocorridas antes da entrada em vigor do EPD, é recorrente a ênfase de que “com a nova redação do art. 3º do Código Civil, dada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, os prazos prescricionais não correm apenas contra os menores de 16 anos”. TJMG. 8ª Câmara Cível. Ap. Cível/Rem Necessária 1.0324.11.000283-3/001. Relator Des. Carlos Roberto de Faria. Julgado em 13/07/2017; publicação em 07/08/2017. 

[7] Tendo em vista que o EPD adotou o conceito biopsicossocial de deficiência da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF da Organização Mundial de Saúde de 2001, tem se defendido o abandono da ideia de discernimento na teoria das incapacidades, substituindo-a pela noção de funcionalidade. Contudo, entende-se que mesmo sob o paradigma da funcionalidade, o que se analisa para fins de capacidade de fato são as manifestações de patologias que comprometem funções mentais, afetando atividades e participação relativas, sobretudo, à aprendizagem e à aplicação do conhecimento (classificação de primeiro nível CIF), noções que tradicionalmente são englobadas pelos civilistas na ideia de discernimento. Por esse motivo, se analisado o discernimento de maneira contextualizada, entende-se desnecessário o seu completo abandono.

[8] A respeito do assunto: LEAL, Fernando. Seis objeções ao direito civil constitucional. Direitos Fundamentais e Justiça, Porto Alegre, ano 9, n. 33, out./dez. 2015. p. 123-165.  

 

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