POR UMA MEDIAÇÃO RIZOMÁTICA  

29/01/2021

 Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

A primeira leitura de rizoma[i] (DELEUZE e GUATTARI, 1995) despertou de imediato ao nosso olhar uma identificação de seus contornos com a mediação. Na tentativa de promover uma maneira alternativa de produção de conhecimento, Deleuze e Guattari apresentam o método que chamam de agenciamento, que corresponde a uma outra forma de leitura das coisas, de compreensão destas, pretendendo produzir a superação de uma dualidade considerada pelos autores dominante como método de produção científica, substituindo-a por uma noção de multiplicidade.

Partindo dessa lógica de pensamento, visualizamos uma identificação dessa teoria com o conceito de mediação proposto por Warat (2004)[ii]. Foi quando encontramos a proposição de Lins (2005) para o desenvolvimento de uma pedagogia rizomática, que consistia no que chamou de “Mangue’s School”, representando a construção de uma forma de ensinar artística e criadora. Sugestionadas por essa tese, tivemos a ideia de aplicar a mesma maneira de pensar à mediação, método de resolução conflitual acolhido e fomentado no sistema processual civil pátrio como forma de promoção do acesso à justiça, sendo esse o objetivo do presente artigo.

Pretendemos, pois, a partir de uma análise crítica dos conceitos encontrados em Deleuze e Warat visualizar a mediação como corpo sem órgãos, a fim de colocar em evidência sua principal característica, a interdisciplinaridade. O transformar de saberes em sabores de Lins (2005) parece-nos fazer todo o sentido quando transportado da pedagogia para a mediação, sendo possível, inclusive, que uns se misturem com outros (saberes, sabores, pedagogia, mediação) nas cadeias rizomáticas de Deleuze e Guattari. Nada de raízes que apreendem, e sim, a fluidez que dá movimento.

Considerando essa condição, o presente texto propõe-se a transitar entre as formas de pensar confrontadas por Deleuze e Guattari, a fim de enquadrar o estudo da mediação como mais adequado se feito sob o método rizomático. Isso devido ao seu caráter transformador, que demanda a superação da ideia de imposição de regras fixas, de amarras que engessam sua realização a ponto de desnaturar sua finalidade, a de solucionar o conflito em sua origem, e não, apenas, superficialmente.

POR QUE UMA MEDIAÇÃO RIZOMÁTICA?

Na concepção de Warat, mediação é arte. É a arte de relacionar-se, é a arte de resolver conflitos tendo em vista a concepção do outro, é a arte de colocar o amor sobre todas as coisas diante de uma situação conflituosa. Nas palavras dele, mediação é:

A inscrição do amor no conflito/

Uma forma de realização da autonomia/

Uma possibilidade de crescimento interior através dos conflitos/

Um modo de transformação dos conflitos a partir das próprias identidades/

Uma prática dos conflitos sustentada pela compaixão e pela sensibilidade/

Um paradigma cultural e um paradigma específico do direito/

Um Direito da outridade/

Uma concepção ecológica do Direito/

Um modo particular de terapia/

Uma nova visão da cidadania, dos direitos humanos e da democracia.

(2004, pp. 67-68)

A confluência de tantas vertentes não poderia jamais ser tratada sob a ótica binária, do confronto de dicotomias do qual se vale a ciência e suas bases estruturais. Foi a partir dessa visão que identificamos no rizoma um aliado na busca por uma definição de mediação que pudesse exprimir todos os conceitos que ela é capaz de abraçar.

A forma de pensar arbórea reflete uma visão limitada das coisas, interioriza, e, paradoxalmente, afasta-nos da própria natureza[iii]. É a esse método que se opõe a ideia de Deleuze e Guattari, que nos apresentam o rizoma como um sistema em que as heterogeneidades encontram conexões entre si, que se constrói a medida que vai se realizando, e não, que se desenvolve em cima de estruturas pré-estabelecidas (1995).

