Portaria nº 271 do CNJ e a Regulamentação do uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário  

19/12/2020

Um grupo de analistas de sistemas do Tribunal de Justiça de Rondônia - TJRO desenvolveu o sistema de predição conhecido como Sinapses, com o objetivo de aumentar a celeridade dos processos judiciais. A tecnologia, que faz uso de redes neurais, “é uma plataforma para desenvolvimento e disponibilização em larga escala de modelos de Inteligência Artificial, também comumente conhecido como Fábrica de Modelos de IA[1].

O sistema de IA Sinapses já é utilizado nos gabinetes do TJRO. De modo geral, a tecnologia auxilia na automatização de tarefas repetitivas a partir de ferramentas de predição a depender das movimentações processuais, gerando textos autocompletáveis e agilizando o trabalho de assessores e magistrados nas análises de acórdãos. Já no tocante aos juizados especiais, a IA será utilizada com o intuito de desafogar o judiciário devido ao grande volume processual do juizado, sendo aplicada nos casos repetitivos.

Em 2018 o TJRO e o Conselho Nacional de Justiça celebraram um Termo de Cooperação, nacionalizando o sistema Sinapses, que passou a ser disponibilizada para todos os Tribunais do país. A ideia era justamente a de utilizar como base a tecnologia já implementada em Rondônia, para aprimorar o sistema e disseminar o uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário brasileiro[2].

A Sinapses auxilia e muito o desenvolvimento das tarefas do judiciário, não só quanto à otimização das demandas repetitivas, mas também garantindo maior segurança e amparo ao se minutar os processos. Com a alta implementação de IA no sistema resultando em uma maior facilidade no manuseio dos processos, a plataforma foi vencedora do prêmio de Inovação na categoria Prestação de Serviços, no Congresso de Inovação, Tecnologia e Direito para o ecossistema de Justiça[3]. Esse é um grande incentivo para que o investimento em Tecnologias da Informação e Comunicação continuem acontecendo de forma crescente.  

Diante da utilização em alta escala desses modelos de IA, foi necessária a adoção de regulamentações para que esse uso não se desse de forma arbitrária e sem nenhum tipo de regramento. Assim, considerando a necessidade de regular a IA a fim de se evitar litígios e obter maior cautela no uso das TICs, foi publicada, no dia 04 de dezembro, a Portaria nº 271 do CNJ[4].

Dividida em sete capítulos, a Portaria dispõe, em seu art. 1º, que ela se aplica sempre quando do desenvolvimento de projetos de IA, sua utilização, pesquisas e coordenações interinstitucionais no âmbito do poder judiciário. No seu art. 2º, prevê o compromisso quanto ao incentivo a investimento para as pesquisas e desenvolvimentos da IA, bem como define, em seu parágrafo único, o que a Portaria entende por Inteligência Artificial.

Tendo como base alguns princípios, a norma estabelece que se preocupa com a transparência no uso do sistema Sinapses e com o acesso à informação, devendo a plataforma ser utilizada com foco na celeridade processual na governança colaborativa (art. 3º). Assim, o desenvolvimento desses modelos de IA devem garantir a promoção da economicidade, celeridade processual, interoperabilidade tecnológica dos sistemas processuais eletrônicos, do uso de tecnologias em formatos abertos e livres, da transparência, do acesso à informação. O art. 4º prevê que:

Art. 4o O uso de inteligência artificial no âmbito do Poder Judiciário se dará em plataforma comum, acessível por todos, que incentive a colaboração, a transparência, o aprimoramento e a divulgação dos projetos.

Parágrafo único. A plataforma de inteligência artificial do Poder Judiciário Nacional é o Sinapses, disponibilizada pelo CNJ em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.

A utilização de uma plataforma comum e acessível, é uma forma de atender ao princípio da transparência e dessas bases norteadoras adotadas, e um mecanismo de viabilizar o aprimoramento dos modelos de IA utilizados, ajudando também na colaboração judiciária.

A responsabilidade quanto a administração da plataforma Sinapses, seus subsistemas e os modelos de IA, será do CNJ e do TJRO, conjuntamente com os Tribunais que depositem seus modelos na plataforma (art. 5º). Existe um repositório de código do CNJ, onde deverão ser armazenados os códigos fonte e suas atualizações de forma centralizando, não havendo a possibilidade de cópias ou versões derivadas, sem a devida autorização para tanto (§1º, art. 4º), mas todos os modelos que forem liberados, estarão disponíveis para consulta em endereço próprio.

Para a utilização dos modelos de IA pelo poder judiciário, a plataforma deve adotar medidas que tornem possível a realização de auditoria das predições realizadas no fluxo de sua aplicação, e nesse sentido, a plataforma tem o registro automatizado do processo de aprendizagem e consultas (art. 12).

Como uma forma de minimizar os riscos de implementação e utilização dos modelos de IA, bem como possibilitar a responsabilização pelo uso, a Portaria prevê em seu Capítulo VI, a necessidade de se realizar treinamentos dos colaboradores com a finalidade de se ter um uso adequado da plataforma de IA (art. 14). Além disso, toda a documentação referente aos projetos de desenvolvimento de modelos de IA deverão ser disponibilizados por seus respectivos órgãos, acompanhados da justificativa para sua criação - necessidades e objetivos (art. 15). A normativa ainda exige que sejam observadas as Tabelas Processuais Unificadas do Poder Judiciário, tendo como finalidade “alcançar a padronização e uniformização taxonômica e terminológica de classes, assuntos e movimentação processual a serem empregadas em sistemas processuais no âmbito da Justiça Estadual, Federal, Eleitoral, Militar, do Trabalho e do Superior Tribunal de Justiça” (art. 17).

