Por Camila Cardoso de Mello Prando e Rogerio Dultra dos Santos - 11/04/2016 *
Introdução
As grades curriculares dos Cursos de Direito têm introduzido, desde a reforma de 1994, a disciplina de Criminologia antes do estudo do Direito Penal. A pretensão, do ponto de vista de uma formação dogmático-jurídica, é a utilidade prática desta disciplina, bem como das demais matérias propedêuticas. De modo usual, entretanto, o que se aprende nos primeiros anos do curso de direito permanece como produto de perfumaria, para então, nos anos seguintes, se firmar o estudo do Direito exclusivamente com disciplinas técnico-jurídicas. Desde a faculdade, portanto, o operador jurídico não consegue perceber a relação estrutural entre teoria e prática. Essa formação acadêmica está intrinsecamente relacionada ao paradigma jurídico preponderante, que se funda sob os pressupostos liberais e positivistas, nos quais os conflitos sociais e as relações entre as várias esferas de poder não são compreendidos como parte constitutiva do universo do direito.[1]
No modelo oficial instituído de Direito Penal vislumbra-se, como conseqüência direta desta barreira entre o estudo do direito e a realidade social, um distanciamento entre o discurso jurídico-penal e sua operação prática. Essa dicotomia, que tem suas raízes no paradigma jurídico vigente, pode ser observada estruturalmente sob o seguinte aspecto: as funções declaradas do direito penal atual não são compatíveis com sua efetiva aplicação.
Vejamos essa relação a partir da contraposição entre o discurso penal e a sua operacionalização. Apesar do nome estar relacionado à punição (penal = pena, suplício, malefício), o direito penal tem como objetivo declarado a proteção ou a garantia dos bens jurídicos. Essa proteção dos direitos, assegurados principalmente na Constituição, é realizada pelo Estado através da privação de bens jurídicos e da ameaça da sua privação, levados a cabo pelo sistema penal (judiciário, polícia, cárceres, etc.).
Nem sempre foi assim. O Estado já quis sustentar que o direito de punir dizia respeito à lesão de um único e próprio bem jurídico. Dessa forma, o direito de punir surgiria como direito subjetivo do Estado, autorizando-o a estabelecer limitações de cunho moral à conduta dos seus cidadãos. Assim, por exemplo, o Estado poderia definir sanções para os casais que não quisessem ter filhos ou para os casais que tivessem mais filhos do que o permitido. A modernidade política trouxe a noção de que o Estado não deve impor seu jugo sob a autonomia moral de cada indivíduo, não podendo penalizar, desse modo, as condutas que não afetem bens jurídicos de outrem.
A restrição da atuação penal à proteção de bens jurídicos afasta –pelo menos em seus fundamentos teóricos– a imposição autoritária ou totalitária de uma determinada moral pelo Estado. Obriga também que este cumpra, na sua atuação, os princípios constitucionais fundamentais que justificam sua intervenção na sociedade. Desse modo, carece de sustentação jurídica qualquer ato que viole ou vá além do âmbito de atuação do sistema penal definido na legislação penal.
Todavia, diversa é a prática do sistema. Observa-se que a prática penal celebriza-se por atuar tão somente no controle e na repressão do crime. Esse controle, feito quase que exclusivamente através da segregação dos apenados (as novas penas não são propriamente “alternativas”, mas complementares à segregação), não garante a efetivação e a proteção dos direitos fundamentais. A repressão é definida, inclusive, pelo caráter desigual de sua aplicação. Assim, aqueles alcançados pelo sistema penal, além de não se constituírem pela maioria dos que efetivamente cometem delitos, são “selecionados”, isto é, verdadeiramente escolhidos: não pela sua conduta, mas pelo seu status social.
Para compreender essa aparente contradição não é possível buscar as explicações no próprio seio do discurso jurídico-penal atual, senão através do recurso a uma análise externa ao Direito Penal. É neste ponto específico que se recorre aos estudos criminológicos, com o objetivo de romper com uma repetição esquizofrênica –ou auto-referente– do discurso penal, nas salas de aula, e abri-lo, assim, à possibilidade de transformação da dogmática/técnica penal a partir das críticas a ela elaboradas exteriormente.
Neste contexto, perguntar-se por que estudar Criminologia hoje pressupõe, em primeiro lugar, saber de que Criminologia está-se falando, isto é, identificar qual o fundamento atualmente possível para o pensamento criminológico; em segundo lugar, estabelecer de que forma as práticas do sistema penal como um todo podem ser diretamente informadas por uma perspectiva criminológica específica –seja ela conservadora, reacionária ou transformadora e crítica– para enfim, em terceiro, compreender a relação estabelecida entre essa disciplina e a Dogmática jurídico-penal. Isso é o que possibilita a compreensão integrada das Ciências Criminais, sob a perspectiva de um entendimento menos reducionista e mais reflexivo sobre o Direito Penal.
De que Criminologia falamos?
Os elementos para uma análise crítica do direito penal (e do sistema penal, de forma mais ampla) são trazidos pelos estudos da Criminologia. Essa disciplina, por estar vinculada à Sociologia Penal, fez-se originalmente mais capacitada para perceber a importância do conhecimento negado pelo estudo dogmático dos crimes e das penas, atentando para os problemas decorrentes da sua realização na sociedade. Assim, como as demais disciplinas propedêuticas existentes nos currículos dos cursos de direito, a criminologia tem como objetivo geral vincular a compreensão do sistema penal às influências das esferas política, econômica, cultural e social. Seu objetivo específico é mensurar, analisar e refletir sobre as práticas repressivas, institucionalizadas ou não e seus respectivos discursos de justificação.
A atividade repressiva estatal se justifica, enquanto prática, no discurso de igualdade formal desenvolvido pelo liberalismo político europeu, desde o séc. XVII. Pretende, desse modo, ser uniforme na aplicação das sanções jurídicas em relação aos desviantes. Entretanto, a uniformidade e igualdade proporcionadas pela programação normativa do Direito Penal não passam de falácias, principalmente quando se sabe que a maioria dos clientes do sistema penal são estritamente definíveis como pobres e/ou apartados do processo produtivo e da cultura dominante.
A análise do fenômeno crime e o trabalho do estudioso de criminologia, a partir desta constatação, implicam voltar-se para os processos de definição e marcação levados a cabo pelos próprios mecanismos estatais e para-estatais que distribuem socialmente o estigma da criminalidade. Deixa-se de lado a idéia de que alguns possuem características intrínsecas de criminosos, como desde meados do séc. XIX vinha se sustentando, para se considerar a idéia de que aqueles alcançados pelo sistema penal são “selecionados”, isto é, verdadeiramente escolhidos: não pela sua conduta delitiva, mas pelo seu status social; além de não se constituírem pela totalidade dos que efetivamente cometem delitos. Alguns teriam, assim, mais “chances” de criminalização do que outros. Esse poder de definição acaba selecionando estratos sociais específicos sob os quais deve recair geral e necessariamente a atividade repressiva e punitiva do Estado, independentemente dos atos concretos que estes indivíduos tenham (ou não) realizado.
