POVOS INDÍGENAS, DIREITO À SAÚDE E O ENFRENTAMENTO DA COVID-19 NA CIDADE DE MANAUS (AMAZONAS)

13/07/2020

Coluna Empório Descolonial / Coordenador Márcio Berclaz

Os povos indígenas residentes nas cidades vivem constante e sistemática negação de direitos associados à sua identidade étnica. Os indígenas em contexto urbano sofrem preconceito institucional e enfrentam diuturnamente entraves para que lhes sejam efetivados os direitos sociais sob a dimensão da especificidade, considerando seus contextos socioculturais, trajetórias societárias e planos de vida.

A falta de acesso, a omissão e inadequação das políticas públicas que poderiam dar suporte aos povos indígenas no enfrentamento do COVID-19 cria um panorama de aprofundamento da situação de vulnerabilidade enfrentadas por esses povos. Os povos indígenas da cidade de Manaus têm enfrentado dois grandes problemas: a falta de ações e programas de saúde específicos e diferenciados, tanto por parte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), sob responsabilidade do governo federal, quanto pelos outros órgãos do Sistema Único de Saúde ligados ao estado e municípios, e a subnotificação da morbidade e mortalidade dos indígenas acometidos pelo COVID-19 na cidade.

Os indígenas da zona urbana de Manaus que se infectaram com o coronavírus não têm recebido atendimento específico, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) por intermédio do Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus (DSEI-Manaus), têm se negado a prestar assistência aos indígenas da cidade. Esta é uma invisibilização deliberada realizada pelo Estado, fruto de uma herança colonialista, que se retrata no colonialismo interno em que políticas públicas aos povos indígenas são marginalizadas, colocadas no final da lista de prioridades

A maior parte dos casos de contágio e óbitos de indígenas da cidade não estão entrando para as estatísticas dos casos de COVID-19 em povos indígenas. Estão sendo computados somente os casos que estão entrando no sistema do Sistema Único de Saúde (SUS) por intermédio da SESAI, com raras exceções quando são registrados os casos que ocorrem na cidade. Tamanho é o preconceito institucional com os indígenas na cidade que nem na morte lhes é reconhecida a etnicidade.

Diante disso este artigo tem como objetivo descrever o panorama de contágio e de enfrentamento do COVID-19 pelos indígenas na cidade de Manaus e dar visibilidade às violações de direito e as reivindicações dos indígenas urbanos na capital amazonense, pontuando a responsabilidade do Estado no provimento de serviços de saúde específicos aos povos indígenas.

 

1. COVID-19 EM POVOS INDÍGENAS: SUBNOTIFICAÇÃO E DESASSISTÊNCIA AOS INDÍGENAS EM CONTEXTO URBANO

De acordo com os dados oficiais da SESAI, até o dia 18 de junho de 2020, 3740 indígenas contraíram o Covid-19 e 111 chegaram a óbito pelo coronavírus. Indígenas de todo o país estão sendo afetados pelo coronavírus. Dos 34 DSEIs existentes, apenas os distritos do Araguaia, Cuiabá e Vilhena ainda não apresentam casos confirmados e as regiões com mais casos são o dos DSEIs Alto Solimões; Maranhão; Guamá-Tocantins; Ceará; Alto Rio Negro; Amapá e Norte do Pará (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).

Entretanto, as informações apresentadas pela SESAI são subnotificadas e não ilustram a real perda dos povos indígenas em virtude do coronavírus. A Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB) tem monitorado o contágio através da plataforma “Quarentena Indígena” e traz dados mais realistas de contágio a partir da consolidação das informações obtidas junto às organizações indígenas locais e regionais.

Para o dia 18 de junho, a APIB contabilizou 6352 casos de COVID-19 em indígenas e 301 mortes. Um número quase 3 vezes superior de mortes que as contabilizadas pelas estatísticas oficiais da SESAI (APIB, 2020).

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) tem monitorado os casos na região amazônica e também tem demonstrado a subnotificação e invisibilização dos casos de COVID-19 em indígenas por parte da SESAI e do Ministério da Saúde.

