Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
Nos estertores de 2018, a PGFN editou Portaria que muito interessa ao contencioso tributário brasileiro, especialmente aos contribuintes que lutam para se manter quites com suas obrigações tributárias federais, evitando atropelos. Trata-se da Portaria nº 742, de 21/12/2018, que dispõe sobre negócios jurídicos processuais. O preâmbulo da norma já traz relevantes limitações ao indicar que tais negócios se aplicarão apenas “em sede de execução fiscal” e “para fins de equacionamento de débitos”.
Diante do referido ato normativo, o objetivo destas linhas é suscitar críticas às suas colocações, especialmente quanto às suas limitações, que se entendem demasiadas. É claro que o tema não deve passar sem comemorar alguns passos evidentes na direção correta[1]: elogie-se o esforço para instalar, ainda que timidamente, procedimentos que viabilizem os negócios jurídicos processuais em matéria tributária. Devem ser louvadas as iniciativas que racionalizam o processo judicial, gerando benefícios a ambos os interesses envolvidos, como já vinha sendo sinalizado na Portaria nº 360/2018 e nos arts. 8º e 38 da Portaria nº 33/2018.
Trata-se de correto passo em direção ao consagrado pelo CPC/2015, que trouxe em seu art. 190 uma cláusula geral de negociação processual, ampliando o rol já existente no CPC/73 com a possibilidade de se negociar sobre tudo aquilo que esteja dentro do espaço de disponibilidade outorgado pelo legislador, vedada negociação com objeto ilícito ou sobre direito indisponível. Em resumo, outorga às partes poder que já era outorgado ao juiz, de regular ou modificar o procedimento, adequando-o às particularidades da sua demanda.
Já houve quem utilizasse a supremacia e indisponibilidade do interesse público para afirmar ser vedado à Fazenda Pública a realização de negócios jurídicos processuais. Trata-se, porém, de equívoco hoje já superado pela melhor doutrina processual[2]-[3], sendo certo que mesmo eventual indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual[4] pelo ente público. Ao contrário, a Fazenda Pública é autorizada a celebrar convenções processuais, assim como já o faz firmando negócios jurídicos em geral, não havendo diferença ontológica entre estes e aqueles, devendo, apenas, observar os requisitos que já observa para prática de todos os seus atos (autoridade competente, objeto adequado, finalidade legítima, motivos razoáveis e formas transparentes e controláveis) [5], além dos requisitos próprios de todos os negócios jurídicos (agente capaz e legitimado, objeto licito, possível e determinável e forma prescrita ou não defesa em lei).
Tendo isso sido dito, contudo, cabe avançar.
A principal crítica que pode ser feita à Portaria 742/2018 diz respeito às suas demasiadas limitações. Como colocado acima, seu preâmbulo anuncia que a norma disciplina negócios jurídicos processuais “em sede de execução fiscal”. O usuário infrequente das lides tributárias poderá observar esta colocação como ordinária – afinal, pensará, é na Execução Fiscal que se desenvolve o litígio tributário. Mas esta compreensão não deve prevalecer.
É que a tipologia processual tributária envolve algumas espécies distintas de procedimentos judiciais, sendo a Execução Fiscal apenas um deles – o exacional. Ao lado, convive especialmente com os respectivos Embargos e com as Ações Anulatórias (ou Declaratórias ou Mandados de Segurança) manejados pelo particular (antiexacionais). É justamente na interrelação entre eles que nascem as principais dificuldades ao lado particular da relação, e onde os benefícios da negociação podem ser relevantes e efetivos.
Basta recordar que, em muitos casos, é o contribuinte quem dá início ao debate judicial, ajuizando a Ação Anulatória, requerendo a prestação jurisdicional e até mesmo ofertando bem em garantia, para antecipação da penhora. A aplicação da Portaria apenas a Execuções Fiscais tornaria qualquer negócio jurídico processual inaplicável a esta relação processual – perdendo a oportunidade de disciplinar vantagens a ambos os polos da relação jurídico-tributária.
Justamente na zona de penumbra entre uma relação processual e outra (Execução x Anulatória), carente de previsão legal e regida quase que integralmente por jurisprudência e casuística (e muitas vezes voluntarismo e decisionismo), que uma norma como a referida seria deveras útil.
