Praças públicas: atributos socioambientais, proteção legal e cidadania

31/12/2017

Introdução

As praças públicas, via de regra, passam despercebidas pelos olhares rotineiros dos cidadãos. Os habitantes de uma cidade, em razão dos inúmeros compromissos, dentre os quais o trabalho e a educação; acabam por não perceber a importância das praças públicas para a convivência humana, para o bem-estar e para a saúde.

Paulo Affonso Leme Machado[1], citando Murilo Marx, explica que as praças, no sentido de reunião de pessoas, nasceram culturalmente ligadas as capelas, as igrejas, aos conventos ou irmandades religiosas. Na evolução histórica, as praças foram formadas para servirem de ponto de convergência social e palco de manifestações populares. Do ponto de vista etimológico, registra-se que o termo praça possui origem na língua latina – platea, Para Antônio Geraldo Cunha, também citado por MACHADO, a praça, no português medieval era documentada como em praça, ou seja, em público.

No direito, as praças públicas possuem natureza jurídica de bem de uso comum do povo[2], registrada no art. 99, inciso I do Código Civil. Nesse sentido, a praça tornou-se, de um lado, um ambiente de direito do cidadão e de outro lado, um ambiente de convivência, de intercâmbio e de sociabilidade, especialmente nas cidades mais urbanizadas.

Discute-se, no presente artigo, os atributos socioambientais das praças, ou seja, em que medida as praças são importantes para o bem-estar humano e quais as garantias de prevalência do direito à praça em face da administração pública.

Os atributos sociais, estéticos, educativos, ecológicos e psicológicos das praças[3]

O atributo social da praça pública realiza-se pela possibilidade de oferecer aos habitantes um espaço ao ar livre e verde na desruptura das cidades, permitindo a realização de pratica esportivas, disseminação cultural, manifestações políticas e de interação humana.

As praças, sob o ponto de vista estético, permitem a criação de diferentes espaços e tipologias. A modulação arquitetônica das praças garante aspectos paisagísticos, ecológicos, culturais e desportivos que podem variar e embelezar a cidade.

As praças públicas podem ser um importante espaço para realização da educação popular e da conscientização da população sobre temas importantes para a vida em sociedade. As praças podem ser palco de campanhas de saúde; de teatros itinerantes e para o desenvolvimento de atividades pedagógicas extraclasse.

Sob o ponto de vista ecológico, as praças públicas representam um importante espaço com presença de vegetação nas cidades. A função ecológica é colaborativa para o conforto térmico das cidades, melhoria da qualidade do ar, garantia da biodiversidade e, ainda, um ambiente com propensão para receber espécies da fauna e da flora.

As praças públicas colaboram com o bem-estar psicológico dos Seres Humanos. O bem-estar advém de o fato das praças possibilitarem a interação entre indivíduos; melhorar a qualidade de vida pela oportunidade de realizar atividades físicas e desportivas; pela possibilidade de proporcionar o contato com um espaço aberto, ao ar livre e verde, favorecendo o relaxamento/contemplação em detrimento do stress advindo dos problemas urbanos. 

A praça pública como bem de uso comum e a garantia contra a alteração da finalidade

Discute-se as dimensões do poder da administração pública quanto a desafetação do bem público de uso comum. No caso das praças públicas, a questão assume importância singular por se tratar de espaço com atributos sociais e ambientais elementares para a vida dos cidadãos nas cidades.

Como já afirmado, as praças públicas constituem bem público de uso comum do povo, assim especificado pelo Código Civil no art. 99, inciso I. A natureza jurídica de bem de uso comum garante à sociedade que as praças públicas, apenas em casos raros e excepcionais, poderão ser desafetadas e transformadas em bem de uso especial ou dominical, passando de bem público afeto ao povo para bem público privado da administração pública.

Paulo Affonso Leme Machado explica que a concepção moderna de Estado suplantou a ideia do despotismo real-divino em que o Estado não teria deveres. Atualmente vigora o principio do bem comum, onde o Estado possui deveres para com a sociedade, dentre os quais, o de administrar o interesse comum.

Assim, dada a natureza jurídica das praças e a nova concepção de Estado, cabe à administração pública apenas a gestão do ambiente e, no que se refere a intervenção, deve limitar-se a expedir regras de uso e de convivência, garantindo, por meio do poder de polícia, a correta utilização dos espaços por todos os cidadãos.

