Precisamos falar de menorismo estrutural

07/09/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Em de 1924, o então Juiz de Menores da Capital Federal Mello Mattos implantava o primeiro Código de Menores. Dois anos depois, em 1927, este dispositivo legal passava a vigorar (teoricamente) em todo território nacional. O Código em si não representava apenas uma normativa jurídica, uma vez que carregava consigo o sentimento da época sobre meninos e meninas que viviam diferentes situações de abandono (Miranda, 2008).

É preciso perceber a produção do Código a partir da sua historicidade. Pensado nos primeiros anos da República e de uma abolição da escravatura marcada por diferentes permanências de exclusão social, o Código foi outorgado sob a égide da vigilância e punição. A própria ideia do “menor” como objeto dos interesses dos adultos fez parte do projeto colonial brasileiro, permeou todo o Império e se fez presente no Brasil republicano.

É sob a égide da “ordem e do progresso” que esses meninos e meninas se tornaram objetos do projeto político, que produziu o discurso salvacionista de “futuro da nação”, fortemente presente na atuação de Mello Mattos. Os estudos historiográficos e de diferentes ciências humanas e sociais, sinalizam que esta Lei foi elaborada para controlar o cotidiano de crianças e adolescentes pertencentes as famílias pobres, que viviam em situação de rua, em condições precárias de sobrevivência, ainda muito marcada por uma abolição perversa.

E assim, o Código de Menores fez surgir o menorismo ou – como costumo chamar -, a cultura menorista, que para mim é a forma de pensar e praticar ideia do “menor”, da criança e do adolescente que estão em situação de perigo ou que representa o “próprio perigo” a partir do controle disciplinar e assistencialista. O menorismo passou a transcender os muros do Sistema de Justiça e passou a permear os espaços onde as crianças e adolescentes pobres e periféricas circulavam, fortalecendo-se de uma estrutura colonial que objetificava meninos e meninas negros, indígenas ou aquelas que pertenciam as camadas sociais consideradas subalternas.

O século XX foi palco da produção do menorismo como um fenômeno estrutural, uma vez que ele passou a integrar a organização econômica e política da sociedade brasileira, permeando as “artes de governar” as diferentes crianças e adolescentes que à luz do Estado passaram a ser considerados “menores”, ao se tornar uma perspectiva de perceber crianças e adolescentes a partir da discriminação institucional.

O Código deixa de ser apenas um instrumento jurídico e normativo, ele passa a permear diferentes espaços onde meninos e meninas circulam. Ao fundar o “Direito do Menor” ele cria diferentes possibilidades de lidar com as questões sociais, políticas e econômicas que norteiam o universo de meninos e meninas pobres e periféricos.

Em diálogo com Silvio Almeida, é preciso conceber o direito em suas diferentes dimensões: do direito como justiça, como norma, como poder e como relação social. A partir dessas diferentes dimensões que o menorismo passou a criar as categorias “menor carente”, “menor abandonado”, menor delinquente” ... Para cada categoria uma forma de gestar a política, baseada em doutrinas salvacionista (1927) ou da situação irregular (1979). E assim, o menorismo estrutural se consolidava e passava a permear as políticas nos espaços educacionais, nos antigos “abrigos”, nas colônias reformatórias, nas atuações dos comissários de menores.

Assim como Silvio Almeida defendeu a ideia de que as práticas de racismo se tornaram “normais” no Brasil, dada as devidas proporções, também se tornou normal praticar o menorismo (Almeida, 2020). Ele se encontra nas sentenças jurídicas, nas decisões pedagógicas de aceitar ou não um adolescente que cumpre as medidas socioeducativas ou nas ações socioassistenciais, contribuindo diretamente com a reprodução da violência e o aumento das desigualdades praticadas contra crianças e adolescentes pobres e periféricas.

Contudo, da ideia do “pai do Código”, uma vez que há quem o identifique como “Código Mello Mattos”, este projeto tem ressonância até os dias atuais. Mesmo depois de 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o menorismo se faz presente no cotidiano do Sistema de Garantia de Direitos, haja vista a sua dimensão estrutural. Ele se encontra arraigado no microcosmo social, nas proposições políticas e mais notadamente na concepção de criança e adolescente pobres e periféricas da sociedade brasileira.

Precisamos falar do menorismo estrutural para fissurar as legislações e políticas públicas voltadas para meninos e meninas pertencentes as comunidades e povos tradicionais, que vivem situação de privação de liberdade e outras medidas socioeducativas, em conexões com os de rua ou nas periferias das cidades brasileiras. O menorismo é racista, classista e adultocêntrico, uma vez que nega a condição de sujeito das crianças e dos adolescentes, enquadrando-as a partir de categorias elaboradas pelos interesses punitivistas do mundo adulto. 

Para isto, é importante pensar o direito, nas suas diferentes dimensões, a partir de uma mobilização anti-menorista, para que, assim, possamos quebrar com esta estrutura que ainda persiste em perceber nossos meninos e meninas pobres e periféricos como “menores”. Precisamos falar do menorismo estrutural para enfrentar no nosso cotidiano institucional, buscando abolir a cultura menorista e produzir uma cultura de respeito à condição das crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos, protagonistas de suas histórias e novas histórias.

 

Notas e Referências

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

MIRANDA, Humberto da Silva. Meninos, moleques, menores... Faces da Infância no Recife (1927-1937). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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