Assim, é quase imperdoável que a norma, que se dirige diretamente ao contencioso tributário, não reconheça sequer a necessidade de encampar não apenas o feito executivo, mas as demais relações processuais instauradas em seu redor. Mas prossiga-se.
As limitações excessivas da norma, que acabam lhe amputando a função, estão refletidas no §2º de seu art. 1º, quando traz um numerus clausus de temas sobre os quais o negócio jurídico pode versar. Sem dúvidas que aquelas hipóteses são um avanço (especialmente inciso I, calendarização e II, garantias), mas deixam de fora diversas outras hipóteses, comuns na prática do processo tributário, e que por isso mesmo empobrecem em demasia o uso destes negócios. Podem-se citar como exemplos de temas, passíveis de negociação, deixados de fora do texto:
- A calendarização das demais ações tributárias, como os Embargos e a Ação Anulatória – assim permitindo a racionalização temporal de toda a relação, não apenas nos limites apertados da ação exacional;
- As provas a produzir (inclusive prova emprestada) – reduzindo tempo e despesas quanto à necessidade, forma, pontos controvertidos, entre outros temas;
- O foro de litígio – possibilitando concentração de ações em uma comarca em casos, por exemplo, onde uma mesma empresa tenha diversos estabelecimentos dentro do mesmo Estado, de maneira a permitir que credor e devedor litiguem onde lhes for mais proveitoso;
- A conexão de ações;
- A agregação, em mesma Execução Fiscal (e mesma Anulatória) de diferentes CDAs, além do tempo de sua apresentação – racionalizando o debate judicial, muitas vezes tornado hercúleo pelas entrecruzamentos não coincidentes de diferentes formas de debate;
- A forma de registro de garantia para fins de obtenção e, especialmente, renovação de Certidão de Regularidade – observando a um só tempo o interesse da Fazenda de manter o débito tributário garantido e o interesse do contribuinte de sempre conseguir sua Certidão;
- A renúncia à apresentação de Embargos à Execução Fiscal, quando já existente Ação Anulatória tratando do mesmo tema – o que é, embora racional, frequentemente impossível diante da necessidade do contribuinte de cumprir o prazo dos Embargos, sob pena de aplicarem-se os efeitos jurídicos de deixar transcorrer in albis o prazo;
- A baixa de registros em CADIN, SERASA e Protestos, frequentemente dessincronizada, gerando prejuízos diversos e dezenas de horas perdidas;
- A liberação, quando atendido o interesse da Fazenda, do arrolamento ou da indisponibilidade em Cautelar Fiscal – ambos que, dada a limitação à negociação em Execução, estariam vedados no texto atual;
Todas estas são hipóteses rotineiras do contencioso tributário, que possibilitam buscar conciliar interesses opostos em prol de uma racionalidade na prestação jurisdicional, e que foram ignoradas na norma em comento.
Vistas as limitações implícitas (aquilo que a norma deixou de fora), refiram-se ainda algumas limitações explícitas: parece-nos tormentosa a decisão do art. 1º, §1º, da referida Portaria, de estipular vedação de que os negócios processuais impliquem “renúncia às garantias e privilégios do crédito tributário”.
Ora, quer parecer que uma tal medida de negociação envolve e deve envolver justamente estas garantias e privilégios: o contribuinte abre mão de parte de seus direitos, para tanto negociando com a Fazenda uma restrição daqueles privilégios. Ao colocar tal vedação de forma estrita e ampla, arrisca-se concluir que a norma pisou em falso: as “garantias e privilégios” têm textura aberta (CTN, art. 183), podendo gerar debates e insegurança sobre o que pode e o que não pode ser negociado; como algumas garantias e privilégios estão justamente no cerne do interesse dos contribuintes.
Tome-se de exemplo o art. 185, que em sua redação pós-2005 presume fraudulenta a alienação de bens por contribuinte que possua débito inscrito em dívida ativa. Tal presunção é afastada quando o contribuinte “reserva” bens suficientes ao pagamento da dívida.
Acontece que tal “reserva” é difícil de provar e está permanentemente sob a espada retórica da “fraude”, possivelmente suscitada pela PGFN. A abertura do caput do art. 185 deixa receosos todos os que querem alienar seus bens e desejam, simultaneamente, discutir judicialmente um crédito tributário (considerado indevido!) contra si lançado e inscrito em dívida ativa. E deixa mais receosos os eventuais compradores.
