Prefácio ao livro “Estudos críticos em direito penal e processual penal”, 2021

07/04/2022

Coluna Cautio Criminalis

O texto que o leitor tem abaixo é o prefácio que fiz, em 2021, ao livro Estudos críticos em direito penal e processual penal pela Editora Dialética, para o qual também contribuí com um estudo sobre a noção de culpabilidade no direito penal do Brasil Império e cuja organização assino com Artur Alves, Larissa Faria, Leonardo Avelar e Rafael Alem.

No intento de agrupar aqui alguns de meus textos recentes para o leitor da Cautio Criminalis, bem como para divulgar o lançamento dessa obra especial em que participaram muitos amigos queridos, como Bruno Gilaberte, Edson Amaral, Bernardo Dumont, Marcus Montez, Rodrigo Murad, Artur Vieira, Natacha Alves, Samuel Neri e dezenas de outros autores de igual calibre, temo-lo aqui à disposição com algumas ideias sobre poder punitivo e direito penal.

 

Parte I

Era um dia de chuva torrencial aquele em que uma terrível assassina de crianças havia transformado sua serviçal em um cavalo com asas e montado nela até uma alta montanha onde se encontravam bruxas combinando maledicências e planejando destruir o vilarejo. Mais ou menos na mesma época, um mago tenebroso comia corações de bebês num ritual mágico que lhe garantiria grandes poderes sobrenaturais, locomovendo-se pelos lugares em uma imponente carroça dourada. Durante todo esse período, gatos, toupeiras, cães, aves, répteis e estátuas de mármore eram julgados e julgadas impiedosamente por seus crimes graves contra o povo de bem. Muitos anos depois, um poderoso justiceiro, munido de sua capa vermelha, tentava enviar diretamente ao inferno os malfeitores enquanto, do outro lado do mundo, aquele conhecido como O Persecutor combatia ferozmente alguns seres híbridos frutos de uma miserável mistura de raposa com porco.

Talvez um aposentado escritor de enredos de ficção científica de terceira classe tivesse pensado em tudo isso compondo um filme trash meio comédia ou meio terror barato, despejando esse caminhão de delírios imaginativos em algum fórum nerd dos confins escuros da Internet, mas quem dera fosse assim. Cada um desses episódios representa, em realidade, um bizarro capítulo da história macabra do poder punitivo.

Anne Pedersdóttir[1] não surgiu de nenhum filme de magia. Na verdade, a jovem escandinava fora acusada de bruxaria no último quartel do Século 16. Elena, a serviçal que a delatara (a quem em algum momento histórico descobriu-se ter imensa inveja de sua senhora), disse ter sido transformada por ela em égua e cavalgada pela maléfica até a montanha de Lyderhorn, onde hoje se encontra a cidade de Bergen, condado de Vestland, na Noruega. Um tribunal composto por trinta e quatro homens, após massiva difusão de sua bruxaria na opinião pública, amarrou-a à lenha e meteu-lhe fogo. Aparentemente sobre seu ex-marido, Absalon Pedersson, pairava a suspeita de que queria se tornar bispo no lugar de Gjebe Pedersson, a autoridade local.[2] Já Dietrich Flade, na cidade de Trier (Alemanha do mesmo Século), fora acusado de mago por Johann Zandt von Marll, um inquisidor recém empoderado politicamente que se incomodara com as decisões do então juiz que contrariavam seus interesses na gestão da inquisição de mulheres do lugar.[3]

Já o julgamento de animais foi uma realidade histórica muitíssimo comum entre os Séculos 13 e 18 na Europa, e há disso muita documentação, inclusive primária. Os animal trials se realizavam por tribunais seculares e eclesiásticos com a finalidade precípua de garantir a estabilidade das normas sociais e, pela afirmação desse poder irracional, criar uma estética de integração axiológico-punitiva altamente funcional à manutenção do estado de coisas social. Havia estrutura processual penal em sentido estrito e os bichos tinham até mesmo direito a um advogado. Condenações eram comuns, mas houve também absolvições, é claro: em 1750 uma mula foi inocentada da acusação de ter mantido relações sexuais com o dono por ausência de “dolo” depois que os habitantes de Vanvres (França) apresentaram um atestado de bons antecedentes dela. Sim, da mula. Aqui no Maranhão, em 1713, foram julgados cupins que invadiram um mosteiro franciscano causando danos à propriedade e à tranquilidade.[4] Já o malfeitor que iria para o inferno pelas mãos do justiceiro era Fabian von Schlabrendorff,[5] envolvido em uma das muitas conspirações para assassinar Adolf Hitler. O justiceiro, sob a famosa toga vermelha do Judiciário nazi, era Roland Freisler,[6] o mais sangrento magistrado da história alemã. Após anunciar a pena capital de Schlabrendorff, o juiz mandá-lo-ia para lá “em breve”.[7] Não conseguiu, aliás, pois, pouquíssimo tempo antes de executar a sentença, uma bomba americana atingiu-o e despedaçou o depravado, preservando Schlabrendorff, que em 1967 tornar-se-ia juiz da Corte Constitucional. O Persecutor, por fim, era Andrzej Vyshinsky,[8] o terrível promotor soviético. As “miseráveis misturas de raposa com porco” às quais se referia eram seus acusados anti-Stalin no caso Zinoviev-Kamenev (1936).[9]

 

Parte II

Compreender o percurso histórico e a legitimação do poder punitivo é tarefa da maior complexidade. Não se a alcança se não desencapsulamos[10] o direito para investigarmos as estruturas totais de poder penal, seus discursos, sua política, suas filosofias, seus (trágicos) personagens e sua dogmática. É assim e somente assim que, olhando para o passado, percebemos que a maioria das histórias sobre a capacidade de punir as pessoas problemáticas já foi contada em detalhes, talvez ontem, talvez há centenas de anos. Então creio ser este o compromisso ético primordial do estudioso: questionar e propor de maneira curiosa e interdisciplinar.

