Positivismo jurídico descritivo e positivismo jurídico normativo. Você sabe qual é a diferença?

11/01/2017

Por Bruno Torrano – 11/01/2017

Muitas críticas direcionadas por teóricos brasileiros ao positivismo jurídico erram o alvo por não se atentarem que a expressão “positivismo jurídico” não denota apenas toda uma tradição de pensamento dentro da qual se digladiam diversos teóricos que discordam entre si, como também é ambígua. Minha pretensão, neste ensaio, é tentar fazer com que você compreenda apenas uma dessas ambiguidades: a distinção entre positivismo descritivo (ou conceitual) e positivismo ético (normativo, ou ideológico).

A primeira coisa a ser dita é a seguinte: um jurista que brada “Sou positivista!” na acepção descritiva não está dizendo muita coisa. Ele não está afirmando que o direito posto é legítimo; ele não está afirmando que os magistrados devem decidir deste ou daquele jeito (teoria da decisão); ele não está afirmando que tal ou qual lei deve vir a ser aprovada; ele não está consignando qual é seu ponto de vista pessoal sobre questões filosóficas e morais. O jurista imaginário, em geral, compromete-se, apenas, com teses metodológicas e filosóficas relativas à alegada possibilidade de descrição de fatos sociais e de julgamentos morais já realizados (descritibilidade de práticas normativas[1]). Sustenta, nessa linha, o apego a valores epistêmicos que viabilizem a determinação objetiva dos fatos que, em última análise, determinam aquilo que “é” o direito. Embora haja certa divergência, entre os próprios positivistas, quanto ao alcance dessa metodologia – desde aqueles que a restringem à questão da validade do direito até aqueles que a expandem às questões da normatividade e do conteúdo do direito –, a premissa compartilhada é no sentido de que saber o que o direito “é” dispensa juízos de aprovação ou desaprovação moral. A teoria do direito tem caráter meramente descritivo. Julgamentos sobre o que é socialmente desejável são temas para filosofia moral ou política.

Portanto, o positivismo descritivo – que, na doutrina contemporânea, abrange tanto o positivismo excludente quanto o positivismo includente –, busca organizar nossas intuições compartilhadas de casos possíveis e, em empreendimento analítico, apresenta-nos argumentos conceituais sem carga moralmente valorativa: o direito é, por natureza, planejador; o direito é, por natureza, institucionalizado; o direito, por natureza, reivindica autoridade moral; o direito, por natureza, é convencional; o direito, por natureza, é limitado; o direito, por natureza, pretende fazer diferença prática nas deliberações de seus destinatários; o direito, por natureza, é um sistema aberto; o direito, por natureza, possui diversas lacunas a serem resolvidas no momento da aplicação; o direito, por natureza, estabelece um “ponto de vista institucionalizado” que podemos descrever sem concordar; e assim por diante.

O positivismo ético, normativo ou ideológico, nos termos em que entendido pela doutrina contemporânea (o que exclui, aqui, aquilo que Norberto Bobbio entendia como “positivismo ideológico”), é coisa muito diversa. Trata-se de uma teoria do direito mais abrangente, expressamente comprometida, desde o início, com ideais morais e políticos considerados imprescindíveis para a preservação de um ambiente democrático. A doutrina do positivismo normativo não pretende, portanto, apenas estabelecer os critérios a partir dos quais podemos dizer que uma norma é, genuinamente, “jurídica” – ou eventual acesso por implicação (entry by entailment) dessa afirmação. Para eles, o posicionamento moral e político também integra aquilo que se espera de uma teoria do direito. Esta possui, igualmente, um viés normativo.

Peguemos um exemplo. Quando Joseph Raz, positivista descritivo, afirma que é característico do sistema jurídico pretender agir por meio de razões protegidas capazes de precluir as razões primárias de seus destinatários, ele entende tratar-se de uma afirmação conceitual sobre um critério que qualquer sistema normativo deve preencher caso queira ser considerado verdadeiramente jurídico. Ao contrário, Tom Campbell, positivista normativo, vai muito além e, partindo desse ensinamento raziano, sustenta ser “[moralmente] bom para uma sociedade ter sistemas de regras mandatórias específicas que precluam indivíduos de realizarem julgamentos próprios sobre certas questões respeitantes a suas próprias condutas”. Acrescenta, ainda, que a tarefa justificatória da democracia relaciona-se ao reconhecimento da utilidade social e da significância moral de regras sociais compartilhadas, “em oposição à irrestrita autonomia individual ou ao poder discricionário dos oficiais (do sistema, como os magistrados)”[2]. Essa crucial diferença, dentre muitas outras coisas, faz com que positivistas normativos sejam enquadrados como ferrenhos opositores do ativismo judicial, enquanto positivistas descritivos podem não ser.


Notas e Referências:

[1] Joseph Raz não é adepto da tese da descritibilidade das práticas normativas.

[2] CAMPBELL, Tom; GOLDSWORTHY, Jeffrey (eds.). Judicial Power, Democracy and Legal Positivism. Louth: Darthmouth, 2000, p. 6.


Bruno Torrano. Bruno Torrano é Mestre em Filosofia e Teoria do Estado, Pós-graduado em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, Pós-graduando em Direito Empresarial, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça. Autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”. .


Imagem Ilustrativa do Post: the law // Foto de: Pawel Loj // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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