E, para piorar, muitas vezes a alienação dos bens é necessária para o próprio pagamento do crédito tributário inscrito ou para quitação de programa de parcelamento.
Assim, um dos temas que pode perfeitamente – e deve – ser objeto de negociação prévia é a alienação de bens, onde o contribuinte exporia seu “plano”, demandando em troca uma segurança jurídica mínima de que não seria atacado pela PGFN em alguns meses afirmando a “fraude” na venda de seu ativo.
Tecidas críticas aos temas passíveis e não passíveis de celebração de negócio jurídico processual, na forma da Portaria PGFN 742/2018, quer-se avançar em sua análise, desta vez olhando mais detidamente para os procedimentos de celebração e rescisão do NJP entre Fazenda Nacional e contribuinte.
Mais uma vez, aqui, louva-se seus aspectos positivos. Para além daqueles já listados anteriormente, máxime relacionados ao movimento da PGFN no sentido de compor os interesses de forma a racionalizar o processo a bem do interesse de ambos, quer-se pontuar especificamente o art. 8º da Portaria, quando oportuniza a realização de inspeção da PGFN no estabelecimento, para “averiguar a concreta situação operacional e patrimonial do requerente”.
Entende-se que medidas como esta, que permitem quebrar as barreiras formais em prol de um conhecimento mais dinâmico e concreto sobre a situação da empresa permite que o imperativo de interesse público defendido pela PGFN não seja visto apenas formalmente ou unilateralmente (interesse = arrecadação), mas sim de maneira transversal e multidisciplinar (os diversos interesses que ali coabitam, desde a arrecadação, mas também os empregos e a própria produção).
Sigam-se, contudo, nas críticas.
No art. 4º da norma, que estipula a forma de solicitação da celebração do negócio jurídico, especialmente em seu parágrafo único (que estabelece o que deve conter no requerimento), chamam logo a atenção os seus itens III e IV.
O inciso III determina que o requerimento deve ser acompanhado da relação de todos os bens do contribuinte, com valor atual de mercado. Trata-se não apenas de exigência que pode gerar a inviabilidade de todo o sistema (imagine uma grande empresa reavaliar todos os seus bens apenas para entrega do pedido) como uma demanda deslocada e que se utiliza deste tema para atingir fins diversos (acompanhamento de todo o patrimônio do particular). Tal exigência reputa-se inoportuna, mas não ilegal.
O inciso IV é mais perturbador e, ele sim, ilegal. É que exige a apresentação dos bens dos “controladores, administradores, gestores e representantes legais do sujeito passivo”, além de informações a respeito. O caso é de evidente avanço da PGFN sobre o patrimônio dos particulares, visando relacionar os bens das pessoas físicas ao débito tributário da pessoa jurídica, ainda que ausentes quaisquer elementos prévios que indiquem responsabilidade daqueles.
Ainda que se trate de relação convencional (o requerimento é apresentado apenas caso o contribuinte queira negociar), há excesso quando o Poder Público se utiliza desta norma para atingir fins diversos, especialmente se este fim contraria a lei e a jurisprudência pátrias, sugerindo uma responsabilidade tributária pura e simplesmente contrária ao sistema tributário. O tema merece análise individual e mais detida, em outra oportunidade.
Mais problemático ainda é o procedimento de rescisão.
Ora, a norma coloca (art. 12, II), como causa de rescisão a “constatação” “de qualquer ato tendente ao esvaziamento patrimonial”; não há regramento sobre o que configure tal ato. A experiência tem indicado que a PGFN pode ver “ato tendente ao esvaziamento” em numerosas e mui diversas condutas, desde a alienação de bens de menor valor até o fechamento de unidades ou filiais.
Assim, para atribuir efeitos jurídicos – e efeitos tão danosos como a rescisão do negócio jurídico processual –, é necessário que haja maior detalhamento sobre esta hipótese, permitindo-lhe o controle jurisdicional, se necessário for. Afinal, não passou despercebido o uso do verbo “constatar” na referida norma, como se o “esvaziamento” fosse um fato objetivo, passível de mera aferição – e não de interpretação, argumentação e debate. Tampouco passou despercebida a indicação de que tal simples “constatação” deve ser feita pela própria PGFN, como se fora a pessoa (o credor interessado) a quem basta “constatar”.
