Precisamos Conversar sobre o Lado Sombrio da “Força” do Princípio da Reserva Legal

15/11/2015

“se as pessoas querem abrir, se servir de tal frase, tal ideia, tal análise, como uma chave de fenda ou uma chave de boca para criar um curto-circuito, desqualificar, quebrar os sistemas do poder, incluindo aqueles mesmos dos quais meus livros fazem parte… bom melhor ainda!”

Foucault

.

Episódio I: A Ameaça da Legalidade “Fantasma”.

“Em um lugar escuro nos encontramos, e um pouco mais de conhecimento ilumina nosso caminho”

Yoda

Há muito tempo atrás, em uma galáxia muito, muito distante…

Inicia-se o presente artigo informando que a temática não é (por óbvio) inovadora. Na verdade, quero aproveitar e já pedir desculpas pela incapacidade descritiva do autor, o qual ainda se encontra em processo de formação acadêmica. Dito isto, passo a explicar que até mesmo em nossa cultura fast food manualesca, sempre foi possível reconhecer o condicionamento histórico do princípio da reserva legal que através do axioma nullum crimen nulla poena sine legem constituiu-se (verdadeira) chave mestra do edifício jurídico-penal brasileiro (art. 5, XXXIX da CF/88 e art. 1º do CP) ao dispor que nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes desse mesmo fato tenha sido instituído por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constituindo uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. CALLEGARI doutrina que:

“De acordo com o princípio da reserva legal, todos os atos estatais que são gravosos aos cidadãos necessitam de apoio em uma lei formal. Foi no Direito Penal que se desenvolveram com mais intensidade as garantias formais do Estado de Direito, afinal, nada pode ameaçar com maior persistência a liberdade individual que uma arbitrariedade das autoridades que dispõe dos meios punitivos. As intervenções jurídico-penais têm efeitos mais profundos que todas as demais ‘intervenções na liberdade e na propriedade’ e recebem em primeiro lugar a desaprovação ético-social que importam, ou seja, um acento particularmente gravoso. Por isso, a lei penal e sua aplicação não só devem satisfazer os princípios jurídico-formais, senão que em seu conteúdo devem responder às exigências de Justiça, encarnadas no princípio material do Estado de Direito. O princípio da legalidade, dessa forma, empresta segurança a um ordenamento.” [1]

O problema, inclusive, já denunciado milhares de vezes por LENIO STRECK é que as palavras da lei não possuem um sentido unívoco e (esta) não pode ser entendida como uma lei-em-si, abstraída das condições que a engendraram como se a sua condição-de-lei fosse uma propriedade “natural” [2], ou seja, um fantasma. E o que se observa no cotidiano forense, e que se espera desvendar nesse presente trabalho, é que a simples invocação (da força) do princípio da reserva legal como ingrediente para a criação dos mais variados tipos penais não é – dentro de um Estado Democrático de Direito – baluarte das liberdades individuais, nem garantia (mínima) de que estaremos juridicamente protegidos dos caprichos das políticas de lei e ordem, assim como da repressão generalizada baseada em um (tipo) de Estado “Darth Vader” de Penitência.

Episódio II – O Retorno da “Vontade do Legislador” Penal.

“O medo é o caminho para o lado negro. O medo leva a raiva, a raiva leva o ódio, o ódio leva ao sofrimento

Yoda

Assentada a introdução, anoto que a utilização acrítica do princípio da reserva legal como o único sustentáculo de uma criminalização primária pode acabar gerando um estado caótico de tipos penais, desestabilizando o sistema nos seus princípios e na sua dogmática, apenas para responder a problemas pontuais ou imediatistas, que nada mais são do que respostas simples e eleitoralmente mais eficazes aos anseios populares de uma melhor qualidade de vida. JUAREZ TAVARES diz que:

“uma vez adotado o princípio de que qualquer crime deva estar previamente definido em lei, se de fato isso ocorrer, ou seja, se certa conduta vier a ser capitulada, legalmente, como criminosa, a primeira conclusão a que se chega é que essa criminalização é legítima, ou seja, a definição legal de uma conduta como criminosa torna essa criminalização uma evidência, à primeira vista, incontestável. Portanto, o princípio da legalidade que inicialmente se apresentava como uma garantia da liberdade passa a servir de legitimação dos atos destinados a suprir essa liberdade. Por esta característica, portanto, de aplicação prática da legalidade dos crimes em face de sua, inicial, previsão teórica, já não se poderá dizer, com tanta convicção, que o princípio da legalidade constitui um baluarte intransponível de defesa da pessoa humana. Neste caso, a realização prática da legalidade, como forma jurídica, implicará uma transmutação, ou seja, uma metamorfose: do herói para o vilão.” [3]

O que se quer dizer com isso é que na definição dos crimes sempre estará presente a tradição jurídica (historicidade) legitimadora de tais incriminações, e essa é a base da problemática brasileira. O certo é que o mainstream da política criminal das terras brasileiras – centrada em si mesmo – continua na busca voraz (e solipsista) de uma satisfação evidente (logo demasiadamente rápida) de encontrar (e eliminar) os inimigos, acabando por reclamar sempre novos inimigos, gerando com isso um círculo vicioso de expansão de tipos penais, assim como um grande encarceramento da miséria, mas de fato nenhuma solução para a diminuição da criminalidade, muito menos melhores condições de vida para a população. O presente desastre legislativo não responde a nenhuma ideologia porque não é regido por nenhuma ideia, e sim justamente pelo extremo oposto, ou seja, é o vazio (significante) de pensamento. E basta observar a história das penas e da repressão penal para verificar que tal “vazio” logicamente é detém uma lógica autoritária do Outro, baseado em uma perspectiva funcionalista na ótica da legislação de emergência e do pânico, ou seja, constrói-se uma “estrela da morte” ligada às amarras da subjetividade da vontade do legislador, o qual se declara como o único capaz de dizer o que se deve criminalizar, quem criminalizar, como criminalizar e quando criminalizar. Nas palavras de ZAFFARONI:

“(…) trata-se do envio de mensagens tomadas como verdadeiras só porque têm êxito publicitário. Reforça-se como preconceito a convicção de que um mundo em desordem pode ser ordenado com disciplina imposta através de repressão indiscriminada e ao mesmo tempo, reitera-se a ideia de que o delito é uma atividade fácil e impune. O certo é que neste autoritarismo cool não se sabe quem é o inimigo, pois estes se sucedem sem somar-se; em lugar de defini-los fotograficamente, são projetados cinematograficamente, como constructos em série dos meios de comunicação, em especial da televisão. O Estado não os define; as autoridades encontram-se sitiadas pelas sucessivas imposições dos meios, cuja velocidade reprodutiva é tão vertiginosa que impede os baques capazes de abrir espaços aos discursos críticos (…)” [4]

Mas não é só. Aproveita-se também da crise da segurança individual vivenciada pela sociedade, para brotar as mais variadas tentações autoritárias, camufladas na forma de instrumentos “eficazes” ao restabelecimento da lei e da ordem, utilizando-se do princípio da reserva legal para a criação de tipos penais abstratos, genéricos, de risco e desproporcionais, passando a tipificar por vezes costumes e valores morais próprios da alteridade de uma sociedade globalizada (violando o princípio da secularização), bem como rotulando como criminosas, condutas que (já) não são abarcadas pelo caráter fragmentário (insular) do Direito Penal e que poderiam ser disciplinadas por outras esferas institucionais, evitando com isso a estigmatização própria da nossa máquina de lama punitiva. Veja as palavras do Prof. MIGUEL REALE JUNIOR:

“o erro está em você estabelecer uma punição, uma interferência do Direito Penal em fatos que devem ser enfrentados pelo processo educacional, processo de educação na escola, processo de educação na família, e não com repressão penal. Imaginar que trazer punição do Direito Penal para resolver as coisas, que vamos dormir tranquilos porque o Direito Penal está resolvendo tudo. É a ausência dos controles informais, a escola, a igreja, a família, o sindicato, o clube, a associação do bairro, a vizinhança etc. São todas formas naturais, sociais, de controle social. Quando os controles informais já não atuam, se reforça o Direito Penal como salvação. Passa a ser o desaguador de todas as expectativas” [5]

