Positivismo jurídico excludente: um guia rápido

27/07/2016

Por Bruno Torrano – 27/07/2016

Hoje a coluna será um pouco mais pesada. O direito é um fenômeno complexo – e assim deve ser tratado. Pela qualidade dos leitores que tenho, sei que isso não será motivo de desânimo. O juspositivismo, você já deve saber, não é “uma teoria”, e sim uma tradição de pensamento bem heterogênea. Abaixo, formularei as principais teses[1] de uma das correntes dessa tradição: o positivismo jurídico excludente (anti-incorporacionismo, positivismo jurídico radical ou hard facts positivism). Não me limitarei, apenas, aos argumentos de Joseph Raz – considerado seu mais destacado defensor –, mas também àquilo que tem sido debatido por diversos outros jusfilósofos contemporâneos.

Preliminarmente, é necessário esclarecer: toda a construção teórica do hard facts positivism parte da premissa metodológica de que existe uma distinção relevante – e, até certa medida, psicologicamente controlável – entre valorações epistêmicas e valorações morais. As primeiras designam um estado normativo desejável na pesquisa teórica, como simplicidade, clareza, coerência, adequação com as evidências, consiliência, etc. Valores morais, por sua vez, indicam quais são as melhores ações, os melhores compromissos, as obrigações dos indivíduos, enfim, o que deve ser feito do ponto de vista ético. O positivismo jurídico excludente, tendo pretensões meramente descritivas, afirma que a determinação da existência e do conteúdo do direito nunca demanda juízos de aprovação ou desaprovação moral. Em termos práticos, isso significa dizer que, por exemplo, uma feminista pró-aborto pode descrever, sem concordar ou sem estar disposta a obedecer, que, do ponto de vista jurídico (que é algo diverso de seu ponto de vista pessoal[2]), a interrupção precoce da gravidez é proibida, salvo em exceções específicas. Conforme sintetizou Brian Leiter, “normas epistêmicas, sozinhas, são suficientes para demarcar o fenômeno jurídico”[3].

Vejamos, então, as principais teses do positivismo jurídico excludente.

(i) O direito é um sistema normativo institucionalizado: o principal traço caracterizador do direito[4] é a existência de instituições, em sentido amplo, encarregadas de aplicar regras de conduta a determinadas pessoas e, dessa forma, pacificar disputas sociais – sejam essas regras leis promulgadas, sejam elas normas consuetudinárias, espontaneamente surgidas na convivência social.

(ii) O direito é um sistema normativo convencional: o direito é um tipo de convenção essencialmente constitutiva[5], destinada a estabelecer, a partir de um sistema de expectativas mútuas[6], quais padrões de comportamento valem a pena serem seguidos de forma vinculante. Convenções existem se, e somente se, (a) todos se conformam a uma regularidade de comportamento; (b) todos esperaram que todos se conformem a essa regularidade de comportamento; (c) todos preferem se comportar da maneira convencional por se tratar de uma ferramenta apropriada para o equilíbrio de ações[7].

(iii) O direito reivindica autoridade e supremacia: O direito, além dos seus traços autoritativos factuais (autoridade de facto), reivindica autoridade moral legítima (autoridade de jure). O direito avoca agir por meio de razões protegidas, capazes de afastar quaisquer razões em contrário (morais, políticas, econômicas, etc.) que seus destinatários tenham para agir de outra maneira. Mais do que isso, o direito não pretende apenas o caráter de autoridade, mas também de autoridade suprema[8].

(iv) O direito objetiva resolver conflitos políticos e morais: Um dos principais objetivos do direito é otimizar a convivência em circunstâncias específicas, nomeadamente quando formas não-jurídicas de regulação, coordenação e monitoração de condutas mostram-se demasiadamente custosas ou ineficientes diante de situações de conflito e de dúvidas insuperáveis sobre direitos, obrigações, propriedade, legitimidade do poder público, níveis de tributação, etc.