Tudo para registrar, portanto, que a norma se torna perigosa, optando por formas que lançam poder demasiado e desequilibrado sobre a PGFN, permitindo-lhe até mesmo causar a rescisão do negócio sem amparos jurídicos mínimos.
Algo semelhante pode ser dito do art. 12, inciso IV: tal regra indica que a concessão de medida cautelar (em Cautelar Fiscal) em desfavor da devedora implica também na rescisão do negócio jurídico.
Com as devidas vênias, tal previsão beira o absurdo. Embora seja verdade que algumas das hipóteses da Cautelar Fiscal estejam relacionadas a condutas de má-fé do contribuinte e que indiquem sua propensão a inadimplir e a evadir-se (e que, portanto, justificariam a cessação do NJP), há outras que não indicam tal circunstância, absolutamente.
É o caso, por exemplo, do inciso VI do art. 2º da Lei nº 8.397/1992 (débitos superiores a 30% do patrimônio conhecido), que não importa, por si só, em qualquer conduta desabonadora do contribuinte, podendo ocorrer em empresas perfeitamente saudáveis e que cumprem suas obrigações de boa-fé. Outros casos, como do inciso V, alínea a, e inciso VIII, também podem indicar nesse sentido.
O fato é que a Cautelar Fiscal nem sempre indica conduta do contribuinte contrária ao interesse no equacionamento do débito ou seu debate legítimo. E mais: a Cautelar Fiscal serve justamente para proteger a Fazenda Pública. Não há razão que justifique a rescisão do NJP justamente quando a Fazenda está mais preservada (Cautelar deferida).
Finalmente, é de espantar que o §3º do art. 12 permita o exercício do contraditório, no procedimento de rescisão, apenas para algumas hipóteses, mas não para outras. Ficaram de fora, por exemplo, as situações de (inciso IV) concessão de medida cautelar, de (inciso V) declaração de inaptidão do CNPJ e de (inciso VIII) deterioração de bens.
Tal limitação representa um erro manifesto. É evidente negativa do contraditório constitucionalmente assegurado, deixando de ofertar ao contribuinte a possibilidade de apresentar defesa, em sua plenitude. É possível afirmar que tal transgressão tão direta da norma constitucional merece reparação judicial.
Considera-se, pois, que ao lado de evidentes avanços – como é o caso da previsão de realização de inspeção –, a Portaria traz regras inoportunas, que merecem críticas por dificultar o uso dos negócios jurídicos processuais, além de previsões ilegais e inconstitucionais, especialmente quando avançam sobre o patrimônio dos sócios e administradores (como se responsáveis tributários fossem) e quando negam o direito ao contraditório na rescisão do negócio jurídico processual.
Considera-se que a Portaria PGFN 742/2018, seja naquilo que deixa de fora, seja naquilo que claramente veda, fragiliza sua própria função, tornando-a manca, retirando-lhe utilidade e assim perdendo a oportunidade de avançar muito mais na relação processual tributária.
Notas e Referências
[1] Nesse sentido: https://www.conjur.com.br/2019-jan-18/opiniao-portaria-pgfn-742-avanco-relacao-fisco-contribuinte
[2] Sobre os limites negociais da administração pública, ver SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem nos negócios administrativos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 117-147 e 199-202.
[3] Pedro Henrique Nogueira afirma que não há vedação abstrata decorrente da indisponibilidade o interesse público: “Não há, assim, qualquer óbice a que a Fazenda Pública, em tese, participe de negócios processuais ou de convenções sobre o processo. A indisponibilidade do interesse público não é impedimento a isso, inclusive por ser possível a celebração de um negócio jurídico que fortaleça as situações jurídicas processuais do ente público” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 233).
[4] Nesse sentido o enunciado n° 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), que em seu texto afirma que “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”, bem como o enunciado n° 256 do FPPC, que dispõe que “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”.
[5] Sobre o tema, ver CIANCI, Mirna. MEGNA, Bruno Lopes. Fazenda Pública e negócios jurídicos processuais no novo CPC: pontos de partida para o estudo. In: CABRAL, Antonio do Passo. NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord). Negócios Processuais. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 481-506.
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