Precisamos (realmente) falar sobre o indiciamento: da forma correta!

11/02/2017

Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos – 11/02/2017

Em recente artigo publicado neste site, de autoria do Prof. André Sampaio, criticou-se o indevido uso do indiciamento por alguns Delegados de Polícia, pontou-se a falta de previsão legal em relação a seus efeitos, bem como questionou-se a sua existência no ordenamento jurídico. Antes de adentrarmos nesses pontos, faz-se necessário apresentar umas breves linhas sobre o indiciamento.

O indiciamento consiste no ato formal de se atribuir a autoria de uma infração penal típica, antijurídica e culpável a uma pessoa determinada. Por isso, como se observa pelo teor da Súmula nº 6, aprovada no I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo: Repercussões da Lei 12.830/13 na Investigação Criminal, realizado na Academia de Polícia Coriolano Nogueira Cobra, em 26 de setembro de 2013, com a participação de Delegados da Polícia Civil do Estado de São Paulo e da Polícia Federal:

É lícito ao Delegado de Polícia reconhecer, no instante do indiciamento ou da deliberação quanto à subsistência da prisão-captura em flagrante delito, a incidência de eventual princípio constitucional penal acarretador da atipicidade material, da exclusão de antijuridicidade ou da inexigibilidade de conduta diversa.

O indiciamento não pode ser fundamentado em meras suspeitas e deve estar calcado em fortes indícios de autoria e materialidade. É com base nesse fundamento que a Lei n° 12.830/13, que dispõe sobre a investigação policial conduzida pelo Delegado de Polícia, traz a seguinte previsão legal:

Art. 2°, § 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

É também no mesmo sentido o teor da Súmula nº 5, aprovada no I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo: Repercussões da Lei 12.830/13 na Investigação Criminal, realizado na Academia de Polícia Coriolano Nogueira Cobra, em 26 de setembro de 2013, com a participação de Delegados da Polícia Civil do Estado de São Paulo e da Polícia Federal:

Súmula nº 5: O indiciamento policial é ato privativo do Delegado de Polícia e exclusivamente promovido nos autos de inquérito policial adrede instaurado, devendo ser necessariamente antecedido de despacho circunstanciado contendo os fundamentos fáticos e jurídicos da decisão, bem como a completa tipificação provisória da conduta incriminada.

Preenchidos os requisitos, nas palavras de Renato Brasileiro (2011, p. 164) nasce para o Delegado de Polícia o “poder dever” de efetuar o indiciamento. No entanto, a Autoridade Policial que procede ao indiciamento sem preencher esses requisitos pratica constrangimento ilegal, admitindo-se a utilização do habeas corpus como instrumento hábil para sanar essa lesão (HC 43599/SP, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 09/12/2005).

O indiciamento é qualificado como um ato privativo da Autoridade Policial que pode ser feito a qualquer momento durante o curso do inquérito policial, por meio de um despacho fundamentado, ou no relatório final do inquérito policial. Com o recebimento da denúncia, não é mais possível o indiciamento e, de acordo com o STJ (HC 182.455/SP, Rel. Ministro Haroldo Rodrigues (desembargador convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 05/05/2011.),

... o indiciamento formal dos acusados, após o recebimento da denúncia, submete os pacientes a constrangimento ilegal e desnecessário, uma vez que tal procedimento, que é próprio da fase inquisitorial, não mais se justifica quando a ação penal já se encontra em curso.

Por ser um ato privativo do Delegado da Polícia Civil ou da Polícia Federal, o magistrado e o membro do Ministério Público não podem requisitar que a Autoridade policial proceda ao ato formal do indiciamento (HC 115015, julgado em 27/8/2013, Rel. Min. Teori Zavascki).

O indiciamento implica que um cidadão deixe de ocupar a posição de suspeito ou de testemunha e passe a ocupar a posição jurídica de indiciado. Com essa mudança de status, ele passa a ter o direito de ficar calado e de não se incriminar, bem como nasce para o Delegado de Polícia o dever de averiguar a vida pregressa dessa pessoa e efetuar a sua identificação criminal, caso seja legalmente cabível.

No caso de indiciamento relativo a crimes de lavagem de dinheiro, o art. 17-D, da Lei n° 9.613/98, determina que o servidor público será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno.

Essas breves linhas demonstram a existência de um vasto estudo e jurisprudência já existente sobre o tema, sendo que muitos outros pontos poderiam ainda ser abordados, como a questão do indiciamento nos casos de foro por prerrogativa de função, a possibilidade do desindiciamento e as consequências da conclusão do inquérito policial sem o devido indiciamento. Não pretendemos, nessas breves linhas, aprofundar o tema proposto, o que ocorre na nossa obra Delegado de Polícia em Ação. Ora, então qual a necessidade desta breve exposição?