(v) O direito é um sistema normativo planejador: a atividade jurídica é, ao menos em três sentidos, uma atividade de planejamento compartilhado: primeiro, porque cria normas que representam estados de comportamento comuns, ou seja, abstratamente previstas, em princípio, para todos os destinatários da norma; segundo, porque os planos jurídicos regulam a comunidade por meio de políticas gerais; e, terceiro, porque o planejamento conforma a sociedade por intermédio de padrões normativos públicos[9].

(vi) O direito visa fazer diferença prática: o direito é um sistema normativo destinado a realizar alterações na estrutura ou no conteúdo das deliberações psicológicas daqueles a quem se dirige. Essa condução do comportamento humano ocorre de duas maneiras. A condução epistêmica revela uma situação em que a pessoa compreende o que uma regra jurídica determina, mas não necessariamente age de acordo com essa regra em razão dela. Na condução motivacional, por outro lado, o agente age conforme uma crença (belief), a saber, a de que a regra é um standard legítimo de conduta e deve ser seguido.

(vii) O direito é um sistema normativo baseado em fontes sociais: A tese da fonte social (source thesis) foi bem resumida por Andrei Marmor: “todo o direito é baseado em fontes, e qualquer coisa que não seja baseada em fontes não é direito”[10]. Todas as teses acima citadas servem de base para afirmar que o exame da juridicidade de uma norma é uma questão de saber se essa norma preenche certos testes de cunho factual. Sendo assim, “dúvidas e discussões sobre a validade do direito são resolvidas em questões factuais, em questões suscetíveis de determinação objetiva, acerca das quais as visões políticas e morais de uma pessoa são essencialmente irrelevantes”.[11]

Os argumentos acima delineados, que não são exaustivos, levam a algumas inferências acerca da natureza do direito. São elas:

(i) O direito possui conexão fraca com a moral positiva: Segundo Jules Coleman, “a tese da separabilidade [entre Direito e Moral] não faz, de modo algum, parte do positivismo [jurídico]”[12]. A afirmação, embora polêmica, é exemplificada pelo posicionamento de Joseph Raz. Para o autor, a reivindicação de autoridade formulada pelo direito detém, necessariamente, natureza moral. E isso em razão de seu conteúdo: trata-se de uma reivindicação feita pelo Direito para garantir direitos e impor deveres às pessoas, com a exclusão de sistemas normativos concorrentes e de julgamentos individuais respeitantes à própria conduta[13].

(ii) O direito é limitado: por ser um sistema normativo baseado exclusivamente em fontes fáticas, o direito é uma técnica social específica incapaz de regular, em dada sociedade, todos os aspectos da convivência. Seu funcionamento prático pressupõe a cooperação interdisciplinar de argumentos morais, econômicos, políticos, sociológicos, científicos, etc. Ademais, os limites da condição humana e a natureza da linguagem levam à existência de diversas indeterminações que o direito deixa para serem resolvidas por atos oficiais futuros (atos normativos do Poder Executivo e desenvolvimento jurisprudencial do Poder Judiciário).

(iii) O direito é um sistema aberto: um sistema normativo aberto possui normas cujo propósito é conceder força vinculante a normas que não lhe pertencem[14]. Quando se esgotam os fatos sociais especiais que determinam o Direito, não há sob os pés do juiz solo fértil, arado por normas identificáveis por seu pedigree, que indiquem qual a resposta legalmente correta. Nesses casos, não há nada que impeça que o sistema jurídico obrigue ou autorize esse mesmo juiz a aplicar uma série de padrões extrajurídicos, como princípios morais, princípios econômicos, argumentos consequencialistas, etc.

