Precarização da valoração da prova no Processo Penal: uma triste constatação prática

12/12/2019

O conceito processual de prova amplamente difundido pela doutrina pode ser descrito, de forma simples, como sendo o elemento produzido em contraditório judicial e sob as regras do ordenamento jurídico vigente (como o respeito ao contraditório e à ampla defesa), apto a influir no convencimento do juiz sobre fato pretérito que interesse à solução da causa.[1]

Deveria ser um conceito banal e óbvio para os integrantes do sistema de justiça, mas é importante trazê-lo à memória nos dias de hoje porque na prática ele é esquecido ou instrumentalmente negligenciado.

Tal conceito é importante e incide sobre a prova produzida em todos os ramos do direito. Contudo, é no âmbito penal que a sua inobservância mostra a faceta mais danosa e utilitarista aos fins de uma política de seletividade penal.

Há, no mínimo, uma clara confusão realizada por alguns entes e órgãos do sistema de justiça sobre os elementos produzidos fora do processo penal, que possuem a natureza de meros elementos de informação, cuja função é a de orientar a avaliação sobre o início de uma investigação criminal e/ou demonstrar a probabilidade de indícios aptos a ensejar a instauração de um processo crime[2].

O processo, por dever constitucional e convencional ao qual o Estado brasileiro deve submissão, é constituído e tem seu funcionamento sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal, nos moldes do Art. 5º, LV e LVII, da CF, Art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, Art. 14.2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e Art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[3].

Os elementos de informação, por sua vez, não são formados sob esses princípios, pois são obtidos na fase pré-processual investigativa, no bojo de um procedimento administrativo inquisitorial[4].

É amplamente difundido pela doutrina e jurisprudência ainda majoritária o entendimento de que o sistema de persecução penal em voga no Brasil é o sistema misto ou bifásico, no qual na fase pré-processual (inquérito policial, procedimento investigatório realizado pelo Ministério Público ou pelas Comissões Parlamentares de Inquérito) incide o sistema inquisitorial, com a concentração de poder nas mãos de um único ator e a não submissão do procedimento ao contraditório[5].

Já a fase processual seria regida pelo sistema acusatório, onde há divisão sobre as tarefas de acusação, julgamento e defesa, com a gestão da prova nas mãos das partes (acusação e defesa), assim como a submissão do processo aos ditames constitucionais da ampla defesa e contraditório[6].

Cabe ressaltar que parte da doutrina critica essa divisão, podendo ser citado como exemplo o professor Aury Lopes Júnior ao aduzir que o sistema penal ou é essencialmente inquisitorial, e assim deve ser classificado, ou é essencialmente acusatório, mas nunca será misto[7].

Justamente por não se submeter ao crivo do contraditório a da ampla defesa é que os elementos colhidos durante a fase do Inquérito policial são nominados de (meros) elementos de informação[8].

Tais elementos, pela clara dicção do CPP, que deve ser lido e interpretado sob filtragem constitucional e convencional, servem apenas para balizar a atuação do órgão que, de acordo com a constituição, é o  titular da ação penal, Ministério Público[9], na formulação da sua opinião delitiva, não sendo dotados da idoneidade constitucional necessária para o embasamento de um decreto condenatório[10].

Os elementos de informação colhidos na fase pré-processual devem ser confirmados em juízo sob o crivo do contraditório, onde as partes do processo terão a oportunidade de se manifestarem de forma isonômica (ao menos em tese), com a finalidade de se livrarem da carga probatória, conforme farta jurisprudência dos Tribunais Superiores:

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO CONCURSO DE PESSOAS. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. ACÓRDÃO CONDENATÓRIO EMBASADO EXCLUSIVAMENTE EM ELEMENTOS INFORMATIVOS COLHIDOS DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL. OFENSA À GARANTIA DO DEVIDO Processo LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Em respeito à garantia constitucional do devido processo legal, a legitimidade do poder-dever do Estado aplicar a sanção prevista em lei ao acusado da prática de determinada infração penal deve ser exercida por meio da ação penal, no seio da qual ser-lhe-á assegurada a ampla defesa e o contraditório. 2. Visando afastar eventuais arbitrariedades, a doutrina e a jurisprudência pátrias já repudiavam a condenação baseada exclusivamente em elementos de prova colhidos no inquérito policial. 3. Tal vedação foi abarcada pelo legislador ordinário com a alteração da redação do artigo 155 do Código de Processo Penal, por meio da Lei n. 11.690/2008, o qual prevê a proibição da condenação fundada exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação. 4. Constatado que o Tribunal de origem utilizou-se unicamente de elementos informativos colhidos no inquérito policial para embasar o édito condenatório em desfavor da paciente, imperioso o reconhecimento da ofensa à garantia constitucional ao devido processo legal. REPRIMENDA. REGIME DE EXECUÇÃO. MODO FECHADO DETERMINADO COM BASE NA GRAVIDADE EM ABSTRATO DO DELITO. DESCABIMENTO. PENA-BASE. FIXAÇÃO NO MÍNIMO LEGALMENTE PREVISTO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. ART. 33, §§ 2º E 3º DO CÓDIGO PENAL. SÚMULAS 718 E 719 DA SUPREMA CORTE. COAÇÃO ILEGAL EVIDENCIADA. ALTERAÇÃO PARA O MODO SEMIABERTO. 1. O art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal estabelece que o condenado à pena superior a 4 (quatro) anos e não excedente a 8 (oito) poderá iniciar o cumprimento da reprimenda no regime semiaberto, observando-se os critérios do art. 59 do aludido diploma legal. 2. Fixada a pena-base no mínimo legal e sendo o acusado primário e sem antecedentes criminais, não se justifica a imposição do regime prisional mais gravoso. 3. A Suprema Corte, nos verbetes 718 e 719, sumulou o entendimento de que a opinião do julgador acerca da gravidade genérica do delito não constitui motivação idônea a embasar o encarceramento mais severo do sentenciado. 4. Ordem concedida para cassar o acórdão objurgado apenas com relação à paciente Márcia Regina Pereira, restabelecendo-se a sentença absolutória proferida pelo magistrado singular, com a determinação de expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver presa e para estabelecer o regime semiaberto como modo inicial de cumprimento da sanção aplicada ao paciente Adriano Emílio Marchesini. (STJ, Quinta Turma, HC 200802252070, rel. Min. Jorge Mussi, 14/02/2011, grifo meu).

Por esse motivo é que somente os elementos produzidos em juízo, em contraditório judicial, se revestem do caráter de prova apta a servir de fundamento para a persuasão racional motivada do órgão julgador, nos moldes do Art. 93, XI, da CF.

Porém, o que se vê no dia a dia das audiências criminais é justamente o oposto.

São denúncias e condenações baseadas exclusivamente nos elementos de informação, que são meramente repetidos durante a instrução do processo, consubstanciando-se, na sua maioria esmagadora, em testemunhos somente da vítima ou somente dos policiais que fizeram as prisões (que em muitas vezes não presenciaram o fato) e das chamadas testemunhas de ouvi dizer e que, desta forma, não ultrapassam a fronteira do standard probatório da prova além da dúvida razoável (beyond a reasonable doubt).[11]

Na verdade, não se produz prova. O que se faz é vestir com roupa de prova os elementos de informação colhidos durante a fase pré-processual da investigação criminal.

Isso ocorre porque alguns órgão e entes do sistema de justiça não questionam tais elementos corretamente ou não agem com o zelo necessário, cotejando-os com as demais provas efetivamente produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, capazes de estancar a dúvida razoável que milita a favor do acusado em razão da presunção de inocência, prevista tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, salvo em prejuízo do réu.

Produz-se, então, o que denomino de “prova empanada”: o que se tem na verdade é um elemento de informação colhido na fase pré-processual, inquisitorial por essência e, portanto, sem obediência ao contraditório e ampla defesa, o qual não possui força probante e consequentemente não vence o standard probatório da prova além da dúvida razoável, sob uma camada jurisdicional fina e frágil que lhe concede uma falsa aparência de prova, sendo utilizado instrumentalmente para corroborar um juízo já formado antes mesmo da “produção de tal prova” pelo julgador.

O ônus da carga probatória, que é do acusador por mandamento constitucional em razão do princípio de presunção de inocência em suas dimensões dever de tratamento e regra de julgamento, por vezes é invertido de ofício pelo magistrado da causa, o que não é permitido nem mesmo nas causas consumeristas sobre juros abusivos contra os bancos, conforme entendimento sumulado do STJ[12].

A presunção de inocência na sua dimensão regra de julgamento impõe a utilização do critério da absolvição para resolver a dúvida judicial.

O acusado deve ser tratado como inocente desde o início do processo, até que a acusação consiga derrubar tal presunção por meio da comprovação da autoria e da materialidade do crime. Esta carga probatória é exclusiva do órgão acusador.

Contudo, na prática, não é isso que acontece. Na dúvida, há a denúncia, ocorre o seu recebimento, acontece a pronúncia e há a condenação do réu, tudo sob a pretensa áurea de justiçamento (porque não existe justiça sem o devido processo legal substancial).

