Portaria MJ-666: Inconstitucional, ilegal e atentatória à normatividade internacional      

02/08/2019

A conhecida metamorfose que ilustra a maneira como se usam o Estado, as instituições e todo o arsenal de instrumentos dessa “besta magnífica” que é o poder – como processo de dominação e de projeção da força, que tanto preocupava a Foucault [1]- tem no Brasil um exemplo escancaradamente infeliz e profundamente negativo para a democracia.  Isso porque, ao que parece, a era dos discursos autoritários do Presidente Jair Bolsonaro chega ao seu fim para, no entanto, começar uma pior.

Com efeito, com a Portaria n.666, de 25.07.2019, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública[2] que Dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal,  se inaugura um tipo de “Estado autoritário de não-Direito”, fundado num fato concreto: diante da impossibilidade material de vigiar individualmente â multidão, o Direito sofre a transformação de sua finalidade, que passa a ser, com ênfase e quase exclusividade, a pacificação interior da sociedade através do controle dos atores e setores em movimento.

Isso não é novo na pretensão e dinâmica do Estado, mas a intensidade com esta portaria se acentua porque teledirigida a um segmento social. Por sinal, veja-se que a expansão dessa manifestação primária do Direito favorece o retorno do conceito de “sujeito perigoso” em contraposição ao de cidadão que reivindica suas liberdades e prerrogativas, bem como o uso da prevenção contra os “riscos” no interior do Estado-nação. Isso, como diz Portilla Contreras, e agora aqui dizemos claramente, não é outra coisa senão estado de exceção e criação de espaços ocultos ao Direito.[3]          

Não pode se concluir outra coisa, após a leitura da medida, senão que o seu conjunto normativo destinado aos migrantes e estrangeiros residentes no país revive o antigo Estatuto do Estrangeiro editado no regime militar (revogado pela Lei de Migração de 2017) e retira das sombras o espírito da antiga Lei de Segurança Nacional.

Por isso, diretamente na contramão dos objetivos do constituinte de 1988 de igualdade, liberdade e garantias que assegurem o respeito às posições jurídicas do ser humano emanadas da dignidade, limitando a ação do Estado, o ato do Ministério da Justiça nasce com vícios insanáveis e não resiste a uma análise singela de enquadramento ao Direito Constitucional e ao Direito Internacional.

Mas não se trata apenas de inconstitucionalidades ou ilegalidades no âmbito internacional, que podem até ser consideradas relativamente comuns e até corriqueiras em regimes democráticos. Não, aqui há um forte espírito ditatorial. Há algo de panóptico, de “fazer parar um mal”, de “quebrar comunicações” e “suspender o tempo”. Um dispositivo funcional que o governo aspira melhore o exercício do poder tornando-o mais rápido e leve, capaz de exercer coerção sutil ou aberta, colocando ao agente fora dos perigos numa sociedade que está por vir. É uma medida de caráter político para ameaçar, perseguir e punir rivais, qualificados como criminosos e terroristas. É o direito penal do inimigo sendo instalado a partir do Palácio da Justiça em Brasília.

Sob o argumento de regulamentar a Lei de Migração – Lei 13.445 de 2017 - uma lei boa, moderna, com enfoque em Direitos Humanos – a Portaria assinada pelo Ministro Sergio Moro origina novas figuras de Direito Administrativo, extrapolando a própria lei migratória e violando a lei brasileira do refúgio – Lei 9474 de 1997 -.

A possibilidade de qualificar migrantes e pessoas estrangeiras como “perigosas” e “terroristas” – a partir de possíveis atos que tenham essa conotação – não tem base legal nem no Direito Interno nem no Direito Internacional. Não há uma definição internacional sobre terrorista, exatamente porque é comum transformar um ato ou a própria pessoa, através de uma extensão progressiva da disciplina jurídica ao sabor do interesse político, em “terrorista”. Por outras palavras, é um vocábulo manipulável conforme o desejo e necessidade conjuntural de quem assume a máquina do poder. Nenhuma definição é isenta. [4]

Dois exemplos clássicos: Yasser Arafat foi classificado como terrorista e tornou-se depois Prêmio Nobel da Paz e Presidente da Autoridade Nacional Palestina; Nelson Mandela, tido como terrorista pelos EUA, tornou-se Presidente da África do Sul, e um dos mais celebrados líderes do século XX. 