Platôs e agenciamento: o corpo sem órgãos

Na proposta rizomática, aparece a figura do platô, que corresponde a “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 15). A leitura do conceito encontrado em Warat, acima transcrito, denuncia como são diversos os conceitos que ele põe em um mesmo platô como forma de definir a mediação: amor, arte, democracia, Direito.

Para Warat, são características gerais da mediação a sensibilidade, a compaixão, a alteridade, o contágio e o diálogo (REBOUÇAS, 2010, pp. 188-189). Nesse caminho, em sendo um mecanismo utilizado para solucionar conflitos, devemos ressaltar que esses conflitos, segundo a teoria em exame, não devem ser vistos sob uma ótica negativa, como poderíamos nos ver tentados a fazer.

Enxergar o conflito como uma chaga que reclama a cura aparece para nós como uma atitude capaz de limitar as potencialidades da mediação. Em verdade, a mediação reconhecida por Warat, apresenta foco na aprendizagem e na subjetividade dos envolvidos (REBOUÇAS, 2010, p. 188). Trata-se, como podemos concluir, de uma visão que transcende ao óbvio, ao comum, ao simples desejo de pôr fim a uma querela entre as partes, trata-se de um projeto que possui referencial coletivo (idem) e visa a produzir efeitos perante toda a sociedade.

Podemos ir mais além, inclusive. O diálogo, por exemplo, é incompatível com uma cultura de competitividade que se revela através de posturas defensivas comuns na comunicação entre pessoas ou grupos (MUSZKAT, 2008, p.63) que são fomentadas pela maneira de pensar hieraquizada em uma estrutura ramificada e sólida. Cientes dessas circunstâncias, observamos que, ainda que se tente introduzir a multiplicidade no sistema arbóreo, a fim de mitigar a forma dicotômica de pensar, essa inserção vai se constituir em um “aborto na raiz principal” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 3). “Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação” (idem, p. 11), de modo que não é possível, nele, fugir-se a uma ideia de centro de controle das ações que dele emanarem.

No rizoma, por outro lado, não temos ramificações dependentes de um ponto (raiz), mas ligações interdependentes entre si e independentes ao mesmo tempo. Temos as chamadas linhas de fuga, que garantem movimentos de territorialização e desterritorialização, que colocam os chamados agenciamentos – conjuntos de linhas que se interligam em velocidades diversas (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 2) – em conexão uns com os outros.

Considerada como agenciamento, a mediação está interligada a outros agenciamentos. Os planos em que ocorrem esses agenciamentos são nomeados pela dupla pensadora do rizoma de corpos sem órgãos, nos quais se manifestam as singularidades a serem observadas (ROLNIK, 2000, p. 453).

Qual seria o corpo sem órgãos da mediação? “Há vários, segundo a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade própria, segundo sua possibilidade de convergência sobre um ‘plano de consistência’ que lhe assegura a seleção.” (1995, p. 2) E, da mesma forma, a mediação está em relação com outros corpos sem órgãos. Ela mesma pode ser vista como uma linha de fuga do platô que podemos denominar acesso à Justiça, se considerada como alternativa à via judicial propriamente dita.

As pessoas levam seus desejos a um sistema judicial que se apresenta como multiportas. Este, como sugerido por Frank Sander, em 1976, corresponde a uma organização em que o jurisdicionado teria a sua disposição, para solução de conflitos que trouxesse ao conhecimento do Estado, não apenas a via judicial, mas também outros mecanismos disponíveis, a exemplo da conciliação e da mediação (CABRAL, HALE e PINHO, 2016, p. 42).

Sobre esse corpo os agenciamentos se fazem e se desfazem (DELEUZE, 1996). O órgão judicial constitui um platô, a mediação outro platô, assim como a conciliação, ou qualquer outra forma de resolução conflitual, que se intercomunicam e intracomunicam através de agenciamentos, linhas de fuga, que territorializam e desterritorializam.

Para Warat, como a mediação, mais do que um método de solução conflitual, é um instrumento para a transformação do indivíduo, e quiçá, de toda uma coletividade (2004, p. 62). Nesses devires para entender o outro, a nós mesmos, a mediação reclama uma interpretação rizomática.

