É preciso que fique claro que não há imparcialidade, neutralidade e, de consequência, perfeição na figura do juiz, que é um homem normal e, como todos os outros, sujeito à história de sua sociedade e à sua própria história[1].
Uma das questões candentes do processo penal é a despeito da imparcialidade do julgador. Apesar da omissão de outrora, hodiernamente, a literatura processual tem se debruçado sobre a questão. Nesse breve artigo, aspira-se trazer uma análise sobre a suspeição do magistrado frente ao prejulgamento da causa.
Desse modo, embora não previsto no rol dos artigos 252 e 254 Código de Processo Penal - tampouco no Código de Processo Civil, que pode ser aplicado analogicamente ao CPP -, para Gustavo Badaró, dentre outros[2], esses artigos devem ser contemplados como rol exemplificativos ou numerus apertus - ou seja, o prejulgamento induz à suspeição do magistrado, conquanto essa hipótese não esteja positivada nos artigos referidos.
Ampara-se esse entendimento, além da Constituição Federal, em declarações e tratados internacionais de direitos humanos que, de forma geral, asseguram duas características a todos os acusados – quais sejam, “o direito de serem julgados por um tribunal independente e imparcial”[3].
Nesse sentido, é o magistério de Cristiano Fragoso, “embora não haja previsão legal explícita, deve ser possível, ao meu sentir, a arguição da suspeição na hipótese em que o Magistrado prejulga a causa, ou seja, manifesta açodadamente seu convencimento acerca da demanda que lhe é submetida”[4].
A corroborar com esses entendimentos, a imparcialidade judicial encontra-se devidamente assegurada nos seguintes diplomas internacionais:
Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10), Declaração Americana dos Direito Humanos (art. 26.2), Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.1), e na Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950 (art. 6.1)[5].
Demais disso, vários são os sistemas jurídicos estrangeiros que positivam a possibilidade de se recusar o julgador que prejulgou o caso. A exemplo, tem-se o CPP italiano de 1988, no artigo 37; o CPP alemão de 1877, no §24; o CPP português, no art. 42. °, etc[6].
Nesse raciocínio, apesar de a Constituição nacional não assegurar, expressamente, o direito de ser julgado por um juiz imparcial; inegável ser a imparcialidade conditio sine quo non de qualquer julgador, sendo, assim, uma garantia implícita[7].
Pode-se dizer, então, que a imparcialidade é a essência da jurisdição, pois, nos ensinamentos de Zaffaroni, “a jurisdição não existe se não for imparcial”[8] – isto é, quando se fala em jurisdição, invariavelmente, está a falar de imparcialidade[9].
Não é outro o entendimento de Frederico Marques, porquanto, segundo ele, a imparcialidade é essencial à atividade jurisdicional e “hoje pode ser aceita como um dogma, está na própria essência do Poder Judiciário”[10].
Nessa direção, para Claus Roxin, um dos maiores expoentes do direito mundial, na linha preconizada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, todo juiz poderá ser recusado “por temor de parcialidade quando exista razão para justificar a desconfiança sobre sua imparcialidade”[11].
No entanto, como se detectaria um juiz parcial?
Para o processualista Aury Lopes Jr., “a imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz que dá inequívocos sinais de que já decidiu a causa”. É que, como prossegue o autor, “grave inconveniente reside em tais argumentos a priori, na medida em que a decisão é tomada de forma precipitada, antes da plena cognição do feito, fulminando a própria dialética do processo e seu necessário contraditório”[12].
Vê-se, portanto, que a parcialidade do julgador deverá ser aferida pela exteriorização de atos imparciais.
Para isso cotejar, a doutrina, em especial a europeia, a partir do julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), passou a distinguir a parcialidade entre objetiva e subjetiva. Esta é verificada, embora para alguns seja impossível, no que “diz respeito ao que pensa um juiz que intervém em determinado caso penal”[13]. Aquela, por sua vez, “refere-se ao juiz, em razão de considerações de caráter orgânico ou funcional, não apresentar (nem dar sinais de) (pré)juizos ou (pré)conceitos em relação ao caso penal que irá julgar”[14].
Note-se, sem embargos, que o prejulgamento submete o processo ao mero jogo de cartas marcadas, aniquilando a jurisdição.
Na lógica processual democrática, o juiz deve se submeter ao devido processo legal, formando seu convencimento durante a marcha processual e manifestar seu convencimento, apenas, no instante final do processo; leia-se, sentença.
Dessa forma, em que pese parte da doutrina entender que a suspeição do magistrado deve estar estritamente estabelecida em lei, nos termos do artigo 254 do CPP, “a imparcialidade do julgador é tão indispensável ao exercício da jurisdição que se deve admitir a interpretação extensiva e o emprego da analogia diante dos termos previstos no art. 3° do Código de Processo Penal”[15].
Neste ponto, para o ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, o rol dos artigos do Código de Processo Penal seria exemplificativo, sendo possível aplicar as regras de impedimento e suspeição do Código de Processo Civil, por analogia. Seguindo esse entendimento, suscitou arguição de impedimento, suspeição e incompatibilidade do Ministro Gilmar Mendes.
Entretanto, tal arguição fora suscitada, tão somente, pelo fato de o Ministro Gilmar Mendes restabelecer, baseado na lei, liberdade de paciente encarcerado, nos autos do habeas corpus 146.813/RJ.
Cumpre-se destacar, pelo que parece, que a parcialidade do julgador, ao menos para alguns setores do MP, somente transparece quando da concessão de liberdade ao acusado. Não se tem notícia de arguição de suspeição contra magistrado que deixou suspeito encarcerado. Nomeia-se, isso, como histeria punitiva.
Desse modo, diante da presunção de parcialidade, a parte deverá argui-la na primeira oportunidade, uma vez que a hipótese é relativa, conforme já manifestou o Supremo Tribunal Federal[16].
Por tudo isso, deve-se recusar o julgador que demonstre sumariamente, antes do momento apropriado no processo, já ter formado seu convencimento sobre o desfecho causal.
Por fim, transcreve-se a famosa expressão utilizada pelo TEDH[17], na ocasião do julgamento do caso Delcourt vs. Bélgica: “a Justiça não apenas precisa ser feita, ela precisa também parecer ter sido feita”[18].
[1] Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.
[2] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 532.
[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 44.
[4] FRAGOSO, CHRISTIANO. Prejulgamento induz suspeição, p. 2.
[5] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva: Empório do Direito, 2017, p. 77.
[6] FRAGOSO, CHRISTIANO. Prejulgamento induz suspeição, p. 3.
[7] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 46.
[8] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: Crises acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 86.
[9] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva: Empório do Direito, 2017, p. 77.
[10] MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1962. v. I, p. 180.
[11] ROXIN. Claus apud PRADO, Geraldo. Disponível em: justificando.cartacapital.com.br/2017/02/22/imparcialidade-do-juiz-e-criterio-para-medir-maturidade-democratica-de-uma-sociedade/ Acesso em 01.11.2017.
[12] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 534.
[13] CASARA, Rubens R.R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 146.
[14] CASARA, Rubens R.R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 147.
[15] STJ, REsp, 6° T., rel. Vicente Leal, 1°. 10.2001.
[16] STF, HC 107.780, rel. Min. Cármem Lúcia, j. 13.9.11.
[17] Em inglês: “Justice must not only be done; it must also be seen to be done”.
[18] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 46.
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