Impende registrar que a nossa política criminal baseando-se no mito de que “a lei é a Lei”, ou seja, a lei penal advinda não sabe bem de onde ou de quem, traz consigo a legitimidade de dizer o que é o crime, sem apontar na maioria das vezes os estudos empíricos e demonstrativos da necessidade de uma tipificação penal naquele contexto histórico e social, o que leva a crer que a reserva legal encontra-se inscrita no registro do Simbólico como absolutamente necessária para restabelecer uma (mal)dita ordem pública justificadora do derramamento do Direito Penal sobre a sociedade. Observe-se o que ZIZEK tem a dizer sobre a temática:

“De maneira bem mais precisa, poderíamos dizer que a fantasia ideológica vem tapar o buraco aberto do abismo, pelo cunho infundado da lei social. Esse buraco é delimitado pela antiga tautologia de que a ‘lei é a Lei’, fórmula que atesta o caráter ilegal e ilegítimo da instauração do reino da lei, de uma violência fora da lei, real, em que se sustenta o próprio reino da lei. (…) A violência ilegítima em que se sustenta a lei deve ser dissimulada a qualquer preço, porque essa dissimulação é a condição positiva do funcionamento da lei: ela funciona na medida em que seus subordinados são enganados, em que vivenciam sua autoridade como ‘autêntica, eterna’ e não sentem ‘a verdade da usurpação’” [6]

É conveniente ressaltar que a Criminologia crítica sempre lutou incansavelmente contra essa sanha punitivista, demonstrando estratégias alternativas, descriminalizações, denunciando a eficácia invertida do sistema penal na tentativa de diminuir a vontade do legislador penal em tudo criminalizar, contudo, a máquina sempre se reinventa, tentando buscar o consenso da sociedade brasileira para que se enfileire (sem questionar) nas trincheiras da guerra aos inimigos do soberano, que diga-se de passagem mata muito mais que em países em situação de guerras civis declaradas. Basta ver que o Brasil ocupa o 7º lugar do índice de homicídios na América Latina e o 11º no ranking mundial, segundo dados das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) [7]. Pois bem. É sobre essa vingança penal que se passa a analisar agora.

Episódio III – A Vingança do Estado “Darth Vader” Punitivo

“Poderoso você se tornou, o lado escuro sinto em você”

Yoda

Apontada que a hipertrofia das incriminações do Sistema Penal Brasileiro está intimamente ligada aos paradigmas filosóficos da filosofia clássica (ou realismo filosófico) e da filosofia da consciência, passo a expor agora sobre a ilusão protetiva do Direito Penal, que na realidade cumpre um papel específico: legitimar a sua própria existência na crença de que cumpre o seu papel de garantir a proteção dos bens jurídicos. Nesse sentido JUAREZ TAVARES novamente atesta que:

“se o direito penal tem como objetivo a proteção de bens jurídicos – isso é que dizem os expertos, ainda que sem qualquer prova empírica de sua eficácia – suas normas incriminadoras devem estar sedimentada em obter das pessoas um certo comportamento, de modo a tornar eficaz aquele objetivo. Ocorre, porém, que essa proteção é absolutamente ilusória, é produto de pura ficção racionalista e todos os doutrinadores sinceros sabem disso, mas, apesar disso, trabalham com isso, ou seja, querem acreditar (é uma questão de vontade de crença, nada mais) que o direito penal tem uma utilidade racional “[8]

É nesse ambiente de confusão entre direito e moral, entre legitimação interna e externa que se acaba por recepcionar uma enxurrada de tipos penais – que são considerados necessários e justos apenas porque foram formalmente válidos – acabando por desequilibrar integralmente e irreversivelmente o ecossistema penal brasileiro. E para piorar ainda são poucos os atores jurídicos (forjados na democraticidade) incumbidos da proteção ao meio ambiente penal, por isso, encontramo-nos à mercê dos (sempre bondosos) predadores legislativos. Para compreender tal problema, basta olhar juntamente com SALO DE CARVALHO, que citando FERRAJOLI, demonstra os (perversos) efeitos da descodificação e desregulamentação do direito penal contemporâneo:

“Na atualidade o excesso criminalizador atinge o núcleo duro do direito penal, i.e., os Códigos Penais e Processuais Penais. O processo de descodificação não apenas gera sistemas penais autônomos, muitas vezes mais importantes que a própria lei codificada, como produz microssistemas penais em áreas diversas do direito público e privado. (…) A tendência do sistema punitivo de se transformar cada vez mais em sistema de controle administrativizado, e sempre menos penal em decorrência dos processos de descodificação própria e imprópria, produz uma série crise no conjunto de normas e dos mecanismos que negam a informalidade do controle social. O sintoma do punitivismo desmantela gradualmente a estrutura garantista do direito penal e processual penal e, por consequência, diminui os mecanismos de tutela dos direitos fundamentais”. Percebe Ferrajoli que se deve observar o fato de que os modelos penais da atualidade ‘(…) ofuscaram os confins entre as esferas do ilícito penal e do ilícito administrativo, ou seja, dos ilícitos, transformando o direito penal em fonte obscura e imprevisível de perigos para qualquer cidadão, olvidando sua função simbólica de intervenção extrema contra ofensas graves e oferecendo, portanto, o melhor terreno à cultura de corrupção e ao arbítrio (…) a inflação penal provocou a regressão do nosso sistema punitivo a uma situação não diferente daquela pré-moderna’”. [9]

Formam-se então cúpulas de estruturas verticalizadas, cuja eficácia preventiva opera em relação inversa à sua inescrupulosidade. A discrepância entre os objetivos manifestos ou diretos e ocultos ou latentes acaba dando lugar a simbologia de um direito penal que faz crer sua utilidade e necessariedade, mas se esquece do acúmulo criminológico de mais de cinquenta anos de páginas, denunciador de uma (encoberta) premissa básica muito bem revelada por VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE:

“A contradição entre as funções declaradas do sistema penal, as funções que ele declara cumprir e não cumpre (promessas declaradas e não cumpridas) e funções realmente cumpridas, que ele cumpre latentemente, sem declarar. Essa contradição estrutural está na base de toda Criminologia crítica e vai produzir uma primeira grande conclusão, que é a da eficácia invertida dos nossos sistemas penais. (…) O sistema penal é, portanto, diz a crítica criminológica cumulada, estruturalmente incapaz de cumprir as funções que legitimam sua existência histórica, que são: proteger bens jurídicos, combater e prevenir a criminalidade através das funções declaradas da pena (…) E não pode cumpri-las precisamente porque a função real dos nossos sistemas punitivos não é o ‘combate à criminalidade’, a ‘construção social da criminalidade e do criminoso’ é a delimitação do inimigo interno da sociedade (…) E essa construção é essencialmente violenta, seletiva e desigual; a seletividade do sistema penal é de base classista, racista e sexista (…) Os sistemas penais latino americanos e o sistema penal brasileiro representam um notável sistema de violência” [10]

Com frequência o poder punitivo busca instrumentalizar vítimas, aproveitando-se a necessidade de desviar culpas e elaborar o dolo, para que encabecem campanhas de lei e de ordem, nas quais a vingança é o principal objetivo. As vítimas passam a opinar como técnicas e como legisladores e convocam o direito penal na ilusão de que criando tipos penais será possível resolver o problema da segurança urbana, e acabam por se esquecer da ausência do bem estar social, verdadeira promessa não cumprida de nosso Estado. Nisso basta colocar os olhos no o exemplo de ZAFFARONI sobre a teoria do subsistema de NIKLAS LUHMANN:

“para este teórico do sistema os humanos são subsistemas que formulam demandas ao sistema e este se mantém em equilíbrio na medida que tem capacidade para responde-las. É algo assim, como uma estação ferroviária em que estão planejadas as partidas de cinco trens, os passageiros devem subir em algum deles e não se amotinar e reclamar de um sexto trem com outro destino, porque a estação se desprogramaria e não partiria mais nenhum trem” [11]

