Precisamos conversar sobre Cidades Sustentáveis

04/11/2016

Por Maykon Fagundes Machado e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino – 04/11/2016

Dentre os assuntos que merece destaque e está em voga neste momento é a questão da governança urbana sustentável. Para se desenvolver o tema, é necessário adentrar na legislação urbanística e perceber que, com a promulgação da Constituição da República de 1988 o tema urbanidade/urbanização merece ênfase, por além de se tratar de matéria de ordem pública, também abrange caráter constitucional. A indagação que se faz a partir dessa afirmação é: Esse cenário é o momento presente – indispensável – acerca da Sustentabilidade[1]? – Para nós, não há qualquer dúvida.

A Constituição Federal de 1988, ao tratar desta temática, lembra que a tutela entre os direitos atinentes à sociedade em consonância com a preservação ambiental não se refere tão somente a um compromisso legal, mas global, o qual se pode, ainda, perceber a partir das diretrizes propostas pela ONU com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)[2]. Nesse caso, as disposições legais sobre a constituição de espaços urbanos mais sustentáveis não se exaurem por meras condições de subsistência. É necessário se torna resguardar os direitos fundamentais da cidadania, e sob estes pensamentos surge o conceito de governança urbana sustentável que se abordará nas linhas seguintes.

Antes, e como forma de esclarecimento ao leitor ou leitora, torna-se necessário perguntar: o que é uma Cidade Sustentável? A evidencia mais forte de nossos dias é exatamente o oposto daquilo que se exige em termos de viabilidade da Sustentabilidade. Os espaços urbanos são pouco inclusivos, se desenvolvem de modo desordenado e difuso, a lógica do comum perde significado – como é o caso da Natureza na qual se torna adorno elegante para os condomínios cada vez mais fechados e distantes das realidades humanas. O pressuposto indispensável para que haja uma Cidade Sustentável é a sua permanente reinvenção[3] por meio da criatividade e inovação tecnológica (responsável).

O ato de reinventar-se, como se sabe, não pode ser expresso por interesses setoriais, especialmente quando se observa que a Opinião Pública cede, mais e mais, espaço para a Opinião Publicada[4]. A reinvenção das Cidades Sustentáveis, sob o ângulo de uma fala comum sensata e coerente[5], de uma razão pública[6] global/local, necessita de um vetor para a sua orientação, qual seja, a governança – especialmente para a Sustentabilidade.

Nessa linha de pensamento, e segundo o pensamento de Rhodes[7], governança é caracterizada como “[...] uma mudança no entendimento de governo, significando um novo processo de governação ou uma mudança das regras ou ainda um novo método pela qual a sociedade é governada”. Esse novo método vem de forma inovadora trazer a ideia de uma cooperação com os agentes políticos bem como com os cidadãos de uma forma que proporcione a igualdade, tanto ricos como pobres sendo amparados sem distinção[8], o princípio da participação se torna fundamental nesta tese a ser implementada.

Cymbalista[9] destaca que há pelo menos uma (des)proporcionalidade considerável a ser discutida. Enquanto a parte de dentro‘’ de forma exorbitante é amparada pelas políticas públicas que promovem uma gestão ‘’diga-se de passagem excelente’’, com shoppings Centers, museus, bibliotecas, universidades, edifícios que até mesmo invadem áreas de preservação permanente (você sabe quais), em nome de um crescimento econômico fantasioso, a periferia padece pela ganância do mercado que provoca essa separação, estimulando a indiferença por meio de aparatos de vigilância e segurança, vigiando e punindo, não promovendo, nesse caso, uma governança solidária entre a sociedade, o governo e o meio ambiente.

É interessante sinalizar que quando se ressalta a importância da uma governança para a Sustentabilidade, na qual irá orientar o desenvolvimento e a reinvenção das Cidades Sustentáveis, dois aspectos devem ser rememorados: a) a mencionada “reinvenção” tem como matriz de sua ocorrência a ecologia da cidade[10], ou seja, uma compreensão das diferentes redes – naturais e artificiais – que constituem essa condição sistêmica de melhoria da qualidade de existência para seres humanos e não humanos; b) em termos de participação, o papel fundamental das redes digitais como espaço público para a organização e manifestação, nos espaços reais, dos movimentos sociais[11]. A conjugação de ambos denota esses esforços na maturação de utopias desejáveis para utopias reais[12].

Bosselmann[13] lembra, também, de que há necessidade de conciliar (colocar em igual posição) o desenvolvimento econômico com a proteção do meio ambiente, é preciso pensar a governança sustentável sob este enfoque para que haja a efetivação do Princípio da Sustentabilidade abrangendo igualmente o aspecto urbanístico e ambiental da cidade, e claro, jamais sob o viés antropocêntrico de somente adequar o meio ambiente ao econômico meramente para fins humanos, mas para o próprio fim do meio ambiente, é necessário nesta lógica reconhecer que o meio ambiente possui personalidade jurídica própria e reconhecer os seus devidos Direitos Fundamentais.

A Carta da Terra, importante instrumento jurídico internacional de proteção à preservação humana, bem como da Natureza/Meio Ambiente, nos conscientiza sobre a importância do meio ambiente e tem por ambição levar adiante a sociedade da sustentabilidade global fundada no respeito à Natureza, Direitos Humanos, universal, justiça econômica e cultura de paz. A Carta reúne uma série de princípios, entretanto cabe destaque a preocupação ambiental.

A Natureza e o Meio Ambiente não podem ser vistos como meramente um recurso base para o consumo humano, mas como um pilar – base para toda a vida. Para promover uma governança sustentável local, ou ainda sim global – o grande objetivo, a Carta[14] ressalta a importância da cooperação e do exercício da cidadania desde o começo, no seu preâmbulo que proclama: ‘’Nós somos cidadãos de diferentes nações e de um mundo em que o local e o global estão ligados. Todos dividem a responsabilidade para com o presente e futuro bem-estar da família humana e de toda a vida terrestre’’.

A parceria do governo, sociedade civil, e negócios[15] se torna essencial para uma governança efetiva e igualitária. Para se construir um mundo melhor, as nossas obrigações devem ser cumpridas, desde pequenos atos com o meio ambiente (desde um jogar o lixo no lixo), quanto às obrigações a serem cumpridas na esfera internacional. Um importante instrumento que e adequa perfeitamente à governança urbana sustentável é o mecanismo da regularização fundiária. Você conhece?

Trata-se de um mecanismo jurídico previsto no artigo 46 da Lei nº 11.977/2009, no qual estabelece que é imprescindível atentar para os aspectos urbanísticos, que exigem o desenho das vias de circulação, a observância do tamanho dos lotes, a alocação de casas precárias ou si­tuadas em situação de risco, tudo para que esse espaço urbano venha a realmente se integrar na cidade.

Além desses fatores, é fundamental que se re­alize a regularização jurídica das áreas a fim de que se oportunize segurança aos moradores. Todo o processo deve levar em conta os aspectos ambientais e sociais, envolvendo toda a população, não somente os burgueses – leia-se: detentores do poder econômico, torna-se necessário adentrar nas favelas, dentro da periferia e nos cantos mais remotos da cidade com o mesmo aparato regularizador, o direito à moradia digna deve ser isonômico e eficaz.

Sobre o direito fundamental a moradia, Nalini[16] compreende que de fato o que ocorre é que ‘’a informalidade das submoradias compromete a dignidade das pessoas’’. Se elas não tiverem como fruir do seu direito à cidade, portanto, nem serão efetivamente cidadãs. Morar irregularmente é o mesmo que navegar em permanente insegurança. Além disso, a regularização fundiária repercutirá na gestão racional dos territórios urbanos, já que, regularizados, os assentamentos passam a integrar os cadastros municipais.

Nesse caso, caberá ao município por meio de políticas públicas fornecer dignidade a área regularizada, ressalta-se que este interesse deve partir de uma visão de governança urbana sustentável para todos, isto mesmo, (todos), apesar de isto nem sempre ocorrer na prática, cabe a população e a sociedade civil exercer seu direito de cidadania e reinvindicar essenciais direitos para uma (sobre)vivência digna.

Atualmente, o Judiciário carece de uma formação rigorosa voltada a temática meio ambiente, que é em suma fundamental para a sociedade, sob este prisma Bodnar[17] lembra que: “[...] o juiz cidadão comprometido com os novos reclamos da sociedade contemporânea deve buscar no cotidiano de sua atuação, ampliar os mecanismos de acesso ao pleno desenvolvimento humano, dando especial proteção aos direitos fundamentais (sociais e individuais) previstos pela nossa Constituição explícita ou implicitamente (meio ambiente, alimento/salário, moradia, educação, saúde, emprego e outros)”.

O Judiciário, tanto sob a ótica ambiental, bem como todos os outros ramos jurídicos, precisa de um despertamento para além do mero analisar um processo e julgar. É preciso, ainda, conhecer a matéria além do direito, visando os anseios da sociedade, e, para que essa condição ocorra, é necessário estudo e vontade de contribuir para uma boa prestação jurisdicional, para além da promoção de cargo à beira mar.


Notas e Referências:

[1] Para fins deste artigo, utilizar-se-á, como um acordo semântico, o seguinte Conceito Operacional para esta Categoria: "É a compreensão ecosófica acerca da resiliência na relação entre os seres e o ambiente para se determinar - de modo sincrônico e/ou diacrônico - quais são as atitudes que favorecem o reconhecimento da Natureza como “ser próprio”, a sobrevivência, a prosperidade, a adaptação e a manutenção da vida equilibrada, seja humana ou não humana, por meio da integração e interdependência entre os critérios biológicos, químicos, físicos, informacionais (genéticos), éticos, territoriais, culturais, jurídicos, políticos, tecnológicos, científicos, ambientais, históricos e econômicos.

[2] Dentre os objetivos enunciados, pode-se destacar o objetivo n. 11, qual seja, a de se constituir cidades e comunidades sustentáveis.

[3] “As grandes cidades, estas que inovam e lideram o progresso da sociedade em suas épocas de auge no planeta, sempre enfrentaram seus ciclos de decadência e ressurgimento, reinvenção [...]. Ou seja, Megacidades funcionam. Megacidades lideram. Megacidades se reinventam. Por que as metrópoles contemporâneas compactas – densas, vivas e diversificadas nas suas áreas centrais – propiciam um maior desenvolvimento sustentável, concentrando tecnologia e gerando inovação e conhecimento em seu território? As metrópoles são o grande desafio estratégico do planeta neste momento. Se elas adoecem, o planeta torna-se insustentável”. LEITE, Carlos; AWAD, Juliana di Cesare Marques. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012, p. 7/8.

[4] “[...] confunde-se opinião pública com opinião publicada. Esta (a publicada) não deixa de ser uma opinião, mas pretende ser um saber, uma competência, até mesmo uma ciência, ao passo que aquela (a pública) tem consciência de sua fragilidade, de sua versatilidade, em suma, de sua humanidade”. MAFFESOLI, Michel. Saturação. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2010, p. 20.

