Precariedades de uma inserção desigual: mulheres no (super) mercado de trabalho da Região Metropolitana de Porto Alegre

14/03/2017

Por Guilherme Wünsch e Cibele Cheron – 14/03/2017

Inobstante o recentemente reafirmado fundamental papel feminino, de apontar desequilíbrios econômicos controlando a flutuação dos preços nos supermercados, cremos que mais sobre a atuação das mulheres na economia possa ser dito, especialmente quanto às relações de trabalho. Mesmo com o aumento do nível de instrução, a ampliação de funções desempenhadas e o crescimento do número de mulheres atuantes na força de trabalho, persistem desigualdades em prejuízo das mulheres. O ingresso da mão de obra feminina no mercado de trabalho ocorre em condições precárias, às quais são atreladas a maximização da produtividade, a consequente redução de custos e postos de trabalho e a política de flexibilização das relações laborais, resultando em maior precarização do trabalho feminino. O aumento da produtividade e a majoração da competitividade ocorrem em processos de horizontalização e descentralização da produção, reduzindo o número de postos formais de trabalho e impulsionando o crescimento de formas de trabalho informal, temporário, precário, terceirizado, excludente, onde o crescimento humano e o bem estar social não são relevantes.

Os últimos decênios proporcionaram a ampliação de oportunidades em diferentes ocupações no mercado de trabalho para as mulheres. No entanto, tal ampliação nas oportunidades não elimina estereótipos e estigmas construídos a partir do gênero, tampouco se reverte em igualdade social. O desenho da matriz produtiva e a maior participação das mulheres têm alterado a configuração do mercado de trabalho (CASTELLS, 2005). Essas modificações podem ser estruturadas em três fatores: a) retração do fordismo e a consequente redução do número de trabalhadores estáveis; b) horizontalização e desregulamentação das relações de trabalho, terceirização, informalidade e precariedade; e c) aumento do trabalho feminino, em função da desregulamentação e precariedade. As mulheres representam números maiores na força de trabalho justamente por ser precário, dando ainda maior suporte a práticas discriminatórias e às desigualdades salariais e de direitos (ANTUNES e ALVES, 2004).

Tendo por base a Região Metropolitana de Porto Alegre, observamos essa realidade em dados relativos à taxa de participação, emprego, desemprego e renda, no período de 1998 a 2016, obtidos junto à Pesquisa de Emprego e Desemprego do Convênio PED-RMPA. Comparando dados referentes ao engajamento da população em idade ativa em atividades laborais, verifica-se aumento da taxa de participação feminina e diminuição da masculina. As oportunidades de trabalho, nos últimos anos da série analisada, vêm acompanhadas de retração na taxa de participação da força de trabalho, o que ocasiona queda na população economicamente ativa, especialmente para a população feminina. Ou seja, diminuiu o percentual de mulheres em idade para trabalhar que pressionam o mercado a fim de se incorporarem.

Considerando as variações etárias, as maiores concentrações estão nas faixas entre vinte e cinco a sessenta anos, o que reflete o período máximo de produtividade da maior parte das pessoas. Ao longo do período, observa-se queda nas taxas de participação entre os homens concomitante ao aumento nas taxas das mulheres, nas mesmas faixas etárias (na faixa de 16 a 24 anos, elas vão de 58%, no início da série, a 63%, ao final, ao passo que eles vão de 75% para 66%; na faixa dos 25 a 39 anos, elas iniciam a série com 66% e terminam com 79%, eles iniciam com 95% e terminam com 90%; já na faixa de 40 a 49 anos, elas partem de 61% e chegam a 70%, e eles saem de 91% para 87%). A maior participação feminina também está atrelada a outros indicadores demográficos, como a queda nas taxas de fecundidade, o aumento do grau de escolarização das mulheres e transformações de cunho valorativo que impulsionam a compatibilização das funções tradicionais domésticas e da maternidade com o exercício do trabalho produtivo (GUIMARÃES, 2004).