Em suma: a publicidade penalista não possibilita reclamar um sexto trem justamente porque não pode atender aos verdadeiros anseios que uma sociedade (realmente) precisa. Na minha opinião o princípio da reserva legal é logicamente uma conquista histórica e democrática, proibindo a aplicação de analogias e costumes na formalização de tipos penais, mas tal princípio não pode ser utilizado como um martelo das bruxas. Afinal por que não passamos a nos preocupar em dar eficácia aos fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil previstos no art. 1º e 3º da Constituição Federal? Será que não é cansativo ouvir que tais normas são (sempre) programáticas e que em um (belo) dia alcançaremos a erradicação da pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais? Será que conseguiremos alcançar tais desideratos seguindo esse mesmo caminho de populismo penal, essas mesmas regras de punir os pobres? Creio que não.

Dessa forma resta-nos responder o dilema final, objeto desse último episódio: criminalizar ou não criminalizar, eis a questão.

Episódio IV – O Despertar da Força Democrática

“Que a força esteja com você”

Yoda

Que o percurso reflexivo ensaiado neste artigo tenha desembocado na questão do limite democrático, não é nenhuma surpresa. Os Estados de Direito não são nada além da contenção dos Estados de Polícia. O fator democraticidade é o “sabre de luz” da política de redução de danos. Ao contrário, a ausência de limites, é apanágio do império populista penal.

Verificou-se ao longo dessa tenebrosa caminhada que o princípio da reserva legal não pode viajar livremente pelas galáxias, porque a lei não é aquilo que se apresenta como tal, segundo WACQUANT, vivemos sob a égide um Estado Centauro que se apresenta com um discurso humanista mais tem prática autoritária, ou seja, visto do lado de cima (elite) é humano, mas visto de baixo (nós, a patuleia) age como se fosse um cavalo. Apresenta-se como um bom vinho, mas em uma garrafa de veneno (e podemos sentir em nosso corpo social os seus drásticos efeitos). Afinal nunca podemos nos esquecer do teorema de Thomas: se os homens definem as situações como reais, as suas consequências são reais. Daí dizer que uma mentira (penalista) dita várias vezes acaba por se confundir com a verdade, a qual processa e prende sem pena.

O curioso é que os mais variados cortes financeiros nos programas sociais na lógica dos discursos de “crise econômica” contrastam com os investimentos maciços no sistema penal, “a tradução financeira desse grande encarceramento” (WACQUANT). Não há enxugamento de gastos públicos quando conhecemos a “voracidade orçamentária do Estado Penal”.

Friso que não pleiteio a abolição do sistema penal. Entendo ser necessário o poder punitivo, que pode representar um instrumento (inclusive garantidor de direitos fundamentais), porque o crime de fato rasga a tessitura social e nós também temos o direito à segurança pública, mas para isso temos que reforçar nossas instituições especializando-as na ótica democrática, dar-lhes recursos suficientes para que controlem os novos tipos de criminalidade com tecnicidade e operabilidade, justamente para que não acabe sobrando a responsabilidade apenas para o legislador penal, que acaba tendendo a utilizar o Código Penal como um martelo autoritário.

Almejo limites conforme a metáfora do dique de ZAFFARONI, ou seja, o direito penal deve programar o exercício do poder punitivo como um dique que contenha o Estado de Polícia, impedindo que afogue o estado de direito. Se as águas do Estado de Polícia se encontrarem em nível de (quase) transbordamento, deve-se o dique dar passagem a uma quantidade controlada de poder punitivo, fazendo-o de modo seletivo, filtrando apenas a torrente menos irracional e reduzindo sua turbulência [12]

O ato de traçar limites ao poder punitivo representa dizer que se deve superar a evidência de que o crime-é-aquilo-que-o-legislador-diz-que-é. Há que se demonstrar a lesividade da conduta ao bem jurídico tutelado, a clareza e taxatividade dos enunciados, sua validade constitucional, até porque a Constituição-ainda-constitui. Em termos finais, deve-se apontar, na esteira de SALO DE CARVALHO, a necessidade de um estudo prévio de impacto político-criminal nos projetos de lei que versem sobre matéria penal, trazendo em seu bojo uma aplicação séria e comprometida com a realidade social do princípio da reserva legal:

“O estudo prévio de impacto político criminal deveria não apenas vincular o projeto à necessidade de investigação das consequências da nova lei no âmbito da Justiça Criminal (esferas judiciais e Executivo), mas exigir exposição da dotação orçamentária para sua implementação. Assim, no caso do Anteprojeto que propõe a criação de novos tipos penais, o aumento da penas e a restrição ao sistema progressivo, imprescindível para sua aprovação, uma exposição de motivos que acrescente o número estimado de novos processos criminais que seriam levados a julgamento pelo Judiciário, o número de novas vagas necessárias nos estabelecimentos penais, o volume e a origem dos recursos para a efetiva implementação da lei (…)” [13]

Resumindo: se é difícil para nós, membros da malta, o acesso aos serviços públicos mais básicos, se cada direito é tido como benefício e pode ser retirado a qualquer tempo (qualquer semelhança como o programa cheque-moradia e bolsa-família é mera coincidência). Entendo que não pode ser fácil a vida do poder punitivo em nos criminalizar e encarcerar. Decisão Penal não pode ser ato da consciência do legislador. Deve-se obedecer a coerência e integridade do constitucionalismo contemporâneo. O (que dizem ser) crime deve ser algo estudado e comprovado empiricamente. Tudo isso devidamente fundamentado, com a participação democrática, que afinal esta representa o destinatário da norma, ainda mais porque se reconhece os malefícios de nossa lógica carcerocêntrica que há muito tempo não ressocializa, apenas isola o tempo e castiga os “consumidores falhos” (BAUMAN). Qualquer projeto de criminalização deve ter presente à forma com que a sociedade brasileira resolveu historicamente os seus problemas sociais, discorrendo criticamente a matriz autoritária de nosso sistema, bem como a realidade de nossas prisões. Penso que o caminho perfaz uma redução dos danos do Direito Penal e uma efetivação das promessas modernas (igualdade, justiça social e respeito aos direitos fundamentais) Por tudo isso, termino o presente artigo dizendo: “seres luminosos somos nós. Não esta matéria bruta” (Yoda).


Notas e Referências:

[1] CALLEGARI, André Luis. Comentário ao artigo 5º, XXXIX. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; ________ (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.)

[2] STRECK, Lenio Luiz. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico, v.1. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. pg. 10-12)

[3] TAVARES, Juarez; FABRICIUS D.; Coutinho, J.N.M; Cárcova, C.M; Ruiz, A.E.C; Pêpe, A.M.B; MARQUES NETO, A.R.; Price. Jorge; Rosa, A.M. . Os objetos simbólicos da proibição: o que se desvenda a partir da presunção de evidência. In: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. (Org.). Direito e Psicanálise. Interseções a partir de “O Processo” de Kafka..1ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2007, v.01 p. 43-56.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Trad.: Sérgio Lamarão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 76

[5] In htttp://www.conjur.com.br/2012-set-02/entrevista-miguel-reale-junior-decano-faculdade-direito-usp.

[6] ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 63-64).

[7] In http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/12/1560654-brasil-tem-a-11-maior-taxa-de-homicidios-do-mundo-diz-oms.shtml

[8] TAVARES, Idem. 2007. p. 43-56.

[9] CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. Estudo Criminológico e Dogmático da Lei 11.343/06. Ed. SARAIVA. 7ªEd. p. 161-163.

[10] ANDRADE, Vera Regina Pereira. Análise Criminológica do Cotidiano. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, p.59-71, out.-dez. 2012.

[11] ZAFFARONI. Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 178.

[12] MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do Direito: the Brazilian Lessons. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 125

[13] CARVALHO, Salo. Em defesa da Lei de Responsabilidade Político-Criminal: o caso do Anteprojeto de Código Penal. Revista da EMERJ, v. 15, p. 156-160, 2012)


Alexandre Brito

.

Alexandre do Rosario Brito é Acadêmico de Direito do 8º Semestre da Faculdade Estácio do Pará – ESTÁCIO-FAP

.

.


Imagem Ilustrativa do Post: Yin / Yang // Foto de: Peter Kaminski // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/peterkaminski/265252359/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura