Pra não dizer que não falei das flores  

05/07/2018

“Há soldados armados

Amados ou não

Quase todos perdidos

De armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam

Uma antiga lição

De morrer pela pátria

E viver sem razão”.

Geraldo Vandré

 

Existem algumas coisas que somente o tempo é capaz de nos demonstrar. Provei disso na própria pele. Quando adolescente, eu não era um aluno atento e compenetrado em qualquer das tantas aulas frequentadas durante o Ensino Médio. Não era o melhor em nenhuma matéria, sendo apenas mediano na grande maioria. Tinha poucas páginas escritas no caderno, sendo que não recordo de ter comprado qualquer livro indicado pelos professores durante o segundo grau.

Com um distanciamento de quase 15 (quinze) anos, posso lembrar dessa fase com um claro arrependimento: eu só era o primeiro da turma no basquete. No entanto, lembro de uma manhã qualquer em que a professora de história realizou um convite na sala de aula sobre um seminário que teria na Câmara de Vereadores. O evento ocorreria no dia seguinte e teria pela parte da manhã explanações de professores de história e durante a tarde relatos de pessoas que haviam sido presas ao tempo da ditadura militar.

Ao fazer o convite, a dedicada professora perguntou se alguém tinha interesse e um silêncio ensurdecedor tomou conta da sala de aula. Hoje eu teria me preocupado com esse silêncio, teria ficado em pé, conclamaria meus colegas para que juntos lotássemos aquelas cadeiras estofadas da casa do povo e aprendêssemos sobre nossa história, nossos antepassados, nossa democracia.

No entanto, o máximo que consegui foi levantar a mão, talvez até por pena da culta professora.

Ela agradeceu e disse que encaminharia meu nome aos organizadores e que bastaria eu chegar com alguns minutos de antecedência. Soubesse eu que seria tanto compromisso assim, teria até desistido. Mas já era tarde.

Lembro perfeitamente que no dia seguinte teve muita chuva. Como é normal para um adolescente eu não tinha carro, nem moto e contava apenas com um guarda-chuva para os dias molhados. Quando iniciou a primeira fala da manhã, eu já estava lá e o que foi contado naquele seminário mudou para sempre meu jeito de enxergar o passado.

Durante horas eu ouvi relatos e histórias de diversos presos políticos que se revezavam com os professores de história. Ao fundo, lembro como se fosse hoje, havia uma espécie de banner contendo a seguinte frase:

“Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. 

A verdade é que, quase 15 anos depois, sei bem que há muito o que se falar ainda sobre o período da ditadura militar. Os anos de 1964-1985 parecem tão obscuros e sorrateiros que, com o passar dos anos, surgem novos relatos, novas máculas, novas vergonhas de uma época tatuada no nosso DNA. Ainda vai levar muito tempo para compreendermos as cicatrizes que os cassetetes autoritários e as torturas trouxeram para os brasileiros. No entanto, nos últimos anos, o silêncio proveniente dos covardes porões da ditadura parece ter virado combustível para uma nova onda de protestos, onde pessoas pedem a volta do governo de farda e coturno.

O regime militar instaurado em 1 de abril de 1964, que de bobo só tinha o dia, foi estabelecido com o pretexto de combater o avanço comunista liderado por João Goulart e seu cunhado Leonel de Moura Brizola. Foram 21 (vinte e um anos) até que, a partir de manifestações populares, os cidadãos brasileiros reconquistassem o direito ao voto direto e reestabelecessem a democracia.

Diversos são os fenômenos que podem ser analisados para compreender o baixo respeito à Constituição quando, pouco mais de 30 anos depois do final desse famigerado regime, muitas pessoas, no gozo de seus direitos constitucionais, conclamam nas redes e nas ruas a volta do governo militar. Não se sabe o que aconteceu conosco que, em um brevíssimo espaço de tempo, temos saudades de tanta dor.

A questão é que um governo militar implica redução de garantias, presos políticos, torturas. Sendo assim, se a consolidação de um regime resulta em tantas agruras à cidadania e tantas agressões ao Estado Democrático de Direito jamais poderá ser Constitucionalmente admitida. Veja que até mesmo a advocacia foi enfraquecida nos anos de ditadura militar, sobretudo pela prisão de muitos advogados que defendiam presos políticos, no exercício do seu múnus público.

Aliás, lugares em que a advocacia é enfraquecida, fragilizada ou ameaçada, são lugares inférteis para a própria cidadania.

Exatamente por isso que, ao ver pessoas pedindo a volta do regime militar, costumeiramente não consigo controlar minha veia política e acabo criticando esse ideal. Quase sempre o assunto encerra com alguém mandando eu ir falar com meu avô, “pergunta para o teu avô se era tão ruim assim”, “ele vai te dizer que não foi uma ditadura e que só terroristas iam preso”.

Átila Bronzoni Santiago era o nome do meu avô paterno. Pai de 10 filhos, trabalhador e apaixonado pelas causas em que acreditava. Mais de uma vez fora levado preso, inclusive para impedir seu voto. Teve uma ocasião, em uma das prisões, em que ele estava almoçando com minha avó, meu pai e meus tios, quando acabou sendo surpreendido por militares armados.

Nunca se teve notícias de onde ele ficou preso e nem mesmo a razão da prisão política foi informada aos familiares, mas suponho que deveria ser algum artigo da Lei de Segurança Nacional. Nenhum advogado foi contratado pela família e desconheço que algum bacharel tenha sido oferecido pelo Estado.

Em uma ditadura militar, lutar pela democracia é crime.

Passado algum tempo desse dia, meu avô voltou para casa extremamente debilitado e doente, sendo que até hoje não se descobriu tudo que ocorreu com ele nos covardes porões da ditadura. Fotos foram rasgadas e documentos escondidos, pois havia um medo corriqueiro que as crianças também pudessem acabar presas.

A mitigação de direitos, o crescimento de pensamentos totalitários e a consolidação de uma sociedade intolerante, não está atrelada às leis ou aos códigos da nossa fragilizada democracia. Para que seja possível compreender esse processo, é preciso olhar para trás, ter memória. Lutar pelo direito, sobretudo, é um compromisso histórico.

Por tudo isso que, toda vez que vejo alguém pedir a volta da ditadura militar, lembro daquele dia chuvoso que participei do seminário na Câmara de Vereadores, convidado pela professora de história. Imagino os advogados que ofertaram suas vidas em defesa de presos políticos. Penso no meu avô.

A frase do banner parece ter perdido sentido.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Ato pela Memória e Justiça dos mortos e desaparecidos da Ditadura! // Foto de: Casa Fora do Eixo Minas // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/casaforadoeixominas/6885016062

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