Voltamos, então, ao ponto inicial do artigo!

Em primeiro lugar, o autor criticou o indevido uso do indiciamento por alguns Delegados de Polícia. O equivocado uso de uma atribuição, função ou poder não pode, por si só, justificar o fim dessa atribuição, função ou poder. Se alguns magistrados não têm conhecimento de como sentenciar ou sentenciam mal, deveríamos acabar com esse ato processual? Se alguns Promotores de Justiça não sabem denunciar, deveríamos acabar com esse ato processual? Se alguns advogados não sabem atuar no inquérito policial, deveríamos retirar a sua participação do procedimento?

Como diz o conhecido ditado, “para tirar a água suja, há que se cuidar para não jogar a criança junto”. Por isso, a crítica relativa ao equivocado uso de um instituto dificilmente se sustenta. Maus profissionais existem em todas as profissões. Não podemos ser como aquele cidadão que, após perder o relógio, decide procurar somente debaixo de uma luz por ser mais fácil a busca e não lugar de sua perda...

Em segundo lugar, o autor pontou a falta de previsão legal em relação aos efeitos do indiciamento. Existe falta de previsão legal? De fato! Isso chega a ser um problema? Para responder esse ponto, vale a pena fazer um paralelo com outras situações – até mais gravosas – que, a despeito da falta de previsão legal, são plenamente utilizadas.

O poder investigativo do Ministério Público é uma dessas situações que, até a presente data, não possui uma sistemática prevista em lei federal. Difícil achar algo mais invasivo que uma investigação desprovida de base legal. E o controle de constitucionalidade que é fundamentado principalmente na jurisprudência do STF? Aliás, qual dispositivo constitucional que autoriza expressamente todos os magistrados fazerem controle difuso de constitucionalidade?

Ademais, a previsão legal é realmente capaz de resolver os problemas? Ou acaba por criar outros tantos mais? E a colaboração premiada que, mesmo com previsão legal, ganhou contornos nunca antes imaginados com a Lava Jato? E a prisão preventiva que não pode ser concedida de ofício pelo magistrado no curso da investigação criminal, mas pode o mesmo – sem previsão legal – decretá-la por ocasião da lavratura em prisão em flagrante delito?

Sem contar que precedentes, previsões legais ou mesmo previsões constitucionais muitas vezes ainda possuem um caráter pragmático, sendo utilizados (ou não!) como mera estratégia para a tomada de decisão, sem uma real preocupação com a integridade do direito. Afinal, não podemos esquecer que, mesmo contrário à disposição constitucional, ainda temos policiais militares investigando civis, inclusive com medidas cautelares autorizadas pelo Poder Judiciário.

Não negamos a necessidade de uma melhor previsão legal sobre o tema do indiciamento. O problema é acreditar que a existência de previsão legal seja capaz de realmente resolver os problemas existentes, sem que, inclusive, crie diversos outros (e até mais graves). Aliás, o positivismo à brasileira mandou lembranças!

Em terceiro lugar, o autor questionou a necessidade da existência do indiciamento no ordenamento jurídico. A sua principal finalidade é dar conhecimento, de forma oficial, ao autor do fato acerca de procedimento criminal contra o mesmo. Isso sempre existirá, mesmo que se deseje dar outro nome. É a mesma situação daqueles que defendem o fim do inquérito policial. Ora, a investigação policial preliminar deixará de existir? Óbvio que não, afinal existiria outro nome para o procedimento no qual a investigação seria documentada.

Retornamos, por fim, ao título desta coluna: precisamos falar sobre o indiciamento? Precisamos não só falar sobre o indiciamento, mas repensar o Direito brasileiro, desde os bancos escolares até a sua utilização pelos aplicadores das normas. O problema é muito mais denso e agudo do que se pode imaginar e passa por uma reconstrução do sistema jurídico brasileiro.


Bruno Taufner ZanottiBruno Taufner Zanotti é Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduado em Direito Público pela FDV. Professor do curso de pós-graduação Lato Sensu em Direito Público da Associação Espírito-Santense do Ministério Público. Professor do MBA em Direito Público da FGV-RJ. Professor do CEI, Curso Preparatório para Delegado de Polícia Civil. Professor de cursos preparatórios para concurso público nas áreas de direito constitucional, penal e processo penal. Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Fundador, em parceria com o juiz André Guasti Motta, do site Penso Direito (www.pensodireito.com.br) e colunista do site www.delegados.com.br.


Cleopas Isaías Santos. Cleopas Isaías Santos é Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Professor de Pós-Graduação latu sensu em diversas instituições. Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. Delegado de Polícia.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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