No dia 15/06/2020 os dados dados levantados pela COIAB indicavam que 3662 indígenas testaram positivo para o coronavírus; mas apenas 2219 indígenas foram contabilizados nas estatísticas oficiais dos DSEIs da região. Os 1443 casos não contabilizados pela SESAI foram levantados com lideranças indígenas, profissionais de saúde indígena e organizações da rede da COIAB. (COIAB, 2020a). Essa discrepância existe pelo não reconhecimento da etnicidade dos indígenas que estão em contexto urbano pelo Ministério da Saúde.

As figuras a seguir evidenciam a variação no tempo dos casos confirmados e óbitos de indígenas por COVID-19 na amazônia brasileira. Apontam: i) dados do Ministério da Saúde; ii) casos e mortes subnotificados, que não foram contados como pacientes indígenas em dados oficiais, mas foram propostos em conjunto pela COIAB, organizações e líderes indígenas. iii) Estimar o total de casos e óbitos.

Figuras 1 e 2 - Casos confirmados e óbitos de indígenas com COVID-19

Fonte: COIAB, 2020b

A assessora política da COIAB, Valéria Paye, do povo Kaxuyana, no Pará, explica que desde o início da nova pandemia de coronavírus, acompanhou a coleta de dados de 25 DSEIs com incidência na Amazônia brasileira para monitorar a relação entre o novo vírus e os povos indígenas. (COIAB, 2020a).

Após o lançamento dos boletins informativos, a COIAB observou a diferença no conteúdo dos boletins e nos relatos das lideranças e dos indígenas da área da saúde. Havia diferenças entre os casos relatados pelos povos indígenas e os dados da SESAI, uma vez que os indígenas residentes na cidade não estavam sendo inseridos nesses dados (COIAB, 2020a).

Os indígenas que iniciam o atendimento pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) - através da solicitação de resgate ou encaminhamento do agente de saúde indígena ou  do atendimento nos polos base de saúde indígena (localizados em sua maioria nas terras indígenas) - estão sendo contabilizados como indígenas e suas informações relacionadas ao coronavírus estão sendo consolidadas nas bases da SESAI.

A maioria dos indígenas que vive em áreas urbanas não têm sua etnicidade considerada nos registros, entram para os boletins epidemiológicos como não indígenas. Isso se deve a duas questões: a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) se recusa a fornecer ações de saúde para indígenas nas áreas urbanas, a despeito de sua responsabilidade legal, e não há registro adequado dos indígenas que acessam os serviços de saúde diretamente através do SUS[1] (pelas unidades básicas de saúde, atendimento emergencial em hospitais, ou outras portas de entrada vinculadas aos estados e municípios e não à SESAI).

Marcivana Paiva, do povo Sateré-Mawé, atual coordenadora financeira da COPIME ressaltou a gravidade do não reconhecimento étnico dos indígenas da cidade por parte das instituições estatais, fato que se materializa na negação dos direitos às políticas públicas específicas, notadamente no campo da educação e da saúde.

Pontuou ainda a extrema indignação com que os povos indígenas de Manaus têm recebido as informações sobre o acometimento dos indígenas pelo COVID-19 na capital amazonense. Estão indignados, pois encampam uma luta cotidiana para o reconhecimento da etnicidade e acesso às políticas públicas específicas em Manaus e nem mesmo quando vêm à óbito pelo COVID-19 no contexto de pandemia lhes é reconhecida a etnicidade nos registros. Afirma que desta forma: “mata duas vezes, morre o físico e morre o cultural” (PAIVA, 2020a, grifo nosso).

A falta de informações sobre o reconhecimento da identidade étnica na vigilância de coronavírus e as subnotificações violam o direito à memória, evidenciando a invisibilização de identidades coletivas e as desigualdades no acesso aos sistemas de saúde.Ângela Kaxuyana, do povo Kaxuyana, afirma: “Não estamos falando apenas de dados, mas de nossas vidas” (COIAB, 2020a, grifo nosso).