O impedimento ao ingresso, a deportação sumária e a repatriação de migrantes e estrangeiros, a partir de juízo discricionário da autoridade policial, prevista na portaria, viola o devido processo legal no aspecto substancial, quebrando a razoabilidade e a proporcionalidade e, ao mesmo tempo, no aspecto processual, particularmente, o amplo direito de defesa.

Aplicada a solicitantes de refúgio e pessoas refugiadas, hipótese possível dada pela portaria, a medida ameaça o princípio da não devolução (non refoulement), princípio basilar do Direito Internacional dos Refugiados (DIR), cujo reconhecimento internacional é amplo e obrigatório como medida humanitária, qualificada pela doutrina e pela jurisprudência internacional como jus cogens.

A possibilidade de a Polícia Federal atuar discricionariamente, mantendo o sigilo das informações por ela obtidas, inclusive aquelas recebidas via cooperação jurídica internacional, torna inócuos os princípios da publicidade e da transparência. E o prazo extremamente exíguo para o suspeito apresentar defesa, na prática impedirá o exercício desse direito fundamental. Toda essa engrenagem regressiva dos direitos constitucionais e constantes em declarações internacionais da Portaria 666 acarretará o cerceamento da atuação da defesa – como bem ressaltou a nota técnica da Defensoria Pública da União (DPU) sobre o tema.

Não fossem suficientes os graves vícios a fulminar a existência da portaria em um Estado Democrático de Direito, há o fator casuístico de sua publicação ter sido feita em meio às graves revelações feitas pelo Intercept, agência de notícias dirigida pelo jornalista Glenn Greenwald, norte-americano residente no Brasil, que afetam diretamente a pessoa do Ministro da Justiça e da Segurança Pública, em sua atuação prévia como principal juiz federal da Operação Lava Jato, além de integrantes do Ministério Publico Federal e de alguns juízes de cortes superiores que atuaram em processos daquela operação.

Parece feita por encomenda. Ainda que haja obstes legais objetivos para enquadrar o jornalista nos termos da portaria (ele é casado com brasileiro e pai de filhos brasileiros – o que impediria sua deportação ou repatriação), esta parece dar um recado ameaçador a ele e a todos que o apoiam, estrangeiros ou não. O direito à informação e à livre expressão são igualmente ameaçados, de forma indireta, na casuística política da medida.

Desta forma, cabe analisar a Portaria 666 com o medidor jurídico adequado e necessário, tendo em vista a sua letra e o seu espírito: trata-se de um instrumento de regimes de exceção, como bem descreve Georgio Agamben[5], que criminaliza antecipadamente as pessoas, considerando-as suspeitas e privando aos discricionariamente “escolhidos” dos direitos e garantidas fundamentais do regime democrático.

Mais um dado nessa escalada autoritária de nossa época. A Portaria 666 é uma ponta de lança contra o deteriorado Estado Democrático de Direito e repousa numa transformação da política e do Direito que só atende à cúpula dominante. É ela a que entende que o Leviatã tem que desconfiar de todo e de todos, e por isso seu passo é um ato que exclui os indesejados através de controle preventivo e repressivo da sociedade que os ameaça. Trata-se de ato contra a Carta de 1988, contra a normatividade internacional em matéria de direitos humanos, contra a lei de migração e contra a lei brasileira de refúgio.

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Notas e Referências

[1] Michel Foucault. El poder, una bestia magnífica. Bogotá. Siglo XXI. 2012.

[2] Portaria N. 666 do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de 25 de Julho de 2019, “Dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, publicada no DOU, de 26.07.2019, edição 143, p.166.

[3] Guillermo Portilla Contreras. Mutaciones de Leviatán. Madrid: Akal/ Universidad de Andalucía. 2005.

[4] Sarah Pellet. A ambiguidade na noção de terrorismo In Terrorismo e Direito. Leonardo N.C. Brandt (Coord.) Rio de Janeiro: Forense. 2003.

[5] Giorgio Agaben, Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo, 2011.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

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