Desse modo, os estudos criminológicos não mais poderão se centrar na ontológica figura do criminoso, procurando as “causas” do crime num momento anterior ao processo jurídico de criminalização (o modelo causal é também conhecido como etiológico). Mesmo porque não se pode encontrar causas em algo que é criado artificialmente, como é o caso das condutas determinadas como criminosas pelo Código Penal de um determinado país em um momento histórico delimitado. Portanto, voltar-se-ão esses estudos, diversos da perspectiva tradicional (que também é a perspectiva oficial das faculdades de direito), para a análise dos mecanismos estatais e para-estatais de seleção, reação e, ao mesmo tempo, de definição do delito.
Esse novo paradigma criminológico que surge através dos estudos do interacionismo simbólico e da etnometodologia, a partir da década de 70, recebe a denominação sociológica de criminologia da Reação Social.
A essa revolução da ótica criminológica (que abandona ou relativiza o estudo do criminoso e passa a estudar os processos que levam à criminalização) foi acrescentada uma perspectiva metodológica materialista, vindo a se construir a chamada Criminologia Crítica. Dessa perspectiva adveio a necessidade de se relacionar, como sustenta o criminólogo italiano Alessandro Baratta, os dois pontos da questão criminal: “as situações socialmente negativas e o processo de criminalização, com as relações sociais de produção e, no que respeita à nossa sociedade, com a estrutura do processo de valorização do capital”.[2] Sustenta-se desse modo uma teoria materialista da criminalidade, possibilitando a historicização do desvio e do processo de criminalização, inserindo-os na formação econômica e política em que se encontram,[3] de modo a ampliar a compreensão subjetiva desses processos.
A partir dos estudos da Criminologia Crítica, o controle penal passa a ser entendido enquanto continuun de todo aparato do controle social, de modo que sua operacionalização segue a mesma lógica seletiva e estigmatizadora de outras instâncias informais ou formais. O controle social informal é compreendido enquanto locus não institucionalizado de controle que atua de modo difuso, como por exemplo, a família, a escola, os meios de comunicação e o mercado de trabalho. Já o controle formal –do qual o sistema penal, formado por diversas instâncias (Polícia, Lei, Ministério Público, Justiça, Execução Penal) é exemplo típico–, é compreendido como aquele em que se há a atribuição normativa para intervir institucionalmente em casos considerados desviantes a determinados padrões instituídos.
O funcionamento integrado dessas diversas instâncias de controle é cimentado e perpassado por um sistema de idéias que reproduz positivamente, e não apenas de modo repressivo, o modelo hegemônico de dada sociedade, cumprindo importante função legitimadora e integradora. Quando se trata, em termos generalizados, de um modelo capitalista de sociedade, identifica-se a idéia da disciplina e a própria moral do trabalho como uma das matrizes ideológicas do controle social.[4]
A partir dessa análise torna-se possível desvelar não apenas a perversidade do funcionamento do sistema penal, mas também as suas funções não declaradas dirigidas especialmente para justificação e manutenção de uma estrutura política, econômica e social profundamente desigual.
Apesar desse novo paradigma criminológico exposto, há de se ressaltar que a Criminologia ensinada no Brasil de forma hegemônica até os anos 2000 pelo menos, parte de uma matriz diversa, originariamente surgida no século XIX, que considera como objetos específicos de análise: a) o homem criminoso e “a natureza de sua personalidade e os fatores criminológicos”; b) “a criminalidade, suas geratrizes, o grau de sua nocividade social, a insegurança e a intranqüilidade que ela é capaz de causar à sociedade e a seus membros”; e c) “os meios capazes de prevenir a incidência e a reincidência no crime através de uma política de erradicação do marginalismo, da profilaxia e da recuperação do delinqüente para a sociedade”.[5]
Esta perspectiva teórica tradicional, se começa a passar por um momento de questionamento nas faculdades de direito (por conta de uma nova geração de professores), ainda hoje é o fundamento quase que exclusivo das instituições repressivas. Ela tem suas raízes na denominada Escola Positiva (Garofallo, Lombroso e Ferri), que parte do pressuposto de que o crime é um fenômeno humano e cultural, centrando a atuação da Criminologia:
a) A partir um método empírico e causal-explicativo,[6] necessariamente a-histórico e cientificista, que acaba identificando um “motivo” responsável ou pela insegurança social ou pela incerteza jurídica na aplicação da punição;
b) Na artificial autonomia metodológica em relação ao direito penal, o que reforça a importância do objeto criminológico por excelência que, a partir do positivismo biopsicológico de Lombroso e Garoffalo passa a ser o autor definido como criminoso pelo código penal.[7]
Nesses termos, tem-se uma disciplina científica de caráter auxiliar na integração das Ciências Criminais, responsável apenas a estudar os fatores da criminalidade. Suas funções são: facilitar a orientação das políticas criminais que defenderão a sociedade contra o inimigo identificado, e aperfeiçoar os instrumentos jurídico-penais na tipificação e regulamentação das condutas consideradas, de modo universalizante, mais perniciosas à convivência social. Portanto, a ideologia que cimenta a integração da Criminologia tradicional às demais disciplinas (político-criminal e jurídico-penal) é a chamada ideologia da defesa social, composta por um conjunto de princípios e valores, centrados na idéia de que a função por excelência do Sistema Penal é a defesa social. A defesa social se realiza, do ponto de vista jurídico, protegendo o cidadão contra o Estado e, do ponto de vista criminológico, instrumentalizando tecnicamente a proteção da “sociedade” contra o delinqüente.
É sob esta perspectiva que se aprende a Criminologia oficial e tradicional para descobrir as “causas” da criminalidade –criminalidade que é definida também tradicionalmente, e em especial, como atos individuais de violência contra a pessoa e o patrimônio– e racionalizar o estereótipo do criminoso dentro do próprio espaço das Universidades. O operador do direito passa a ter em mãos uma justificativa “científica” para identificar como “criminoso” todo sujeito que preencha as características do modelo criminológico traçado: geralmente a atenção não está dirigida à criminalidade econômico-financeira, à corrupção ou à exploração criminosa do trabalho, pois a ação criminosa nesses exemplos não deriva de um sujeito com o perfil usual (geralmente o único) dos manuais de criminologia.
De qualquer forma, adquire-se então o conhecimento necessário para, a seguir, nas aulas de Direito Penal, aprender a manusear o instrumento legal punitivo a ser aplicado e dirigido especialmente contra os grupos sociais marginalizados e estereotipados. Cumpre-se assim o papel da manutenção da ordem, através do discurso de proteção da “sociedade”.
Este discurso oficial, centrado em valores que promovem a intolerância com aqueles selecionados como criminosos, produz uma moral fundamentalista no ideário popular, que objetiva separar, artificialmente, o povo da delinqüência, facilitando a introjeção da desigualdade social e da exploração econômica, que são aceitas por todos os cidadãos que se consideram “bons” e, portanto, diferentes dos delinqüentes.[8] Assim, parte da população aceita ser o alvo preferencial da repressão, pois deixa de perceber que a “marginalidade” ou o “marginal” que vive nesta mesma faixa da população –esse indivíduo essencialmente diferente do “homem de bem”–, se constitui a partir de uma diferenciação artificial e arbitrária, que a qualquer momento, pode se desfazer, atingindo, com toda a violência, quem quer que se encaixe no estereótipo do “bandido”. Desta forma, contra a arbitrariedade de um sistema estruturalmente violento, poucos estão em situação de tranqüilidade e segurança.
Possibilidade de reorientação das políticas criminais
Por esta breve exposição das diferentes perspectivas criminológicas, compreende-se as distintas relações que se estabelecem entre Criminologia e Política Criminal. E por conseqüência, como se verá a seguir, a influência dessas políticas criminais na construção do Direito Penal.