O monitoramento em tempo real da distribuição espacial e temporal do contágio é importante para o planejamento qualificado de ações de prevenção - como instauração de barreiras, fornecimento de alimentos e de equipamentos de proteção individual - para promoção de ações de assistência em saúde e para justificar investimentos na atenção em saúde indígena. Informações sobre a dinâmica de contágio e mortalidade são essenciais para compreender e mitigar o impacto do COVID-19 aos povos indígenas (POWER, 2020).

Em Manaus a situação é preocupante, a capital amazonense é a cidade que registra o maior número de indígenas em contexto urbano e diversos povos e comunidades indígenas que estão na cidade não têm acesso às ações e serviços de saneamento prestados pela SESAI.

Um levantamento de domicílios indígenas no contexto urbano de Manaus-AM realizado em 2019 pela Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME[2]) traz o total de 5.920 moradores indígenas[3] em 1377 unidades domiciliares visitadas. Destaca-se, na capital amazonense, a presença do povo Kokama com 1441 pessoas, o povo Mura com 784 e o povo Sateré com 767, sendo os povos com maior população na área urbana da capital.

Marcivana ressaltou que Manaus foi construída sobre território sagrado para os povos indígenas e que há registros arqueológicos da presença dos povos originários que tem mais de 700 anos. Ela pontuou a necessidade do reconhecimento da identidade étnica dos indígenas da cidade, ressaltando que a relações culturais e com os territórios se mantém mesmo com os movimentos migratórios para a cidade: “o indígena sai do território mas ele leva seu território no corpo” (PAIVA, 2020, grifo nosso).

Os indígenas na cidade não são atendidos pela SESAI e também não encontram atendimento específico e diferenciado prestado pelo SUS, tendo de enfrentar o preconceito institucionalizado. Marcivana Paiva, do povo Sateré-Mawé, coordenadora financeira da Copime, destaca que indígenas Manaus, mesmo ao apresentarem sintomas do COVID-19, têm receio de ir aos hospitais da capital e serem mal atendidos, preferindo iniciar o tratamento em casa com a medicina tradicional (FARIAS, 2020).

Ao ver os sintomas de COVID-19 persistirem mesmo após o uso da medicina tradicional, quando superam o receio de ir aos prontos-socorros nem sempre são conseguem ser atendidos. Muitas vezes, chegando a esses locais eles são encaminhados a procurar órgãos da SESAI, como a Casa de Saúde do Índio (CASAI), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) ou outras instituições que trabalham com a saúde dos povos indígenas. Dagoberto Azevedo Tukano relata que uma vez procuradas tais instituições muitas vezes os indígenas que estão em Manaus não são atendidos, sob a alegação de que são ex-aldeados e que vivem na cidade (NEAI, 2020).

A falta de planejamento é um problema para os indígenas: não existe um plano de contingência especial para que os indígenas, residentes em Manaus, sejam assistidos de forma correta. Não há preparo prévio dos hospitais não-especializados e os hospitais especializados em saúde indígena, uma vez que estes não conseguem ter acesso a ambos.

Um exemplo claro da falta de preparação do Estado para com indígenas na cidade é o caso do Julio Cesar, do povo Tatuya, morador do baixo rio negro, este veio a Manaus-AM para fazer uma cirurgia e precisou voltar para acompanhamento do tratamento, visto que estava tendo sangramentos; chegando a Manaus novamente, foi atendido no Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto e quando recebeu alta não podia voltar a sua comunidade, deveria ficar em observação por quatorze dias para verificar se estava infectado com o novo coronavírus. De acordo com Paiva (2020), Julio não conseguiu atendimento no DSEI a princípio, alegaram que ele era indígena desaldeado e o município também se negou a assisti-lo; Julio ficou na porta do Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto sem saber pra onde ir. A FUNAI tomou providências após o ocorrido, onde o DSEI e a SESAI receberam e acompanharam Julio.[4]

Sob a orientação dos povos indígenas, a saúde diferenciada está diretamente relacionada ao artigo 231 da Constituição Federal, onde é estabelecido que sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, sejam reconhecidos (BRASIL, 1988). Partindo desse dispositivo, os indígenas têm direito de usar a medicina tradicional quando acharem necessário. Marcivana explica que não existe uma política de respeito à medicina tradicional, fortalecendo cada vez mais a medicina ocidental dentro das comunidades e afastando os indígenas atendidos de práticas tradicionais. (PAIVA, 2020).