Em lúcida avaliação, a Professora Janaína Matida[13] aduz que o standard probatório significa o grau de suficiência que a hipótese fática condenatória precisa superar para que seja considerada verdadeira, recaindo esse ônus sobre os ombros da acusação, que deve provar o alegado além de toda a dúvida razoável,  porque o risco de um erro judiciário leva a uma consequência muito séria e gravosa: a perda da Liberdade.[14]

O standard da prova penal deve distribuir assimetricamente os riscos entre condenação de inocentes e absolvição de culpados, dificultando a condenação de inocentes ainda que para isso tenha que facilitar a absolvição de culpados[15].

Nesses casos, o standard da prova deve levar em consideração que o ônus da prova deve ser mais pesado no processo penal do que nos demais ramos do direito.

Nas palavras dos professores Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa[16]:

[...] ao consagrar constitucional e convencionalmente a presunção de inocência, fez o legislador uma escolha de política processual importante. A presunção de inocência — em rápida análise, dada a proposta do artigo — é concebida como norma (ou regra) de tratamento, norma probatória e norma de juízo, na classificação de Zanoide de Moraes[3]. O in dubio pro reo é uma manifestação da presunção de inocência enquanto regra probatória e também como regra para o juiz, no sentido de que não só não incumbe ao réu nenhuma carga probatória, mas também no sentido de que para condená-lo é preciso prova robusta e que supere a dúvida razoável. Na dúvida, a absolvição se impõe [...] portanto, ao consagrar a presunção de inocência e seu subprincípio in dubio pro reo, a Constituição e a Convenção Americana sinalizam claramente na adoção do standard probatório de "além da dúvida razoável", que, somente se preenchido, autoriza um juízo condenatório. É claro que isso não imuniza o sistema do risco do decisionismo, mas é um importantíssimo mecanismo de controle e redução de danos.

O modelo de livre convencimento de apreciação da prova, onde o julgador possui uma aparente liberdade para valorá-la, tem ocasionado uma abertura à discricionariedade temerária, que, segundo Michele Taruffo, tem aberto um caminho para a legitimação da arbitrariedade subjetiva do juiz ou, no melhor dos casos, para uma discricionariedade que não se submete a critérios e pressupostos[17].

Por isso a necessidade de definição e observância de standards probatórios, também chamados de modelos de constatação, é de suma importância para que haja a obrigatoriedade de observância de níveis de convencimento ou de certeza que determinam o critério para que se autorize e legitime o proferimento de decisão em determinado sentido.

Isso evitaria ou ao menos mitigaria de maneira considerável a ocorrência da precarização da valoração probatória por meio do atendimento ao standard probatório, objetivando a possibilidade de que a decisão possa ser controlável intersubjetivamente.

Não se pode precarizar a valoração da prova sobre o argumento reducionista de fazer justiça, em desobediência às formas previstas na Constituição e na legislação infraconstitucional, porque em processo penal forma é garantia.

Enquanto essa lógica invertida de valoração utilitarista dos elementos de informação com uma cobertura formal de prova sem a observância dos standards probatórios não for corrigida, continuaremos a ter que falar de seletividade penal, encarceramento em massa e instrumentalidade do processo penal como forma de controle social de classes.

 

 

Notas e Referências

[1] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 792.

[2] LOPES, Jr. Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2018. p. 353.

[3] O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. HC 95.967, rel. min. Ellen Gracie, 2ª T, j. 11-11-2008, DJE 227 de 28-11-2008.

[4] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 166.

[5] Pacelli, Eugênio. Curso de processo penal.  21. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 21.

[6] Avena, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal.  9.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 42.

[7] LOPES, Jr. Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2018. p. 46-49.

[8] Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso: 18/10/2019.

[9]  Art. 129 da CF/88: São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18/10/2019.

[10] Informativo 638 - STJ: Não se admite a pronúncia de acusado fundada exclusivamente em elementos informativos obtidos na fase inquisitorial. AgRg no REsp 1.740.921-GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, por unanimidade, julgado em 06/11/2018, DJe 19/11/2018

[11] Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Sobre o uso do standard probatório no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal. Acesso em: 18/10/2019.

[12] SÚMULA 381 do STJ: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.

[13] MATIDA, Roland Janaina. Pod Cast Criminal Player. Ep. 4. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/16WW57K4tiNBLpt04CrF29. Acesso em: 14/10/2019.

[14] MATIDA, Roland Janaina. O problema da verdade no processo: a relação entre fato e prova. Dissertação de mestrado. PUC/RJ. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp120031.pdf. Acesso: 18/10/2019.

[15] Ibidem

[16] Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Sobre o uso do standard probatório no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal. Acesso em: 18/10/2019.

[17] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trotta, 2011. p. 387, tradução livre.

 

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