Na direção da impossibilidade de tredestinar as áreas reservadas às praças públicas, a Lei Federal n.º 6.766/1979, que trata do parcelamento do solo urbano, concebeu duas regras peculiares: a) a proibição do loteador de alterar o projeto urbanístico e o memorial descritivo do loteamento no que concerne aos espaços livres de uso comum, as vias públicas e as áreas destinadas aos edifícios públicos[4]. Ou seja, uma vez aprovado o loteamento, as áreas livres e de uso comum não poderão sofrer alterações quanto a sua natureza e destinação e, b) a obrigação do loteador em destinar áreas livres na proporção adequada a população prevista para circular e conviver no loteamento[5]. Nesses casos, as regras devem ser estabelecidas pelo Plano Diretor Urbano do Município.

Pela regra da Lei n.º 6.766/1979, uma vez que o loteamento esteja aprovado e registrado em cartório, o Poder Público recebe do loteador, a título gratuito, as áreas livres, verdes e destinadas aos equipamentos público. Assim, as áreas recebidas deverão cumprir a destinação prevista na planta de aprovação do loteamento e a administração pública, em regra, não poderá alterar a finalidade e a natureza das áreas.

Nesse sentido, Paulo Affonso Leme Machado cita a decisão contida no REsp n.º 28.058-SP, da lavra do Min. do STJ Adhemar Maciel, cujo cerne da discussão culminou à época pela proibição do loteador de alterar as áreas destinadas à comunidade e pela vedação da desafetação das áreas constituídas em bem de uso comum pelo poder público. O fio condutor da argumentação foi: a) que a alteração da finalidade das áreas prejudicaria toda uma comunidade de pessoas, indeterminada e indefinidas, diminuindo a qualidade de vida do grupo; b) que não seria razoável que a própria Administração diminuísse sensivelmente o patrimônio social da comunidade, pois, se a conduta de alterar a finalidade das áreas constituídas em bem de uso comum é vedada ao particular, não poderia a Administração Pública, salvo exceções que circundassem também o interesse comum da população, afrontar a tutela legal e a importância socioambiental das praças.      

A proibição de alteração da função socioambiental das praças funda-se em regra de direito civil. O art. 100 do códex prevê que os bens públicos de uso comum do povo são inalienáveis, estando excluído da esfera de relação jurídica privada em razão da finalidade. Toshio Mukai[6] sustenta que havendo destinação de uso comum, não pode a lei, considerando a finalidade do bem, efetivar a desafetação sob pena de haver cometimento de lesão ao patrimônio público da comunidade.

Conclusão

As praças públicas cumprem importante função socioambiental nas cidades e sua criação e proteção deve envolver o Poder Público e a Comunidade. As eventuais ou necessárias intervenções nas praças públicas que venham alterar a finalidade de uso comum devem ser discutidas em audiências públicas e reguladas pelo Plano Diretor Urbano.

A criação, proteção e manutenção das praças públicas e dos espaços verdes constitui uma parte do desafio da vida nas cidades. A premissa maior é construção coletiva e cidadã do planejamento urbano, cujo ator principal, por diversos motivos, dentre os quais a ausência da consciência de cidadania, delega ao poder público a destinação do futuro e ignora o dever de participar das decisões que envolvem as políticas públicas urbanas.

A proposito da participação política, revisito o dramaturgo e poeta alemão, Bertolt Brecht que escreveu:       

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.[7]

Atualizando o poema, poderíamos incluir que o analfabeto político não sabe, também, que qualidade de vida nas cidades depende da decisão política.

 

[1] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. Malheiros: São Paulo, 2013

[2] Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; 

[3] Disponível em - https://www.pracas.com.br/blog/5-beneficios-importantes-que-as-pracas-oferecem - acesso em 26 de dez. 2017.

[4] Art. 22. Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

[5] Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:

I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem.  

[6] MUKAI, Toshio. Direito e legislação urbanística. Saraiva: São Paulo, 1988.

[7] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht - acesso em 28 dez 2017

 

Imagem Ilustrativa do Post: Praça Pública - Campinas // Foto de: Kennedy Henrique // Sem alterações

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