 

2. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO NO PROVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA SAÚDE INDÍGENA

A saúde é um direito fundamental, reconhecido na constituição como um dos direitos sociais mais importantes, tendo destaque no artigo 6º e uma seção específica para tratar do assunto. A carta magna determina que“a saúde é um direito de todos e dever do Estado”, que deve garantir por meio de políticas públicas que assegurem o acesso “universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação” da saúde, conforme artigo 196 da Constituição Brasileira (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Deve ser exercida por todos os entes federativos como competência comum (artigo 23, inciso II) de forma descentralizada, mas integrada em um sistema único de saúde (artigo 198), de acordo com a constituição federal (BRASIL, 1988).[5]

 

2.1 ATENÇÃO DE SAÚDE AOS INDÍGENAS E SUBSISTEMA DE SAÚDE INDÍGENA

As ações e serviços de atenção em saúde para os povos indígenas têm de observar os princípios de universalidade e igualdade sob a dimensão da equidade. O exercício das políticas públicas de saúde têm de estar harmonizadas com os direitos indígenas, atuando de maneira a efetivar nas políticas de saúde os direitos étnicos, identitários, políticos, culturais, territoriais, direito à autodeterminação e a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé e outros direitos relacionados.

Importante ressaltar que o critério de adequação não deve se pautar pelos standards dos órgãos do estado e sim através da perspectiva indígena, que deve ser aplicada às políticas públicas de saúde através da construção de uma relação intercultural pautada pela consulta prévia, livre, informada e de boa-fé. A participação indígena na construção de políticas públicas de saúde tem de ter como orientação o respeito à autodeterminação dos projetos societários dos povos indígenas e deve se efetivar pelo instituto da consulta prévia, livre, informada e de boa-fé[6] para que seja sejam atingidos os critérios de adequação e especificidade (OIT, 1989).

Portanto, para nortear toda a aplicação das normas referentes à saúde indígena e executar as políticas de atenção em saúde para os povos indígenas, deve-se partir de três premissas: A saúde enquanto direito fundamental social e dever do Estado; a necessidade de atenção diferenciada aos indígenas, e respeito ao paradigma intercultural trazido pelo artigo 231 da Constituição Federal e Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho. (BRASIL, 1988; OIT, 1989)

O Sasi-SUS (Subsistema de Atenção à Saúde Indígena - Sistema Único de Saúde) foi estruturado sob administração do governo federal por solicitação do movimento indígena.(GARNELO & PONTES, 2012).O subsistema Sasi-SUS deve funcionar de modo integrado aos outros órgãos do SUS, de forma que os indígenas têm direito aos serviços de saúde prestados tanto pelo subsistema de saúde indígena, quanto por outros órgãos do SUS vinculado aos estados e municípios, incluindo a atenção primária, secundária e terciária.

O Decreto 3.156/1999, que dispõe sobre as condições para a prestação de assistência à saúde dos povos indígenas traz como uma das diretrizes o direito dos indígenas de ter acesso às ações de nível primário, secundário e terciário do Sistema Único de Saúde - SUS (Art. 2º, Inciso VII). Também aponta que é dever da União prestar ações e serviços de saúde indígena e que as ações desenvolvidas pela união não prejudicam as ações desenvolvidas pelos estados e municípios (Art 1º) (BRASIL, 1999b). O judiciário também tem se posicionado nesse sentido[7].

Assim, os indígenas possuem direito de utilização de todo o sistema de saúde SUS, com possibilidade de acesso por duas vias: através das ações e serviços do subsistema de saúde indígena, ofertado pelo governo federal, ou diretamente pelas estruturas municipais e estaduais, que também devem adaptar sua estrutura e organização de acordo com as necessidades dos povos indígenas como disposto no artigo 19-G da Lei 9.836/99 (BRASIL, 1999a).