Porém, o que os dados indicam é a tendência vigente à diminuição dos postos estáveis de trabalho, caracterizados por relações de emprego, e aumento da oferta de trabalho precário (LEITE, 2003), movimento sincrônico de retração e expansão a explicar o incremento da inserção feminina no mundo laboral nos contextos de acumulação flexível.

A precariedade no âmbito do trabalho assume contornos ainda mais expressivos quando o recorte de raça/etnia é acrescentado à análise. O racismo estabelece tratamento socialmente inferiorizante operando como fator de desagregação entre a classe trabalhadora feminina, na medida em que cria oposição entre os prejuízos estabelecidos às negras e os benefícios concedidos às não negras. É possível falar em bipolarização do trabalho feminino: por um lado, há significativo crescimento, avanços educacionais, inserção em ocupações não manuais relativamente melhor remuneradas e mais estáveis; por outro lado, proliferam ocupações de menor qualidade, informais, de baixa renda, que contemplam a mão de obra pouco escolarizada. As mulheres que se direcionam ao polo virtuoso dessa cadeia são predominantemente não negras, ao passo que o polo vicioso concentra um número elevado de mulheres negras, especialmente nos serviços domésticos (BRUSCHINI e LOMBARDI, 2000).

Quanto ao nível de instrução, em todo o período o grupo com maior escolarização (ensino médio completo somado ao ensino superior completo) é ampliado, praticamente na mesma proporção, por mulheres e homens. Isso mantém inalterada a distância entre ambos, estando as mulheres sempre mais presentes entre as pessoas ocupadas com maior nível de instrução. Em 2016, aquelas ocupadas com ensino médio completo ou superior completo constituíam 66,5%, confrontando 58,8% entre os homens do mesmo segmento. No início da série, em 1998, as mulheres ocupadas com maior escolaridade compunham 43,3%, e os homens, 35,2%.

É importante salientar que o desenvolvimento econômico, em contextos como o brasileiro, não se traduz em desenvolvimento social. Sabe-se que o mercado de trabalho nacional não foi capaz de estabelecer circunstâncias de generalização do emprego formal, atingindo toda a classe trabalhadora com garantias e direitos. O desenvolvimento se estendeu na mão contrária, criando um cenário de concentração de renda, subemprego, salários baixos e desiguais a partir de sexo ou cor (CASTEL, 1999). Nesse panorama, o mercado laboral guarda suas características desiguais e excludentes (POCHMANN, 1998).

Ante tais processos, escolarização, qualificação e formação profissional transformam-se em fetiches. Crê-se que a pessoa escolarizada estará a salvo da vulnerabilidade inerente ao mercado de trabalho, o que despreza componentes estruturais da precariedade e deposita unicamente na classe trabalhadora a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso de sua inserção no mundo laboral. (SEGNINI, 1998). Cumpre considerar a divisão sexual do trabalho, na medida em que a preferência do mercado por pessoas escolarizadas, e por mulheres escolarizadas, especificamente, diz respeito também a um conjunto de processos sociais, econômicos e culturais, aliados à escolaridade enquanto atributo pessoal. Nesse sentido, a qualificação é relativizada diante das relações sociais, em especial, de gênero, estabelecidas durante os processos produtivos, no bojo de uma sociedade regida pelo valor de troca e eivada por traços culturais patriarcais. O incremento da participação feminina e a escolaridade elevada pouco alteraram a condição socioeconômica das mulheres ou reduziram as desigualdades (BRUSCHINI, 2007).

Observando os dados da Região Metropolitana de Porto Alegre, denota-se a permanência de mulheres nos tradicionais nichos de ocupação. Os setores em que se constatou a maior presença feminina atendem aos critérios determinantes da divisão sexual das ocupações, remetendo ao nível das representações simbólicas que identificam as mulheres aos serviços sociais (educação, assistência social, saúde e cuidado) da mesma forma que à desqualificação e às fragmentações nos processos produtivos. Apesar de mulheres estarem adentrando em espaços tradicionalmente masculinos, novos e promissores, como o direito, a medicina, as engenharias e a arquitetura, seguem submetidas a padrões diferenciados por gênero.