Nesse sentido, Política Criminal é aqui entendida como o conjunto de diretrizes políticas que orientam o funcionamento do sistema penal, desde o estabelecimento de políticas de Segurança Pública, passando pela confecção legislativa, até o direcionamento judicial da aplicação da lei. Portanto, a orientação prática dos órgãos e instituições repressivos muito irá variar em conformidade à compreensão do funcionamento do sistema penal e de suas funções. Ela pode se tornar tanto um mero discurso legitimante do poder punitivo quanto ser capaz de reorientar o funcionamento oficial do sistema penal e de seu aparato repressivo. Tudo irá depender de qual modelo teórico estará informando a construção das políticas criminais, se um modelo tradicional, calcado na repressão de grupos socialmente mais vulneráveis, ou se num modelo diferenciado, que objetiva escapar de uma atuação geralmente arbitrária, estigmatizadora e excludente.
A título de ilustrar essas possibilidades, será exposta aqui, em linhas gerais, apenas a principal divisão de orientação dessas políticas criminais: as políticas de defesa social e as políticas alternativas.
De acordo com a perspectiva da criminologia tradicional, os estudos criminológicos servirão de apoio para a estruturação dessas políticas. Mas, para o paradigma tradicional da Criminologia, qual é a função do sistema penal e qual a sua contribuição para a integração das Ciências Criminais (Criminologia – Dogmática Jurídico-Penal – Política Criminal)? Como já se disse acima, o Sistema Penal é compreendido como o locus institucional responsável pela realização da defesa social, qual seja, a defesa dos cidadãos de bem, “a sociedade”, contra os delinqüentes, representantes da parcela problemática e violenta.
No momento histórico em que este discurso foi construído, na Europa Ocidental do século XIX, tornava-se necessário encontrar uma resposta para a desigualdade social que havia aumentado no último século, em decorrência da consolidação da Revolução Industrial. Já não era sustentável a crença de que o desenvolvimento econômico seria suficiente para garantir o bem-estar material de toda a população, pois apesar da grande produtividade ocorrida até então, a desigualdade também se tornava mais evidente. Qual seria então a justificativa para que esses grupos sociais possuíssem condições de sobrevivência cada vez mais precárias diante de uma riqueza cada vez mais visível?
Em parte a resposta foi dada, com status de cientificidade, pela Escola Positiva, que buscando fundamentar um poder estatal mais repressivo, legitimava a punição a partir de sua função ressocializadora. Passou-se a se identificar os selecionados pelo sistema penal como pessoas de características anormais e mesmo patológicas, decorrentes de diversos fatores (sociais, físicos, psicológicos, climáticos)[9]. Ora, em assim sendo, elas não participavam da divisão das riquezas conquistadas pela civilização, porque não possuíam capacidade para isso. Seja por serem marcadamente atávicas, incivilizadas, ou por psicologicamente não terem condições de seguir o caminho dos bons.[10]
Para Alessandro Baratta[11], o discurso da defesa social é constituído também por princípios advindos da Escola Clássica, pensamento produzido ainda no século XVIII, na esteira da limitação do poder punitivo na passagem para o Estado de Direito. Assim, a legalidade, a igualdade e a punição de caráter retributivo, amparada no livre-arbítrio dos indivíduos, constituem-se como princípios necessários à manutenção do discurso do Estado limitado pelo Direito, que será de grande importância para a construção do paradigma dogmático-penal, mais tarde desenvolvido pela Escola Técnico-Jurídica.[12] E os demais princípios, norteadores da Escola Positiva, representarão por excelência o discurso criminológico: a punição se ampara na função preventiva da reeducação e na visão de uma sociedade dividida entre a porção do bem (não-delinqüentes) e a porção do mal (delinqüentes). De um lado, o sistema penal representa a defesa do cidadão contra os excessos punitivos do Estado, de outro, representa a defesa da sociedade contra os delinqüentes, justificando a intervenção punitiva mais repressiva.
É sob esse mesmo viés que as Políticas Criminais oficiais irão se nortear, apresentando diretrizes para a promoção da defesa social. A Criminologia –em seu sentido tradicional– é, sob esse aspecto, a Ciência que auxiliará a produção do receituário de combate ao crime, identificando os focos de criminalidade e os traços dos criminosos. Como bem entendido, criminalidade e criminosos fazem parte especialmente daquela parte da sociedade que oferece risco de violência individual às pessoas e ao patrimônio. Esse é um sentido muito particular de construção semântica da idéia de violência, deixando assim de entendê-la sob a perspectiva institucional (violência do próprio sistema penal), estrutural (violência da estrutura social), ou de grupos sociais sociabilizados no mercado cultural, produtivo e de consumo (criminalidade de colarinho branco).[13] Quando se fala em defesa da sociedade, portanto, não se está falando de defesa da sociedade em relação aos poderes institucionais, às estruturas culturais e produtivas ou mesmo em relação aos grupos sociais incluídos nessa esfera da sociedade, mas em defesa da sociedade contra os excluídos dos sistemas produtivo, político e cultural.
Essas políticas de natureza autoritária receberam nomes e explicações teóricas e científicas aparentemente diferenciadas, mas que, todavia, seguiram sempre tendo como ponto de partida os princípios acima nomeados. A começar por Enrico Ferri, já citado neste texto, passando pelas políticas da Nova Defesa Social, propugnada especialmente por Marc Ancel,[14]chegando aos dias atuais ao Movimento de Lei e Ordem, bem representado pela Política de Tolerância Zero tão afamada pelas raízes nova iorquinas.[15] São receitas e mais receitas, algumas discursivamente melhor elaboradas, outras precariamente articuladas, que bebendo no conhecimento da criminologia etiológica/positiva, nas estatísticas oficiais lançadas pelo funcionamento do sistema penal, corroboram políticas de controle social estigmatizantes e excludentes.
Pode-se, entretanto, perceber pequenas diferenças, principalmente de acordo com a estruturação do respectivo Estado responsável pela execução dessas políticas. Assim, por exemplo, a política de defesa social de um Estado de bem-estar social difere da estrutura da política de um Estado neoliberal. No primeiro, infere-se uma falsa e marcada divisão entre política social e política criminal, em que uma cuida do aspecto preventivo da criminalidade e a outra do aspecto repressivo. Ou seja, não há um objetivo diferenciado em ambas as políticas, vez que enquanto a política criminal dirige-se às pessoas do grupo social que já incorreram em condutas delituosas, ou por qualquer outro motivo, já estiveram sob o controle institucional penal, a política social tem como destinatárias aquelas pessoas em situação de “risco”, mais por sua condição étnica, social e cultural que por motivos outros, que eventualmente possam vir a ser clientes do sistema penal, mas ainda não o são. Não é por outro motivo que essas políticas, amparadas pela assistência social localizam sempre os focos de “violência”, nos termos acima mencionados, nos mesmos grupos que precisam estar sob o controle para que não excedam seu lugar na estrutura social. Em ambas exerce-se o controle social hierárquico, sob nomes diversos, a fim de garantir a “segurança” dos demais grupos sociais.
Já na estrutura contemporânea dos Estados neoliberais observa-se um distanciamento do discurso das políticas sociais e um alargamento das políticas repressivas, no encalço da velha crença legitimadora de que cada indivíduo, na sociedade, é o único responsável pelo seu “sucesso” na vida. Ou seja, os que não fazem parte dos grupos incluídos, estão nesta situação por desmerecimento e/ou por não se comportarem de acordo com o padrão moral dominante. Em assim sendo, ao Estado só lhe cabe a repressão a esses grupos, que além de imorais, podem também ser violentos. Neste contexto, o Estado de Bem-Estar Social dá lugar ao Estado Penal. As instituições de assistência –que anteriormente controlavam as populações carentes com benefícios previdenciários– são substituídas por agências propriamente repressivas. Esse desmonte da rede assistencial se realiza paralelamente ao incremento de investimentos na construção de presídios, ao aparelhamento da polícia, ao recrudescimento da legislação punitiva e à propaganda do terror urbano.
Neste cenário que estimula um imaginário de insegurança, numa tradição política que remonta às descrições hobbesianas do “estado de natureza”, grande é o avanço do Movimento de Lei e Ordem, uma política que não pode ser reduzida a um embasamento teórico estritamente racional, mas que pode ser depreendida daquelas políticas de segurança pública, legislativas e mesmo jurisprudenciais de natureza “emergencial” ou “excepcional” calcadas na radicalização da atividade repressiva como grande “remédio” para os mais variados males sociais que se tornam os “vilões” do momento. A suspensão de direitos políticos através de provimentos excepcionais transformou-se, inclusive, no dizer do filósofo italiano Giorgio Agamben, numa técnica de governo, numa prática essencial de gestão dos Estados contemporâneos. A equação é claríssima: para uma situação de desordem, de “guerra civil”, de conflitos internos, a resposta do Estado é a instauração de uma guerra civil legal (amparada pela lei), que permite a neutralização “não só de adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, resultaram não integráveis no sistema político”.[16] Note-se, entretanto, que se o Movimento de Lei e Ordem compõe uma tendência autoritária incorporada por setores sociais influentes, não se caracteriza por um conjunto coerente e articulado de medidas administrativas ou jurídicas, mas sim pela construção de uma resposta ocasional, de fundamento retributivo –“olho por olho, dente por dente”– e que peca pela sua irracionalidade intrínseca.
Nesse movimento de política criminal se reforçam, deste modo, os estereótipos da criminalidade, e por conseqüência, reforçam-se as estruturas repressivas, como forma de vender a sensação de segurança promovida pelo Estado. A representação oficiosa das políticas sociais de natureza repressiva muitas vezes é realizada pelas Organizações Não-Governamentais que, promovendo projetos em regiões favelizadas, visam afastar as pessoas em “situação de risco” do “mundo do crime”. Em grande parte, um belo discurso civilizatório que busca o controle dos grupos que oferecem risco às vidas “estáveis” da sociedade contemporânea. Se a violência aqui não é física, manifesta-se simbolicamente, pela transformação de um problema social e público em uma questão de adequação ou de “reciclagem” do indivíduo para o mercado. Seja qual for o discurso, por detrás, sub-repticiamente sustentando a cientificidade dessas políticas criminais, estão as pesquisas criminológicas, num afã cada vez maior para identificar o criminoso e auxiliar na receita “rápida”, sem “efeitos colaterais” e pretensamente eficiente do Estado Penal ou repressivo.
Já sob a perspectiva da produção da Criminologia da Reação Social e da Criminologia Crítica, outro passa a ser o fundamento das políticas criminais. Ora, se já se constatou o funcionamento seletivo e violento do sistema penal e seu alto grau de irracionalidade, não mais cabe a legitimação de uma política que visa a “defesa da sociedade”, quando essa “sociedade” é a representação de um grupo incluído nas esferas mais elevadas da estrutura social, e quando a “defesa” representa na prática a violação de direitos e garantias dos indivíduos sob esta estrutura. Essa Criminologia já não cumpre apenas uma função auxiliar na elaboração de receitas repressivas, mas antes se torna central para reflexão da própria repressão e, por conseqüência, para a reorientação de políticas capazes de minimizar a seletividade e a irracionalidade do sistema penal, elevando a possibilidade de proteção dos direitos fundamentais no processo de criminalização.
Sob essa orientação, três correntes principais se destacam: abolicionismo, minimalismo e garantismo.[17] Pode-se sistematizar, em termos gerais, o que pretende especificamente cada uma das orientações político-criminais, que partem da deslegitimação do funcionamento atual do sistema penal.
Quanto ao abolicionismo penal, melhor seria falar de uma perspectiva abolicionista, vez que não se pode encontrar uma abordagem metodológica uniforme ou um Movimento Abolicionista coeso. Os principais autores que adotam esta perspectiva são Louk Hulsman (Holanda), Thomas Mathiesen e Nils Christie (Escandinávia), e Sebastian Scheerer (Alemanha). A partir de suas concepções é possível demonstrar algumas idéias comuns a estes autores, ressaltando-se que algumas proposições não são compartilhadas por todos.
Normalmente confundem-se as propostas abolicionistas às propostas de abolição do cárcere ou abolição do direito penal, de forma simplificada e descontextualizada. Todavia, estas questões só ganham sentido quando entendidas enquanto parte do processo de abolição do sistema penal e de sua lógica punitiva, ou antes, de abolição do controle marcado pela cultura punitiva.[18] Este é, pois, um dos pressupostos diferenciadores da crítica abolicionista, pois o que está sendo problematizado não é o grau de violência do funcionamento do sistema penal, enquanto tal, mas a própria lógica de violência do controle punitivo em geral.
Assim, quando se fala de abolição do cárcere[19], não se pretende substituí-lo por outras práticas punitivas, consideradas talvez mais humanas ou mais progressistas, pois o abolicionismo rejeita um julgamento evolutivo da racionalidade punitiva –ou a procura por um sistema penal “melhor”–, já que ele busca a superação dessa própria lógica, através da extinção de um sistema social fundado na violência física.
Sob a perspectiva da abolição do direito penal, essa proposta não se dá de forma isolada e ingênua no sentido de abolição de uma instância do controle penal, enquanto se mantém em funcionamento todo o aparato repressivo restante. Isto recairia em uma generalização ainda maior do grau de violência.[20] Por isso, ela deve estar relacionada a uma proposta de abolição de toda a organização cultural e ideológica do sistema penal. É apenas sob essa perspectiva que pode se tratar de possibilidades abolicionistas do direito penal.
Consideradas estas ressalvas, podem ser expostas então as alternativas ao direito penal propostas pela perspectiva abolicionista. Segundo Larrauri, existem pelo menos três alternativas: a primeira se trata do informalismo, através do qual a resposta legal é produzida para cada caso a partir de uma negociação das partes envolvidas no conflito – deslocando-se as regulações legais até uma semi-autonomia das esferas sociais–, evitando-se assim a imposição de valores sociais; a segunda, parte de uma noção de lei que seja usada unicamente como marco de referência da forma pela qual deve resolver-se o conflito, sem a formulação prévia, entretanto, do conteúdo destas soluções; a terceira, trata-se da substituição da lei penal pela lei civil, dando-se, assim, uma ênfase na negociação, no rol da vítima e nas medidas de compensação e reparação.