Entretanto, são raras as iniciativas adotadas pelos entes municipais e estaduais para efetivar os direitos indígenas no âmbito da saúde[8]. Assim, o serviço oferecido por esses entes na cidade não promove a especificidade e por outro lado, a SESAI, por meios dos DSEIs têm se negado a prestar assistência aos indígenas em contexto urbano, reproduzindo uma visão ideológica integracionista e classificação arbitrária entre indígenas aldeados e não aldeados para definir quem tem direito à sua assistência.

Esta visão deve ser superada a partir do direito ao reconhecimento dos povos indígenas posto no artigo 231 constituição federal e do direito de autoidentificação e autodeterminação posto na convenção 169 da organização internacional do trabalho (BRASIL, 1988; OIT, 169). 

A SESAI fundamenta a negação de atendimento aos indígenas em contexto urbano somente na interpretação que fazem do parágrafo único, Art. 2º, do decreto 3156/99, que tem a seguinte redação:

A organização das atividades de atenção à saúde das populações indígenas dar-se-á no âmbito do Sistema Único de Saúde e efetivar-se-á, progressivamente, por intermédio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ficando assegurados os serviços de atendimento básico no âmbito das terras indígenas (Brasil, 1999b)..

A SESAI defende que este dispositivo restringe as ações às terras indígenas demarcadas. Mas em nenhum momento a lei diz o atendimento deve ser exclusivo à esses territórios, apenas ressalta a importância do atendimento nas terras indígenas.

A interpretação inconstitucional feita pela SESAI do art. 2ª, parágrafo único, do Decreto 3.156/99, que levou-os a atender apenas indígenas aldeados, afronta diretamente a dignidade da pessoa humana; o direito à vida; o acesso a redução do risco de doença e outros agravos; a promoção, proteção e recuperação da saúde e o reconhecimento da organização social, costumes e tradições. Todos preconizados na constituição federal. (BRASIL, 1999b; BRASIL, 1988; MPF, 2015).

A nível constitucional, de convencionalidade e legal não há distinção entre indígenas aldeados e em contexto urbano. O direito à saúde diferenciada e específica é uníssono aos povos indígenas, é um direito líquido e certo à todos os indígenas, vinculado à identidade, balizado pelo critério de autoidentificação étnica. O ministro Herman Benjamim, do Superior Tribunal de Justiça destacou:

PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE ATIVA. INDÍGENAS. SAÚDE. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO ODONTOLÓGICO. - É cabível o ajuizamento de ação civil pública para a defesa de quaisquer direitos individuais homogêneos socialmente relevantes. - O Ministério Público é parte ativa legítima para a ação, pois seu objeto não é a defesa de apenas um indígena, mas a prestação da devida assistência odontológica a todo indígena, residente ou não na aldeia. - Ao garantir aos indígenas tratamento médico especializado, a lei não faz qualquer distinção, nem prevê exclusão da assistência à saúde pela FUNASA, de forma que o direito de serem atendidos por aquele órgão independe de estarem aldeados ou não. - Onde o legislador não restringiu não cabe ao intérprete restringir e deve-se dar às normas garantidoras de direitos fundamentais a maior aplicabilidade possível. - Cabe ao poder público a tutela das comunidades indígenas, assegurando-lhes o direito à vida saudável. - Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir. - Apelação improvida. (TRF4, AC 200372020046165, Rel. José Paulo Baltazar Junior, DJ de 05/04/2006)

Visto isso, a União deve prestar saúde especializada indígena considerando as condição identitárias dos povos indígenas, independente de onde esses sujeitos de direito mantêm residência. Assim, o Ministério Público Federal  mostra: “[...] deve ser assegurada a assistência aos indígenas em todo o território nacional, coletiva ou individualmente, inexistindo respaldo para o critério excludente [...]” (MPF, 2015, P. 31).

Desse modo, a negação da atenção aos indígenas residentes na cidade e a divisão entre indígenas aldeados e urbanos é arbitrária e não se sustenta sob os diversos prismas, é inconstitucional, contrária às convenções internacionais, ilegal, ilegítima e imoral. Atenta contra a legalidade, a inviolabilidade do direito à vida, à autodeterminação dos povos indígenas, o respeito à diversidade cultural, a necessidade de reparação histórica e contra os posicionamentos firmados nas instâncias de participação das políticas de saúde indígena[9].

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ineficácia das ações na área da saúde dos indígenas em contexto urbano durante a pandemia do COVID-19 já está causando danos irreparáveis, como a morte de indígenas não-aldeados, lideranças indígenas e a marginalização do cuidado da saúde destes sujeitos de direitos.

Somado a isso, a omissão sistemática das políticas públicas específicas aos povos indígenas residentes na cidade acabam ofendendo direitos individuais, coletivos e sociais diretamente relacionados à dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do direito à vida, configurando um estado de coisas inconstitucionais.

A interpretação sistemática do ordenamento jurídico, a partir da integração das normas constitucionais, as normas de direitos humanos, convenções internacionais e legislação nacional é necessária e demonstra que os indígenas da cidade possuem direito líquido e certo à atenção de saúde diferenciada e específica, que deve ser prestada tanto pela SESAI, como pelos outros órgãos que compõem o Sistema Único de Saúde.

A situação só não tem sido mais dramática devido às organizações indígenas. Elas têm coordenado ações de articulação e informação nas comunidades, campanhas assistenciais aos povos indígenas, ações de cooperação com outras instituições parceiras da sociedade civil, reivindicando direitos e ações adequadas e específicas das políticas públicas estatais para enfrentamento ao COVID-19 e atuado consultivamente junto aos órgãos de planejamento, saúde e assistência social, nas raras ocasiões em que o estado têm aberto espaços de diálogo para o desenvolvimento de ações específicas para os povos indígenas.

 

Notas e Referências

APIB - Articulação dos Povos Indígenas no Brasil. Quarentena Indígena - Casos Indígenas. Disponível em: http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/. Acessado em: 20/06/2020.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

__________. Decreto Nº 3.156, de 27 de Agosto de 1999. Dispõe sobre as condições para a prestação de assistência à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Sistema Único de Saúde, pelo Ministério da Saúde, altera dispositivos dos Decretos nºs 564, de 8 de junho de 1992, e 1.141, de 19 de maio de 1994, e dá outras providências. Brasília, DF, 1999b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3156.htm. Acesso em: 25/05/2020.

__________Lei Nº 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, que "dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências", instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Brasília, DF, 1999a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9836.htm. Acesso em: 25/05/2020.

__________. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO [OIT]. Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes [Convenção 169]. 27 jun. 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 15/05/2020.

COIAB. Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. O Covid19 e a situação emergencial dos povos indígenas na Amazônia brasileira: Contaminações e mortes pelo Coronavírus aumentam a cada dia colocando em grave risco a vida dos nossos parentes. 2020a. Disponível em: https://coiab.org.br/conteudo/1588018616827x701417793354989600. Acesso em: 27/04/2020.

__________. Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. 2020b. Disponível em: https://coiab.org.br/. Acesso em: 15/06/2020.

FARIAS, Elaíze. Coronavírus: Indígenas que vivem na cidade são classificados como “brancos” no Amazonas. Amazônia Real, Manaus, 16 abril 2020. Disponível em:  https://amazoniareal.com.br/coronavirus-indigenas-que-vivem-na-cidade-sao-classificados-como-brancos-no-amazonas/. Acesso em: 22/05/2020.

GARNELO, Luiza; PONTES, Ana Lúcia. Saúde indígena: Uma introdução ao tema. Brasília: Ministério da Educação/SECADI; UNESCO, 2012.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Boletim epidemiológico da SESAI, 18 de junho de 2020. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/.  Acesso em: 19 de junho de 2020.

NEAI. Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena. Entrevista - Mapa da pandemia local: Relatos indígenas sobre o Covid-19 na Amazônia. Disponível em: https://neai.ufam.edu.br/mapa-da-pandemia-local/95-sobrevivendo-na-pandemia-relatos-indigenas-sobre-a-situacao-do-covid-19-no-amazonas.html. Acesso em: 20/04/2020.

PAIVA, Marcivana. Entrevista concedida a Caroline Barbosa Contente Nogueira. Manaus, 30 de abr. de 2020a.