(iv) O direito é moralmente falível: o direito é um meio institucionalizado pelo qual os homens podem realizar tanto o Bem quanto o Mal. Como bem afirmava Herbert Hart, “enquanto os seres humanos puderem obter cooperação suficiente de alguns para lhes permitir dominar outros homens, usarão as formas do direito como um de seus instrumentos. Homens maus criarão normas perversas, que outros farão cumprir”.[15]

(v) O direito maneja confiança: em atividade escalonada, o direito capitaliza ou restringe a confiança depositada no caráter e na competência daqueles que deverão concretizar ou especificar as normas jurídicas, determinando, assim, o grau de discricionariedade admitido nos atos oficiais futuros. O Constituinte originário atribui ao legislador ordinário um âmbito de conformação maior ou menor, a depender da matéria; por sua vez, o legislador ordinário deposita maior ou menor confiança no futuro aplicador do direito, seja ele um funcionário da Administração Pública, seja ele um Magistrado.

Uma observação final (muito) necessária: a área abrangida pela proposta teórica do positivismo jurídico excludente é, tão-somente, a área relativa à natureza do direito. Sendo assim, tudo o que foi exposto acima tem a pretensão de ser o resultado de um esforço meramente conceitual. Nada tem a dizer, por si só, quanto a problemas práticos relativos, por exemplo, ao ativismo judicial ou à justificação moral dos sistemas jurídicos. Afirmar que uma lacuna existe é uma coisa; afirmar que ela deve ser preenchida deste ou daquele modo é outra (teoria da decisão). Afirmar que o direito demanda X em um caso concreto é uma coisa; afirmar que o cidadão ou o magistrado têm, respectivamente, o dever de obedecer ou de aplicar X, é outra.


Notas e Referências:

[1] As teses do positivismo excludente são destrinchadas no meu livro TORRANO, Bruno. Do fato à legalidade: introdução à teoria analítica do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Em outro trabalho, utilizo-as como ponto de partida conceitual para defender, a partir de uma concepção específica de democracia, o positivismo normativo ou ético. Cf. TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[2] Cf. meu artigo, na Conjur, intitulado “O Direito não é o que você pensa ser justo”, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-11/bruno-torrano-direito-nao-voce-pensa-justo .

[3] LEITER, Brian. Naturalizing jurisprudence: essays on American legal realism and naturalism in legal philosophy. New York: Oxford University Press, 2007, p. 168.

[4] RAZ, Joseph. The Authority of Law. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2009, p. 42.

[5] Cf. MARMOR, Andrei. Exclusive legal positivism. In: Coleman, Jules; Shapiro, Scott (orgs.). The Oxford handbook of jurisprudence and philosophy of Law. New York: Oxford University Press, 2004, p. 108.

[6] LEWIS, David. Convention: a philosophical study. Cambridge: Harvard University Press, 1969, p. 25.

[7] Idem, ibidem, p. 42.

[8] Segundo RAZ, o direito “reivindica autoridade para proibir, permitir ou impor condições na constituição e na operação de todas as organizações normativas a que pertencem os membros sujeitos à sua jurisdição” (RAZ, Joseph. Practical reason and norms. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 151). Nesse sentido, a pretensão de supremacia constitui uma reivindicação fraca, e significa, muito simplesmente, que a peculiaridade do direito é a de poder promulgar, em relação a todas outras instituições normativas concorrentes, regras exclusionárias permissivas.

[9] SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011. p. 203.

[10] Cf. MARMOR, Andrei. Ob. Cit., p. 104.

[11] RAZ, Joseph. The authority of Law..., ob. cit., p. 152.

[12] COLEMAN, Jules. Beyond Inclusive Legal Positivism. In: Ratio Juris, Vol. 22, No. 3, September 2009 (p. 359–94), p. 383.

[13] RAZ, Joseph. The Argument from Justice, or How Not to Reply to Legal Positivism. In: PAVLAKOS, George (org.). Law, Rights and Discourse: The Legal Philosophy of Robert Alexy, Hart Publishing, 2007, p. 17-36.

[14] RAZ, Joseph. Practical reason and norms…, ob. Cit., p. 153.

[15] HART, Herbert. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 271.


Bruno Torrano. Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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