Admite-se, portanto, a possibilidade de que os conflitos, que normalmente são construídos como “crimes” –advindo daí todas as conseqüências e respostas repressivas–, sejam percebidos como situações a serem tratadas de forma diversa, a partir de relações horizontais de composição efetiva das situações conflituosas, deslocando-se assim da lógica do castigo, para a lógica da restauração e da compensação. Desta forma, mais importante do que as propostas alternativas ao direito penal, já formuladas a partir da perspectiva abolicionista, e que obviamente estão sujeitas a críticas, está em jogo a atenção a ser dada ao processo no qual elas possam vir a ser implementadas. Ou seja, é relevante que tais propostas sejam construídas a partir da negociação entre os envolvidos na situação de conflito, fazendo frente às respostas meramente repressivas impostas verticalmente pelo poder estatal centralizado.[21]
A perspectiva do minimalismo penal, por sua vez, compartilha com as idéias abolicionistas –partindo da compreensão radical da irracionalidade do sistema penal–, da possibilidade de uma organização política que recorra a outras respostas em relação às situações de conflito, que não a mera repressão ou a normalização das condutas. Todavia, para os autores minimalistas, essa possibilidade pode ser entendida como uma “utopia concreta”, nas palavras de Alessandro Baratta, um dos precursores do minimalismo penal. De modo que este autor e Raul Eugenio Zaffaroni, outro representante desta política, podem ser entendidos como abolicionistas mediatos. Ou seja, não abandonam a perspectiva abolicionista, mas procuram encontrar meios de operacionalizar também o direito penal, hoje existente como importante discurso de poder.
Dentre os direcionamentos comuns destes autores, pode-se determinar em linhas gerais as seguintes diretrizes: operacionalizar perspectivas de políticas legislativas descriminalizantes, promover uma orientação de políticas de segurança pública não interventora, mas participativa e articuladora dos movimentos comunitários e, relativamente ao direito penal, radicalizar a proposta de torná-lo o espaço de racionalidade do sistema penal –lócus da irracionalidade e manifestação de poder–, como afirma Zaffaroni[22], ou construí-lo como espaço da garantia positiva dos direitos fundamentais, a fim de conter a violência punitiva e seletiva do próprio sistema penal, como afirma Baratta. Nesse sentido, o “programa consiste numa ampla e rigorosa política de descriminalização, e numa perspectiva final, na superação do atual sistema de justiça penal e sua substituição por formas mais adequadas, diferenciadas e justas de defesa dos direitos humanos”.[23]
Alessandro Baratta, ao apostar em um direito penal orientado por uma política criminal alternativa, propugna por um direito penal constitucional, que supere o paradigma liberal e seu princípio de igualdade, já desconstruído pela constatação criminológica da seletividade, e construa um direito comprometido com a proteção positiva e integral dos direitos fundamentais. Ou seja, não se trata mais de garantir uma igualdade jurídico-penal formal nem tampouco utilizar o direito penal como limite do sistema punitivo, mas antes produzir respostas que possibilitem a proteção integral das necessidades fundamentais dos indivíduos, que não passam simplesmente pela reação punitiva do Estado frente a agressões, mas por seguranças de ordem econômica, política, social, cultural. Sendo assim, não se pretende tornar o direito penal como o direito predominante nas garantias fundamentais, uma vez que os estudos criminológicos demonstraram que esse é um espaço de negação de direitos. O objetivo é integrá-lo de forma minimizada em uma política do Estado de garantia e segurança dos direitos fundamentais.[24]
Zaffaroni, por sua vez, produz sua reflexão a partir do pressuposto de que todo o sistema penal não tem uma justificativa racional, mas é, antes, simples manifestação de poder de grupos sociais e do Estado. Essa irracionalidade é representada pela aplicação seletiva e violenta das penas, que não se sustentam por nenhuma das teorias justificadoras, preventivas ou retributivas. É o que o autor denomina de teoria agnóstica da pena. Em sendo assim, o direito penal representa o lugar da possível racionalidade, de modo que através da teoria do delito e da pena se conceituem categorias dogmáticas que incorporem os dados da realidade e do conhecimento da criminologia da reação social. Assim, a teoria do delito passa a não ser mais compreendida como o pressuposto de definição e identificação de condutas criminosas. Há uma mudança de perspectiva que a nomeia como o filtro do exercício seletivo e irracional do poder punitivo.
Um exemplo importante desta contribuição está no conceito de culpabilidade como elemento valorativo na aplicação da pena. Tradicionalmente as teorias tendem a preencher esse conceito com a idéia de livre-arbítrio, amparadas no contratualismo moderno. Isso significa admitir que todos os homens e mulheres que vivem em sociedade são possuidores da liberdade de escolha, sob o ponto de vista filosófico. Conceito abstrato e formal –que, na maioria das vezes, fundamenta a aplicação da medida da pena–, é calcado na compreensão de que todo o indivíduo que realiza um delito é possuidor do livre-arbítrio e, portanto, poderia ter escolhido realizar outro ato não violador da lei penal. Assim, o juiz, em sua decisão, valora os crimes considerados mais gravosos (trata-se normalmente de uma valoração bastante vinculada ao grupo social, étnico, de gênero e cultural em que está incluído) e, nesta medida, acaba por avaliar a maior ou menor culpabilidade do agente. Todavia, esse conceito esbarra em ao menos duas questões. Uma de ordem filosófica, que não permite avaliar em um processo decisório quem efetivamente tem mais liberdade de escolha do que outrem, e outra, de ordem sociológica, que se expressa no entendimento de que aquele que está sendo punido foi selecionado em detrimento de outros eventuais autores de delitos, o que põe em xeque a legitimidade estatal de puni-lo “merecidamente” segundo um abstrato conceito de livre-arbítrio.
De acordo com o conceito desenvolvido por Zaffaroni, o conteúdo da culpabilidade modifica-se, no sentido de incorporar os dados da seletividade do funcionamento do sistema penal. Concretiza-se o coeficiente de reprovação através da análise do grau de vulnerabilidade do indivíduo perante o controle penal, buscando, desta forma, minimizar e seletividade e permitir uma reação punitiva menos irracional do Estado. Essa elaboração teórica visa se apropriar do dado inegável de que a criminalização ocorre preponderantemente apenas sobre alguns setores da sociedade. O estado de vulnerabilidade dos indivíduos é entendido como o correspondente aos estereótipos de criminalidade. Ou seja, um indivíduo de grupo social baixo, pertencente a um grupo étnico marginalizado, por certo faz parte de um setor da população que possui um estado elevado de vulnerabilidade perante o controle punitivo. Esse dado deve ser descontado da avaliação da situação de vulnerabilidade, resultante do grau de esforço do indivíduo para se colocar em uma posição vulnerável ao controle penal. Por exemplo, aquela pessoa pertencente já a um grupo vulnerável provavelmente realizará menos esforço para ser controlado pelo sistema penal: basta um delito de pouca danosidade social ou mesmo a suspeita dele, para que se torne um provável cliente do sistema. No entanto, uma pessoa de um grupo social, étnico e cultural apartado do estereótipo de criminalidade, precisará realizar um delito de modo muito mais contundente para se vulnerabilizar perante o sistema. Por exemplo, embora ela viole a lei penal cotidianamente, isso não será motivo para a sua criminalização, a não ser que entre em uma sala de cinema em um shopping center e realize homicídio contra os espectadores. Efetuou, portanto, um esforço maior para se colocar em situação de vulnerabilidade. Essa seria a possibilidade de medida da aplicação estatal da pena. Sem que isso de modo algum signifique legitimar a atuação punitiva do Estado, mas antes minimizar sua irracionalidade.[25]
O garantismo penal, elaborado por Luigi Ferrajoli, é a terceira corrente de política criminal alternativa que parte também de alguns dados da Criminologia da Reação Social e Crítica para elaborar propostas políticas de funcionamento do sistema penal. O que a diferencia das anteriores é, dentre outras questões, o fato de contrapor-se à perspectiva abolicionista, por entender que o sistema penal nas sociedades modernas será sempre necessário, não representando apenas uma etapa a ser superada por outros modelos de solução de conflitos. Para justificar-se, afirma que a pena não tem um caráter irracional, mas efetivamente cumpre uma função preventiva, sob dois aspectos. Não se trata mais de uma prevenção ancorada na idéia de defesa social, mas na prevenção como forma de proteção do próprio autor do delito. De um lado, ela realiza uma função de prevenir os delitos, determinando um quantum mínimo da pena. De outro lado, ela funciona como forma de prevenir a reação vingativa privada da sociedade, protegendo, mais uma vez, o cidadão de uma punição muitas vezes exacerbada.[26] Assim, a pena continua guardando um grau de racionalidade e funcionalidade, que deve ser mantido a partir de uma reformulação da atuação do sistema penal.
Nesta reformulação, o direito penal assume o papel da lei do mais fraco, suplantando a proposta de defesa social generalizada para a defesa do mais fraco, que será representado por papéis diversos de acordo com o momento da intervenção do sistema penal: no momento do delito, o direito penal deve agir na proteção da vítima; no momento do processo, na proteção do acusado; e no momento da execução da pena, na proteção do réu. Para tanto, o garantismo penal reforça a idéia de segurança jurídica do indivíduo, resgatando em grande parte os princípios iluministas, e no seu dizer, ultrapassando-os em alguma medida. Sob esta perspectiva, propõe para o sistema penal, em sentido amplo, uma drástica despenalização de delitos considerados menores (normalmente penalizados com pena pecuniária e as contravenções de modo geral), e o desencarceramento da maioria dos delitos, reservando o cárcere para crimes mais gravosos aos bens jurídicos fundamentais: vida e integridade física, e destinando aos demais penas alternativas à privativa de liberdade.[27]
Portanto, o garantismo penal se afirma como política criminal que propõe a formulação de um direito penal mínimo, amparado em princípios garantidores dos direitos individuais. Todavia, essa proposta diferencia-se das propostas minimalistas sob dois aspectos. Em primeiro lugar, pela negação da abolição do sistema penal e, em segundo lugar, pela crença garantista de que a utilização do direito penal seria capaz de assegurar a proteção dos direitos fundamentais, afirmando, portanto, um garantismo positivo com predominância penal, no dizer de Alessandro Baratta. Já, segundo o minimalismo, a garantia dos direitos fundamentais deve se dar sem a predominância penal, uma vez que não se ignora a característica estrutural deste Direito ser, por excelência, o campo de negação e supressão de direitos.[28]
Considerações Finais: Aprendendo a pensar o direito penal
Apreendidas as possíveis propostas de reformulação das políticas criminais, e do próprio pensamento e aplicação do direito penal, evidenciam-se as diversas formas de manifestação e compreensão da dogmática jurídico-penal. Mesmo que se entenda que a capacidade de autotransformação desta dogmática seja bastante limitada, tendo em vista suas características estruturais, não se pode negar suas possibilidades variadas de fundamentação teórica e de instrumentalização de aplicação do direito penal.
A estrutura dogmático-penal preponderante, como a teoria do direito penal adotada no Brasil demonstra, também através de seus manuais tradicionais de Direito Penal, adere a uma perspectiva que simplesmente nega os resultados do conhecimento obtido pela criminologia da reação social e pela criminologia crítica. Seguem então sendo modelos que repetem as fórmulas de um direito igual e não seletivo, de uma pena com funções preventivas de defesa social. Isso resulta em concepções que acabam por agravar a seletividade penal e reproduzir a função latente do sistema penal, qual seja a reprodução de uma ordem hierárquica responsável pela perpetuação da desigualdade social.
Por exemplo, ao reproduzir-se, na teoria penal, o senso comum da criminologia positiva referente ao estereótipo do homem ontologicamente criminoso, ignorando o processo de construção social seletiva de sua identidade, o direito reproduz e incorpora circunstâncias para o aumento da aplicação da pena, que perpetua a ordem seletiva e a hierarquia social. Vejam-se as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal Brasileiro, que deverão ser levadas em consideração para a dosimetria da pena, segundo o legislador infraconstitucional: circunstâncias como conduta social, personalidade e antecedentes do condenado. Todas elas acabam por possibilitar a reprodução e sobrecriminalização dos grupos desviantes estereotipados, uma vez que, sob esses critérios, cometidos o mesmo crime por dois indivíduos, aquele que for desempregado, alcoólatra, acusado de bater na mulher e levar uma vida promíscua, terá uma pena mais repressiva que aquele, considerado “socialmente” como menos perigoso, cidadão de bem, pai de família, sócio do Rotary Club. A lei penal acaba, portanto, cumprindo seu papel de agravar a dessocialização, através de penas mais repressivas, das pessoas que na hierarquia social estão já rebaixadas.
Outro exemplo, existente em nosso Código Penal pátrio, referente à criminalização de condutas consideradas desviadas, diz respeito à contravenção penal da vadiagem, prevista no decreto-lei de 3.688/41, art.59. Criminaliza-se, sob esse aspecto, em nome da suposta “defesa social”, sobrepujando princípios garantistas básicos, como a necessidade de lesão de bem jurídico alheio (princípio da lesividade) ou vedação de criminalização de condutas consideradas meramente imorais (princípio da secularização), o fato de alguém “entregar-se à ociosidade”, sem ter proventos que lhe assegurem sua ociosidade. Nesse sentido, o direito penal está criminalizando uma conduta do ponto de vista de sua moralidade, guardando nesse caso, o moral do trabalho, vigente nas sociedades capitalistas, reprodutor do velho jargão, pobre bom é pobre honesto e trabalhador. Violando sistematicamente princípios de ordem constitucional, o direito penal serve assim para a individualização (prática de vadiagem) de uma problemática de natureza macroeconômica (desemprego estrutural).