POWER, Tamara; WILSON, Denise; BEST, Odette; BROCKIE, Teresa; BEARSKIN Lisa Bourque; MILLENDER, Eugenia; LOWE, John. COVID‐19 and Indigenous Peoples: an imperative for action. Journal of Clinical Nursing, 2020.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública Nº 0002096-29.2015.4.01.3902. 1ª Vara de Santarém. Santarém, PA, 25 de maio de 2015. Ministério Público Federal. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2016/acao-mpf-saude-indigena-pa-terras-nao-demarcadas-e-indios-nao-aldeados/. Acesso em: 24/05/2020.

[1]Desde 2017 existe uma portaria do Ministério da Saúde determinando que seja preenchido o campo “raça/cor” nos serviços de atenção à saúde, a partir da autodeclaração do usuário de saúde entre as classificações definidas pelo IBGE: branca, preta, amarela, parda ou indígena (Portaria MS/GM 344/2017). Contudo, esse registro têm sido ineficaz. Alguns fatores podem ter influenciado nessa ineficácia, como: i) pressão do preconceito sofrido pelos indígenas; ii) desrespeito à autodeclaração, tendo o preenchimento do campo efetuado pelo funcionário responsável sem o questionamento da autoidentificação; iii) não preenchimento do campo; iv) adoção dos critérios restritivos do IBGE, que são colonialistas e baseados no colorismo.

[2] A COPIME é a organização indígena mais representativa da região de Manaus e entorno, COPIME é uma associação que congrega 47 organizações indígenas de base da cidade de Manaus e 12 organizações do Entorno, com aproximadamente 3000 associados. Sua área de atuação abrange 8 municípios: Manaus, Careiro da Várzea, Iranduba, Itacoatiara, Manacapuru, Novo Airão, Presidente Figueiredo e Rio Preto da Eva.

[3] O levantamento não contabilizou os indígenas Warao.

[4] Seção Judiciária do Amazonas. 3ª Vara Federal Cível da SJAM. PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL Nº 1006916-70.2020.4.01.3200, Julio Cesar Prado Godinho, Matheus Antunes Oliveira, Fundação Nacional do Índio, União Federal, Procuradoria da República no Estado do Amazonas  (fiscal da lei), 20 de abr. de 2020. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/listView.seam. Acesso em: 24 de mai. de 2020.

[5] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

[6] Fundamentado no princípio geral do reconhecimento trazido pelo artigo 231 da Constituição Federal  de 1988 e referenciado no Art. 6º da Convenção Nº 169 da OIT (BRASIL, 1988; OIT, 1989).

[7] Importante destacar que este subsistema não substitui o Sistema Único de Saúde. Ao contrário, é complementar a este, dedicando-se, por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (mencionados no art. 19-G, § 1º, da Lei Nº 9.836/99), ao atendimento primário e de baixa complexidade. Os atendimentos de média e alta complexidades permanecem pelo no SUS (Decisão - TRF1 - 22/03/2017 - Processo N° 0010368-47.2016.4.01.3200).

[8] Como um dos poucos exemplos podemos citar a destinação de uma ala específica para indígenas no hospital Nilton Lins, em Manaus, para o combate ao coronavírus. A ala foi inaugurada no dia 26 de março de 2020. Os quartos foram adaptados para utilização de redes para que os indígenas pudessem dormir, pois havia grande dificuldade de alguns povos para adaptação nos leitos hospitalares e foi disponibilizada uma sala para que os sujeitos sociais de cura dos povos indígenas possam atuar. Estas medidas atendem alguns pontos críticos solicitados por lideranças meio a emergência do combate ao COVID-19, mas ainda carece de um processo de consulta para a efetiva adaptação das necessidades aos povos indígenas;

[9] A 5ª Conferência Nacional de Saúde foi realizada em dezembro de 2013. A declaração resultante da conferência traz a preocupação e reivindicação do atendimento aos indígenas da cidade. Também foram aprovadas 2 moções que apontam a necessidade do atendimento da SESAI aos indígenas da cidade (SESAI, 2014).

 

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