[5] "[...] creio que coerência é, enfim, o termo correto e que lança ponte [...]: o que descubro no pensamento de alhures ou daqui é sempre 'co-erente', uma vez que resistindo efetivamente em conjuntos e justificando-se. Assim, com efeito, a inteligência é esse recurso comum, sempre em desenvolvimento, bem como indefinidamente partilhável, de apreender coerências e comunicar-se através delas. Heráclito já dizia: 'Comum a todos é o pensar', phronein. O que estabeleceu como princípio que não existe nada, de qualquer cultura que seja, que não seja em princípio inteligível - é este efetivamente, mais uma vez, o único transcendental que reconheço: não em função das categorias dadas, em nome de uma razão pré-formada, mas como exigência que forma horizonte e jamais se detém (e correspondendo, a esse título, ao universal). Isso, portanto, sem resíduo. De maneira absoluta. Ainda que os esforços dos antropólogos nunca sejam plenamente recompensados; ainda mesmo que eu mesmo nunca tenha certeza de ter conseguido ler o suficiente...". JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas: do universalismo ao multiculturalismo. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 175/176.

[6] “A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, daqueles que compartilham o status de cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem do público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem servir. Portanto, a razão pública é pública em três sentidos: enquanto a razão dos cidadãos enquanto tais, é a razão do público; seu objeto é o bem do público e as questões de justiça fundamental; e sua natureza e conceito são públicos, sendo determinados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de justiça política da sociedade e conduzidos à vista de todos sobre essa base”. RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 261.

[7] RHODES, Rod. “The new governance: governing without government”, Political Studies, XLIV, 1996, p. 652-653.

[8] “[...] O clamor das vozes dos pobres, dos esquecidos, dos marginalizados, dos excluídos, dos apátridas no mundo é muito alto para ser ignorado. [...] A compreensão desse universo de necessidades, projetos de vida, recursos disponíveis, condições geográficas ou climáticas, necessidades sociais, tradição cultural, planos relacionados ao futuro, entre outros aspectos demandam a necessária averiguação dos limites e da amplitude dos métodos de avaliação das desigualdades existentes no interior dos países ou sociedades e na relação entre esses”. ZAMBAM, Neuro José; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. A teoria da justiça em Amartya Sen: temas fundamentais. Porto Alegre: Editora Fi, 2016, p. 70/71.

[9] CYMBALISTA, Renato. Política urbana e regulação urbanística no Brasil. In: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: Reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 281/282.

[10] LEITE, Carlos; AWAD, Juliana di Cesare Marques. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num planeta urbano. p. 8.

[11] Castells destaca que uma das características dos movimentos sociais em rede é que esses são conectados de múltiplas formas, ou seja, “[...] o uso de redes de comunicação da internet e dos telefones celulares é essencial, mas a forma de conectar-se em rede é multimodal. Inclui redes sociais on-line e off-line, assim como redes preexistentes e outras formadas durante as ações do movimento. Formam-se redes dentro do movimento, com outros movimentos do mundo todo, com a blogosfera da internet, com a mídia e com a sociedade em geral. As tecnologias que possibilitam a constituição de redes são significativas por fornecer a plataforma para essa prática continuada e que tende a se expandir, evoluindo com a mudança de formato do movimento”. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 159/160.

[12] “[...] Utopia não é uma Quimera: ela é (imaginariamente) o tempo do processo, ou seja, uma nova realidade cuja essência aparece diretamente na existência”. LACROIX, Jean-Yves. A utopia: um convite à filosofia. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 65.

[13] BOSSELLMANN, Klaus. O Princípio da Sustentabilidade. Transformando o direito em governança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 96.

[14] CARTA DA TERRA – Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/carta_terra.pdf. Acesso em: 01 Nov. 2016.

[15] BOSSELLMANN, Klaus. O Princípio da Sustentabilidade. Transformando o direito em governança. p. 222-224.

[16] NALINI, José Renato et al. Regularização fundiária. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 06

[17] BODNAR, Zenildo. O dever fundamental de proteção do ambiente e a democratização do processo judicial ambiental. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/recife/direito_ambiental_zenildo_bodnar.pdf. Acesso em 02 Nov. 2016.


maykon-fagundes-machado. . Maykon Fagundes Machado é Acadêmico de Direito do 4° período. UNIVALI. Pesquisador Bolsista PIBIC/ CNPq. Realiza atualmente estágio profissional em escritório de advocacia. E-mail: maykonfm2010@hotmail.com. .


Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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