Ainda como forma de atender ao princípio da Transparência, o art. 19 da Portaria prevê que é dever do CNJ apresentar, de forma periódica, um levantamento de todos os projetos de IA que estão em desenvolvimento, bem como o número de processos que foram beneficiados com o feito.

O CNJ, investido de responsabilidade quanto à utilização da plataforma Sinapses, conforme o art. 5º, é também responsável por receber, de qualquer membro, a comunicação quanto ao descumprimento das obrigações constantes da Portaria, omissões ou manipulações intencionais dos dados e modelos de IA. Diante das alegações, cabe ao CNJ, quando entender cabível, instaurar procedimento administrativo para apuração e adoção das providencias adequadas (art. 20).

 Todos os modelos de IA que forem desenvolvidos para o Poder Judiciário deverão ser feitos na plataforma oficial Sinapses (art. 10). A também Portaria prevê que as pesquisas e a criação da tecnologia deverão seguir, não só as normativas nela previstas, mas deve ser orientada também pela Resolução nº 332 de 21 de agosto de 2020[5], a qual dispõe quanto a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário[6].

Dessa forma, como dispõe a própria Resolução nº 332 do CNJ, quando do uso de IA pelo poder público deverá ser observada a compatibilidade de sua prática com o respeito aos direitos fundamentais, sobretudo os previstos na CF e em tratados dos quais o Brasil seja signatário (art. 4º da Resolução). No desenvolvimento e utilização da IA, deve-se sempre buscar a garantia da segurança jurídica e igualdade entre os casos jugados (art. 5º), sendo que os dados utilizados deverão ser sempre representativos e respeitosos quanto aos dados pessoais dados sensíveis de seus titulares (conforme o definido da LGPD), bem como ao segredo de justiça (art. 6º).  

Além disso, a Resolução apresenta em seu Capitulo III, disposições que versam sobre a não discriminação, de modo que o desenvolvimento e implementação dos modelos de IA deverão, sempre que envolverem a tomada de decisões com base no uso de IA, auxiliar no julgamento justo, de forma a preservar a “igualdade, a não discriminação, a pluralidade e a solidariedade” (art. 7º da Resolução); trazendo, ainda, nos parágrafos do art. 7º, questões relacionadas à vieses algorítmicos, dos quais, caso tenham sido identificados anteriormente à produção do software, deverão ser corrigidos. Na hipótese de não ser possível a sua correção, o software deverá ser descontinuado e elaborado um relatório com o motivo da decisão.

Dessa forma, todo o desenvolvimento e implementação dos modelos de IA dar-se-ão orientados pela busca da diversidade em seu mais amplo espectro, incluindo gênero, raça, etnia, cor, orientação sexual, pessoas com deficiência, geração e demais características individuais, devendo ser respeitada a representatividade em todas as etapas (art. 20 da Resolução); somente será dispensada a diversidade nesse processo mediante decisão fundamentada (§2º, art. 20). Todos os processos de pesquisas e treinamentos dos softwares deverão ser livres de preconceitos, não podendo haver o desrespeito a dignidade e a liberdade, qualquer risco ou prejuízo aos seres humanos e qualquer tipo ação capaz de influenciar no curso das pesquisas ou resultados (art. 21).

De mesmo modo como previsto na Resolução, cabe também à Portaria observar o contido na Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seus Ambientes[7], sempre que não houver normativa quanto ao uso e implementação de IA.

 A Portaria nº 271 do CNJ surge, então, como uma das manifestações na corrida pela governança no uso de IA, a fim de definir regras que garantam que a implementação dessas tecnologias, ainda que restritas ao Poder Judiciário, tenham por objetivo melhorar a experiencia e o potencial dos órgãos judiciais, visando uma maior celeridade processual e um maior auxílio na resolução das demandas repetitivas. E o cumprimento da Portaria, juntamente à Resolução nº 332 do CNJ, visam não só a garantia de maior segurança no uso dos dados e assertividade na realização de tarefas, mas também a implementação da IA no Poder Judiciário de forma ética e responsável.  

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: https://www.tjro.jus.br/gestaodepessoas/infomes/1158-Sinapsess-termo-de-cooperacao-tecnica-com-o-cnj-completa-1-ano. Acesso em: 15 de dez. 2020.

[2] Disponível em: https://tjro.jus.br/noticias/item/10060-cooperacao-entre-tjro-e-cnj-permite-o-uso-de-inteligencia-artificial-desenvolvida-pelo-tribunal-de-ro. Acesso em: 15.12.2020.

[3] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/Sinapsess-plataforma-de-inteligencia-artificial-conquista-premio-na-expojud/. Acesso em: 15.12.2020.

[4] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original213010202012095fd141e2d012c.pdf. Acesso em: 15.12.2020.

[5] Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/wp-content/uploads/2020/08/Resoluc%CC%A7a%CC%83o-332-CNJ.pdf. Acesso em: 16.12.2020.

[6] Sobre isso, ver nosso texto disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/inteligencia-artificial-e-reconhecimento-facial-para-fins-de-policiamento-e-politica-criminal-a-resolucao-n-332-do-cnj-e-outras-referencias-normativas. Acesso em: 17.12.2020.

[7] Disponível em: https://rm.coe.int/carta-etica-traduzida-para-portugues-revista/168093b7e0. Acesso em: 16.12.2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Martelo, justiça // Foto de: QuinceMedia // Sem alterações

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