Desses padrões, a desigualdade na remuneração é apenas o traço mais evidente. A defasagem dos salários e rendimentos femininos em relação aos ganhos masculinos geralmente é atribuída à diferença entre o número de horas trabalhadas que, semanalmente, ao longo de todo o período, foi maior para os homens do que para as mulheres. Em 2016, o rendimento/hora das mulheres em relação ao rendimento/hora dos homens assumiu a proporção de 86,3%. Não se trata, portanto, da diferença de horas trabalhadas, o que possa justificar, como fator primordial, a assimetria de renda auferida por mulheres e homens. A ampliação da participação de mulheres e a retração ou estagnação da participação de homens, ante tais dados, permitem afirmar que o mercado tem privilegiado a contratação feminina e se beneficiado com o pagamento de salários inferiores a uma mão de obra dotada de alto nível de escolarização e qualificação.

Importa salientar que o desempenho das mulheres no mercado de trabalho está mais atrelado aos papéis sociais que sem veem impelidas a desempenhar perante seus grupos de convivência do que a habilidades naturais, habitualmente apontadas como condicionantes de sua alocação nos tradicionais setores de ocupação feminina. A jornada de trabalho pago, embora menor, é sobrepujada com a jornada de trabalho não pago (10 horas semanais para homens que coabitam com mulheres; 20 horas semanais para mulheres que coabitam com homens). Enquanto elas são condicionadas a tarefas domésticas e ao cuidado das famílias, eles podem dedicar-se em atenção, esforço e tempo, com primazia, ao trabalho pago. O desvínculo com a esfera doméstica os favorece também em função da flexibilização da mão de obra, a exigir deslocamentos e maiores possibilidades de dedicação integral ao mundo laboral (MADALOZZO,    MARTINS e SHIRATORI, 2010).

Além disso, progressivamente assumir a chefia das famílias as condiciona a responsabilidades que levam as mulheres a trabalharem por salários mais baixos, preferíveis dada a iminência do desemprego. Dois aspectos devem ser considerados: a flexibilidade do trabalho e a flexibilidade da mão de obra, requerida como exigência do mercado a fim de superar a rigidez das legislações trabalhistas, viabilizando a competitividade empresarial. No atual contexto, a flexibilidade da mão de obra significa, basicamente, a contratação maciça de mulheres por tempos parciais a baixos salários (HIRATA, 2002).

Para as mulheres, o desemprego é mais duradouro, mais invisibilizado, mais aceito e tolerado, não sendo considerado um problema socialmente relevante na mesma proporção do desemprego masculino. Esse entendimento se alicerça no estereótipo do homem provedor, cujo trabalho é valorizado e priorizado, ao passo que o trabalho da mulher é visto como complementar, não gozando do mesmo valor (MARUANI, 2000). Embora para ambos a tendência observada tenha sido de queda até 2015 a composição da população desempregada foi predominantemente feminina e, entre 2014 e 2016 a taxa de desemprego total feminino aumentou de 6,6% para 11,2%, e masculino, de 5,4% para 10,2%. As estratégias de sobrevivência traçadas pelas pessoas diante da perda do emprego, muitas vezes envolvem a execução de trabalhos ocasionais, a fim de prover o sustento próprio e de sua família. Verifica-se tal situação especialmente em momentos de crise estrutural econômica e maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, ainda agravados pela ausência e a limitação de medidas de proteção social, como a redução do arcabouço protetivo dos direitos sociais (GUIRALDELLI, 2012)