Sendo esse o direito penal oficial, e tendo a dogmática penal referendado esses (pré)conceitos, os alunos dos cursos de Direito, sem terem acesso a qualquer reflexão quanto ao funcionamento do sistema penal, darão continuidade de modo irrefletido a essas opções político-criminais. Todavia, a partir do aporte criminológico, especialmente da Criminologia da Reação Social e Crítica, torna-se possível incorporar ao pensamento penal os dados da realidade do funcionamento do sistema (tais como a seletividade e alto grau de violência), e buscar na sua aplicação, afastar, por argumentos jurídico-constitucionais, e posicionamentos político-criminais, a reprodução irrefletida do controle social que reproduz a desigualdade. Por exemplo, pode-se acompanhar uma doutrina e uma jurisprudência atual que vêm dando corpo ao argumento da inconstitucionalidade da avaliação dos antecedentes criminais e da conduta social do condenado no aumento da pena. Elas são consideradas circunstâncias cujo objeto de análise agride princípios tais como: a legalidade (aumentando a pena por circunstâncias que por si só não são delituosas como, por exemplo, o comprovado alcoolismo do condenado), o devido processo legal (aumentando a pena por circunstâncias que, para serem criminalizadas, necessitariam de um novo processo, resguardada a ampla defesa e o devido processo legal como, por exemplo, o aumento da pena em decorrência de suspeita de o autor bater em sua mulher), a igualdade material (aumentando a pena para aqueles condenados que já passaram por um processo de seletividade em relação aos demais autores de delitos, por pertencerem a grupos vulneráveis ao controle penal).[29]
Esses são exemplos de uma transformação na aplicação prática do Direito Penal, podendo-se mesmo tratar de transformações no próprio pensar da teoria penal. Isso porque, um aluno que compreende as diversas funções atribuídas ao Direito Penal, de acordo as várias concepções de política-criminal, ao se deparar com o estudo de diferentes autores de Manuais de Direito Penal, pode entender, por si, os posicionamentos doutrinários divergentes de cada um deles. Não por coincidência, os autores mais tradicionais, que compartilham da noção de defesa social, também serão que aqueles que adotarão perspectivas mais punitivas e repressivas no trato da dogmática penal. Por outro lado, os autores que, apropriando-se do pensamento criminológico da reação social, compreendem o direito penal como, por exemplo, redutor da seletividade e violência do sistema penal, optarão coerentemente por posicionamentos doutrinários mais garantidores dos direitos fundamentais dos autores de delitos selecionados pelo sistema.
Portanto, a Criminologia acaba por oferecer ao aluno o instrumental necessário para sua compreensão do Direito Penal. Mais do que reproduzir posicionamentos majoritários ou legislações infraconstitucionais defasadas, o acadêmico passa a ter a possibilidade de entender o fundamento desses posicionamentos, questiona-los, se entender necessário, e mesmo optar por outros não difundidos nos tradicionais manuais. Não se pretende, com isso, a formação de juristas que adotem esse ou aquele entendimento jurídico, mas que sejam capazes de refletir sobre todos eles, e autonomamente, ciente de suas conseqüências, optar pelo que entender melhor. Não se trata de aprender direito penal (teoria e legislação), mas de aprender a pensar o direito penal, e com isso transpassar a barreira da repetição, para a possibilidade da reflexão. Nesse sentido, a Criminologia é uma disciplina central para a construção de uma reflexão mais autônoma sobre o direito em geral e em relação à dogmática penal em particular. Prescindir dela é abandonar o compromisso de realizar o direito com independência.
Notas e Referências:
[1] Para referência da discussão sobre o paradigma do conhecimento jurídico, alguns autores podem ajudar numa aproximação. A começar, Santos ao tratar da crise do paradigma de ciência dominante, que é constitutivo da produção da “ciência do Direito”, refere-se à produção do conhecimento de forma estanque e isolada, remetendo a uma relação entre avanço da ciência moderna e o aumento da especialização do conhecimento. (Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. Oração da Sapiência. Coimbra, [s.n.], 1986. Separata, p.20-23). Miaille, por sua vez, identifica na “ciência jurídica” obstáculos tais como o idealismo jurídico (decorrente de uma representação da vida social que toma como realidade uma certa imagem transmitida pela sociedade, de modo que nenhuma instituição jurídica ou noção de direito se encontra relacionada com o fenômeno social que a produziu, mas antes se apresenta de forma universal e a-histórica), e sua aparente independência jurídica, diretamente relacionada à compreensão tecnológica do Direito. (Cf. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 2ºed. Lisboa: Ed. Estampa, 1989. p. 35-60). Andrade atribui esses limites estruturais do discurso da ciência jurídica especialmente às matrizes epistemológica e política de produção desse conhecimento, quais sejam o positivismo e o liberalismo, respectivamente. A fim de satisfazer os requisitos de “cientificidade” de seu paradigma epistemológico fundante, qual seja, o positivismo, “a pretensão da ciência jurídica dogmática é, assim, a de constituir-se como um saber autônomo e auto-suficiente (sistemático) que encontra explicação em si mesmo (egocêntrico) e sendo suscetível de uma análise imanente, que não remeta a elementos extra-normativos, determinando uma exterioridade da dinâmica do Direito às mudanças e conflitos que constituem a sociedade”. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: do Direito aos Direitos Humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993. p. 32). Os ideais políticos liberais são também, por sua vez, parte constitutiva da matriz da cultura jurídica que determina a possibilidade e os limites de produção do conhecimento jurídico. Em assim sendo, a “visão liberal contribui, ao mesmo tempo, para enfatizar o aspecto consensual das relações sociais (estabelecendo o consenso em torno do monopólio da força assumido pelo Estado) e a individualização dos conflitos proporcionando sua conseqüente desvinculação das relações de classe na sociedade, ou seja, das assimetrias sociais capitalistas”. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania, 1993. p. 35; cf. também ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática Jurídica: escorço de sua configuração de identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996).
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 212.
[3] BARATTA, Alessandro. Por una teoría materialista de la criminalidad y del control socia. Estudios Penales y Criminológicos, Santiago de Compostela, nºXI, p.15-68, 1989. p. 21.
[4] Uma das obras que influenciou sobremaneira os estudos da integração positiva entre as diversas forma de controle social foi a obra de Althusser. O autor, rompendo com a teoria marxiana tradicional, passou a compreender que o Estado não era apenas formado por aparelhos repressivos, mas também por aparelhos ideológicos, que embora difusos na sociedade, apresentavam uma unidade ideológica, e em cujo espaço se deveriam travar as lutas de classes, já que ele oferecia um campo objetivo de contradições. (Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. Joaquim J.M. Ramos. Portugal: Ed. Presença, 1978). Na constituição do controle punitivo, um dos principais trabalhos que ressaltou a função positiva e o papel da ideologia, entendida aqui enquanto sistema de idéias, ou do saber, foi Foucault em sua obra “Vigiar e Punir”, que será melhor abordada no capítulo posterior. Também Melossi e Pavarini, na obra “Cárcere y Fabrica” identificam um elemento comum de reprodução dessas duas instâncias do controle, qual seja, a disciplina. Sobre o controle penal enquanto subsistema do controle social cf. também, BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p.171-183; BERGALLI, Roberto. La ideologia Del control social tradicional. In: Doctrina Penal. Teoria y Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, nº3/12, p.805-818, [19..]; CASTRO, Lola Anyiar de. Criminología de la liberación. Maracaibo: Universidad del Zulia., 1987; COHEN, Stanley. Visiones de Control Social. Delitos, Castigos y Clasificaciones. Trad. Elena Larrauri.Barcelona: PPU, 1988; PAVARINI, Massimo. Control y Dominación: teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. 7ºed. Trad. Ignácio Muñagorri. México: Siglo Veintiuno, 1999; DOS SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.43-61.
[5] JÚNIOR, João Farias. Manual de Criminologia. 2ª. Edição, 2ª. Tiragem. Curitiba: Juruá, 1996, p. 21. Invariavelmente, nos manuais tradicionais de criminologia, dos quais este é um exemplo a se destacar pela erudição, a determinação do objeto do estudo criminológico não se afasta suficientemente a ponto de ensejar uma comparação mais detalhada. Um exemplo do que é estudado também na Europa, especificamente na Espanha, recentemente traduzido no Brasil, define o objeto da criminologia como sendo o “estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo” que reconhece o aporte sociológico – já que estuda o controle social –, mas, como o próprio autor enfatiza, não “renuncia, porém, a uma análise ‘etiológica’ do delito (...) no marco do ordenamento jurídico como referência última.” Cf. MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia – uma introdução a seus fundamentos teóricos. Tradução de Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp. 21-3.