O pequeno livro que nos propusemos a escrever visa fazer frente a esse comprometimento. Perpassam-no, portanto, textos dos mais diversos segmentos penais desde a criminologia até a política-criminal, passeando também por inúmeras contribuições jurídico-dogmáticas materiais e processuais de grande sofisticação.

Lembrando de uma ainda jovem estudante de direito da Faculdade Nacional (hoje UFRJ) e do que nos ensinou bem antes de ser reconhecida como um gênio dos romances, contos e ensaios: o Estado pune porque pode, não porque tenha direito.[11] Vejamos então se pode mesmo. E se sim, que é que o faz poder.

E se algo o faz poder, que é que fazemos com isso.

Estudos críticos em direito penal e processual penal (org. Rodrigo Barcellos, Artur Alves, Larissa Faria, Leonardo Avelar, Rafael Alem), 661p, está disponível pela Editora Dialética.

 

Notas e Referências

[1] Essa grafia aparece em BURNS, Willaim E. Witch hunts in Europe and America: an encyclopedia. London: Greenwood Press, 1959., mas outras variações são comuns. Por exemplo, Anna Pedersdotter é assim redigida em LEVACK, Brian P. The witch-hunt in Early Modern Europe. Pearson Education Limited, 2006.

[2] Informações históricas sobre sua persecução se encontram em BAINTON, Roland H. Women of the Reformation: from Spain to Scandinavia. Minneapolis: Augsburg Pub. House, 1977.

[3] O melhor estudo sobre Flade é BURR, George Lincoln. The fate of Dietrich Flade. New York: G. P. Putnams, 1891.

[4] Uma boa síntese do tema, em português, pode ser encontrada em BRAGA LOURENÇO, Daniel. A persecução e a condenação criminal de animais: o processo judicial como meio de conferir integridade às narrativas sociais em conflito. Revista Brasileira de Direito Animal. [S. l.], v. 12, n. 02, 2017. DOI: 10.9771/rbda.v12i02.22944. Disponível em: < https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/22944/0 >. Acesso em 17/09/2021.

[5] Sua própria narrativa pode ser lida nos seus escritos em VON SCHLABRENDORFF, Fabian. The secret war against Hitler. Translated by Hilda Simon. Oxford: Westview Press, 1994.

[6] Sua biografia completa em ORTNER, Helmut. Hitler’s executioner: judge, jury and mass murderer for the nazis. Yorkshire – Philadelphia: Frontline Books, 2018.

[7] Cf. ARNEDO, Fernando J. Roland Freisler: “el soldado político de Hitler”. In: FREISLER, Roland. Derecho penal de voluntad. ZAFFARONI, Eugenio Raúl (director). 1a ed. Ciudad Atónoma de Buenos Aires: Ediar, 2017. Quando originalmente escrevi o prefácio, fiz referência a uma específica nota de rodapé da fonte citada em que se dá conta de algumas testemunhas que, supostamente, teriam narrado um diálogo entre Freisler e Schlabrendorff no qual o primeiro disse que o enviaria ao inferno e o segundo lhe respondera para ir primeiro. Algum tempo depois, tive acesso ao livro The secret war Against Hitler, do próprio Schlabrendorff. No capítulo em que narra sua passagem pelo Tribunal do Povo e fala brevemente de Freisler, ele não faz referência a nenhum diálogo como esse. Para não alterar o texto que eu já havia publicado, decidi manter o corpo da mesma maneira como redigi originalmente e explicar em nota de rodapé essa pequena impropriedade que, de novo, somente fui capaz de descobrir após já publicada. Ela, aliás, não altera em nada a ideia geral do texto: basta consultarmos a biografia do juiz nazista por Helmut Ortner ou assistirmos a alguns dos arquivos de vídeo do Volksgerichtshof para vermos que, se Freisler não mandou Schlabrendorff ao inferno nessa ocasião, mandou outras centenas de pessoas.

[8] Sua biografia em VAKSBERG, Arkady. Stalin’s prosecutor: the life of Andrei Vyshinsky. Translated from the Russian by Jan Butler. 1st. American ed. New York: Grove Weidenfeld, 1991.

[9] Para um trabalho mais detalhado sobre esses personagens e sua importância na manipulação política do poder punitivo, seja através do direito penal ou do processo, cf. BARCELLOS, Rodrigo; PRADO, Rodrigo Murad. Estudo preliminar. In: ZAFFARONI, Eugenio Raúl [et. al.] Bem-vindos ao Lawfare: manual de passos básicos para demolir o direito penal. 1a ed. São Paulo: Editora Tirant lo Blanch, 2021.

[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1933 a 1945. Trad. Rodrigo Murad do Prado. 1a ed. Florianópolis: Editora Tirant lo Blanch, 2019. pp. 22 – 23.

[11] O texto original: Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há. In: LISPECTOR, Clarice. Outros escritos. 1a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. p. 48.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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