A acumulação flexível impele a subproletarização do trabalho e a expansão do desemprego estrutural, além de heterogeneizar o mercado laboral, especialmente através da incorporação progressiva da mão de obra feminina. A precarização do trabalho e o próprio desemprego, assim, assumem um papel central no sistema contemporâneo, consequências necessárias da reestruturação produtiva. As formas atípicas de trabalho, que aumentam expressivamente, são aquelas em que se encontra o maior contingente de mão de obra feminina. Especialmente o trabalho em tempo parcial é visto como tipicamente feminino. Vale frisar que o trabalho temporário e parcial é também tipicamente precário. Significa, assim, empobrecimento e/ou dependência para as mulheres trabalhadoras, situação que se agrava à medida que políticas de retração dos direitos sociais e de diminuição da proteção do Estado ao trabalho avançam, como se verifica no horizonte brasileiro atual.


Notas e Referências:

ANTUNES, Ricardo; ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação Social, vol. 25, n. 87. Campinas, UNICAMP, maio/agosto de 2004, p. 335-351. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v25n87/21460.pdf.>. Acesso em 27 de fevereiro de 2017.

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha; LOMBARDI, Maria Rosa. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, n. 110. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, julho de 2000, p. 67-104.

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, setembro/dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742007000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 25 de fevereiro de 2017.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1999.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. v. I. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

DIEESE; SEADE; MTE; FAT; Convênios regionais. Pesquisa de Emprego e Desemprego: PED. RMPA, 1998 a 201 Disponível em <http://www.dieese.org.br/analiseped/boletinsAnterioresPOA.html>. Acesso em 09 de março de 2017.

GUIMARÃES, Nadya Araújo. Caminhos cruzados: estratégias de empresas e trajetórias de trabalhadores. São Paulo: Editora 34, 2004.

GUIRALDELLI, Reginaldo. Adeus à Divisão sexual do Trabalho?: Desigualdade de Gênero na Cadeia Produtiva da confecção. Sociedade e Estado, v. 27, n. 3. Brasília: dezembro de 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922012000300014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 26 de fevereiro de 2016.

HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho?: um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

LEITE, Márcia de Paula. O paradigma do conhecimento. O paradigma produtivo. Uma perspectiva histórica. In: Trabalho e sociedade em transformação: mudanças produtivas e atores sociais. São Paulo: Perseu Abramo, 2003. p. 25-90.

MADALOZZO, Regina; MARTINS, Sergio Ricardo; SHIRATORI, Ludmila. Participação no mercado de trabalho e no trabalho doméstico: homens e mulheres têm condições iguais?. Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 2, Florianópolis: agosto 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2010000200015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 de novembro de 2015.

MARUANI, Margareth. Travail et emploi des femmes. Paris: La Découvert, 2000.

Mulher e Trabalho, Informe Mulher e Trabalho e PED-MULHER. Publicação especial do Convênio de Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Porto Alegre. Disponíveis em <http://www.fee.rs.gov.br/sitefee/pt/content/publicacoes/pg_revistas_mulheretrabalho.php>. Acesso em 22 de fevereiro de 2017.

POCHMANN, Marcio. O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 1998.

SEGNINI, Liliana. Mulheres no trabalho bancário: difusão tecnológica, qualificação e relações de gênero. São Paulo: EDUSP, 1998.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutor em Direito pela Unisinos. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS e Advogado Pleno Coordenador da Área Trabalhista do Escritório Santos Silveiro Advogados, com atuação no RS e PR. Professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS.


Cibele Cheron. Cibele Cheron é Bacharel em Direito Pela UFRGS, Mestre em Ciências Sociais Pela PUCRS e Doutora em Ciência Política pela UFRGS. Também mediadora judicial certificada pelo TJRS conforme os parâmetros do CNJ. Integra o grupo de pesquisa Gênero, Juventudes e Socialização no CNPq, e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM) na UFRGS. Professora Universitária.


Imagem Ilustrativa do Post: Woman working in a Bar // Foto de: x1klima // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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