[6] Enrico Ferri, senador fascista de Mussolini nos anos 20 do século passado, assume claramente a posição do estudo do crime como fenômeno natural social, através de uma aliança mais ou menos orgânica com as ciências antropológicas e sociológicas, definindo a criminologia como uma espécie de “medicina social” que, para erradicar a doença do seio da sociedade necessita de “remédios” só alcançáveis a partir da investigação das causas desse “fenômeno de patologia social” que é o crime. Cf. FERRI Enrico. Sociología criminal. Trad. António Soto y Hernández. Madri: Centro Editorial de Góngora, 19(??), p.22.
[7] Cf. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica – do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 98.
[8] FOUCAULT, Michel. Sobre a Prisão. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 132-3.
[9] Cf. FERRI, Enrico. Sociologia criminal. Op. Cit.
[10] Cf. PAVARINI, Massimo. Control y Dominación. Op. Cit.
[11] Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Op.Cit.
[12] Cf.VON LIZT, Franz. A teoria finalista do Direito Penal. Trad. Rolando Maria da Luz. Campinas: LZN, 2003.
[13] Cf. BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Trad. Ana Lucia Sabadell. Universidade de Saarland. Alemanha. Mimeo.
[14] Cf. ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. Trad. Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
[15] Cf. WACQUANT,Loïc. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[16] AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione (Homo sacer, II, i). Torino: Bollati Boringhieri, 2003, p. 11.
[17] Há uma grande divergência entre os autores para nomear as respectivas correntes alternativas de políticas criminais, mesmo porque em muitos aspectos a uniformidade das diretrizes é mais resultado de uma sistematização dos que pesquisam os autores dessas políticas do que o esforço entre os pensadores das políticas criminais.
[18] Centrada a discussão na abolição da cultura punitiva, compreende-se como infundada a crítica que se faz, em última instância, à perspectiva abolicionista, apresentada aqui nas palavras de Paulo de Souza Queiroz: “é realmente pouco provável que as mesmas reações (não punitivas) pudessem ser pacificamente aceitas, se, ao revés de um simples dano, outro fosse o crime, um crime, por exemplo praticado com violência (...).” (QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal: lineamentos para um Direito Penal Mínimo. Belo Horizonte: Del Rey, 1998). Ora, o que se pretende é abolir a lógica punitiva que constitui funcionalmente a sociedade atual, e que, de forma alguma é naturalizada, mas antes, é resultado de uma construção cultural. A questão que se coloca é: Por que não se pode pensar em resposta não-violenta a casos individuais de conflitos violentos, como homicídio e seqüestro se, de fato, normalmente não há qualquer reação violenta a ações socialmente mais danosas, que provocam quantitativamente um número maior de mortes e agressões, como é o caso da corrupção de dinheiro público, da mobilidade do capital transnacional especulativo, e de outras ações de caráter macroeconômico e estrutural?
[19] Embora o movimento de desconstrução epistemológica do controle penal tenha se iniciado a partir das críticas e da análise das reais funções do cárcere, que vão desde a análise marxista de Rusche e Kirshheimer, na obra “Punição e estrutura social”, na década de 30 até as obras fundamentais de Foucault, em “Vigiar e Punir: história da violência nas prisões” e Melossi e Pavarini, em “Carcel y Fabrica”, ele se estendeu à deslegitimação epistemológica de todo o controle penal, radicalizando-se então sob a perspectiva abolicionista de problematização da lógica punitiva presente no controle social.
[20] Partindo desta premissa, é que Zaffaroni propõe um aumento do âmbito do direito penal, ao invés de uma limitação dele, entendendo assim, o direito penal não como o direito de punir do Estado, mas antes o limite deste poder punitivo. Ele entende, portanto, o direito penal como discurso racionalizador de poder do qual se pode lançar mão como forma de ampliação dos espaços de contenção da violência punitiva do Estado. Cf. ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5ºed. Rio de Janeiro: Revan, 2001). No entanto, por outro lado, não parece que este limite ao poder de punir não possa ser funcionalizado por outra lei, como a lei civil, tendo em vista todo o caráter altamente estigmatizador e seletivo do direito penal.
[21] O fortalecimento do vínculo comunitário, a partir de uma perspectiva abolicionista, deve estar ligado necessariamente a uma concepção de sociedade diferenciada da sociedade moderna capitalista. Pois, assentado na teoria política moderna que constrói a concepção de uma sociedade consensual, formada por indivíduos atomizados e apolíticos, a única maneira de construir os conflitos é através de uma leitura descontextualizada que recorra a um poder político centralizado que imponha decisões para um conjunto de indivíduos desmobilizados. Nega-se assim o conflito e a diferença, e a única resposta estatal possível é a repressão. Eis aqui porque a perspectiva do Movimento da Lei e da Ordem tem natureza hobbesiana. Reprime-se o que não se aceita, de forma que a repressão é potencializada, subsumindo-se em um sistema eminentemente violento. Somente a partir do entendimento da sociedade constituída pelo conflito e pela diferença é que o estabelecimento de um reforço comunitário não recai em uma difusão e intensificação da intervenção e do controle do crime.
[22] Cf. ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas, p. 245-248.
[23] BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal. Trad. Ana Lucia Sabadell. Universidade de Saarland. Alemanha. Mimeo. p.17.
[24] Cf. BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Nº29, ano 8, IBCCrim, Rio de Janeiro, jan./mar.2000.
[25] Cf. ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas, p.257-281; BUZZI, Juan Manuel Fernández Buzzi e LORAT, Martin Daniel. La culpabilidad por la vulnerabilidad como medida de la pena, o la crueldad estatal em “justa” medida. XIV Congreso Latinoamericano de derecho penal y criminologia. Mimeo.
[26] Hulsman utiliza como argumento para questionar essa suposta função da pena, os estudos das cifras ocultas da criminalidade. Ele afirma que se apenas 5% das condutas delituosas possuem uma resposta punitiva estatal, isso quer dizer que o sistema penal já está abolido, e que para os demais 95% dos delitos não há uma vingança privada generalizada. Ou seja, se fosse para imperar o caos na ausência da pena, ele já deveria estar ocorrendo.
[27] Cf. FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan. Ano 7, nº12, 2ºsem.2002. p.31-40; FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.259-497.
[28] Cf. crítica de Alessandro Baratta em: BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Nº29, ano 8, IBCCrim, Rio de Janeiro, jan./mar.2000, p.48.
[29] Cf. CARVALHO, Salo de. Críticas à execução penal: doutrina. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
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* Este texto foi escrito no ano de 2004 e publicado originariamente em CERQUEIRA, Daniel Torres e FRAGALE FILHO, Roberto (org.). O ensino jurídico em debate. São Paulo: Millenium, 2007.
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Camila Cardoso de Mello Prando é Bacharel em Direito (UFPR), Mestre e Doutora em Direito Penal (UFSC). Professora de Criminologia e Direito Penal da UnB.
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Rogerio Dultra dos Santos é Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense.
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Imagem Ilustrativa do Post: Skateboard Park // Foto de: Rusty Clark - On the Air M-F 8am-noon // Sem alterações
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