Os devires da mediação

Uma característica define o rizoma: “Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a outro e deve sê-lo” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 5). Se pensarmos que a mediação demanda ligações e vínculos, não conseguimos nos afastar de uma visualização rizomática de seus conteúdos. A palavra vínculo, inclusive, é tratada como indicativo da aplicação da mediação pelo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).

Quanto à forma de se fazer mediação, não podemos apontar uma maneira ideal para a prática. O que existem são técnicas que se misturam e se combinam, e que são usadas entre as próprias partes com a ajuda de um facilitador que não interfere no resultado.

Seguindo nesses caminhos, a mediação é interdisciplinar por excelência, uma vez que seu viés transformativo não comporta uma visão compartimentada dos desejos confrontantes. O tratamento do conflito, cujo conceito carrega, em si, a complexidade como núcleo fundamental, demanda uma atitude que vai além da mera mistura indiscriminada de conhecimentos.

Além disso, “Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer que ele retomará seguindo uma ou outra de suas linhas” (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 6), essas chamadas linhas de fuga fazem parte do rizoma, “não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.” (Idem, p. 7)

Por fim, “o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificação, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (Ibidem, p. 15). A mediação também é tudo isso, deve ser fluida, deve promover o empoderamento das partes para que estas mesmas encontrem a solução adequada para seus desejos.

A mediação nunca será uma cópia, extraída de um modelo. Ao contrário, trata-se de um instituto que busca seus próprios caminhos, em que se dá espaço para a criação, para a desconstrução e para a reconstrução, de relações, de conceitos, das suas próprias estruturas.

Como consequência, temos que na forma proposta por Warat, a mediação é aliança, ao tempo em que o rizoma de Deleuze e Guattari, é intermezzo, ou seja, intermeio, inter-mediação. Intermediar desejos, encaminhando-os no sentido de solucionar conflitos de maneira a promover a transformação do indivíduo: perfeita combinação, adequação cabível e pertinente.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todas as linhas lidas nos principais textos em análise – Deleuze e Guattari e Warat – víamos devires que transitavam perfeitamente entre os conceitos em debate – mediação e rizoma. A proposta de uma mediação como um método interdisciplinar que procura conferir empoderamento às partes para torná-las aptas a resolverem seus próprios conflitos, e, mais do que isso, a visão de uma mediação capaz de promover a transformação, não só dos conflitos, mas das próprias pessoas, ao que nos parece, não comporta uma análise dicotômica, enraizada, presa a uma estrutura central que não facilitasse a fluidez que o contexto reclama.

Visualizada a convergência entre os elementos de uma e outra teoria, procuramos demonstrar a adequação da forma de pensar apresentada por Deleuze e Guattari ao estudo do referido meio de solução conflitual. Os princípios por eles proclamados como determinantes para a configuração de um rizoma apresentam uma coerência inafastável frente às condições em que a prática da mediação transformadora de Warat atinge seu ápice de funcionamento.

Foi o que se procurou demonstrar ao longo deste artigo. Ao seu final, resta-nos, então, concluir que, diante da complexidade conceitual que carrega esse instrumento de resolução não adversarial de conflitos, uma estrutura de pensar que não respeite sua multiplicidade, seu caráter de mutação constante, não se adequa a suas finalidades e o engessa desnecessariamente.

 

Notas e Referências

BRASIL, República Federativa do. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. (DOU de 17/03/2015). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 17. Ago.2020.

CABRAL, Trícia Navarro Xavier; HALE, Durval e PINHO, Humberto Dalla Bernardino. O marco legal da mediação no Brasil: comentários à lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. São Paulo: Atlas, 2016.

DELEUZE, Gilles. Desejo e prazer. Cadernos de subjetividade, p. 13-25, 1996.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. Trad.: Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Mil platôs, v. 1, p. 11-38, 1995.

LINS, Daniel. MANGUE´S SCHOOL OU POR UMA PEDAGOGIA RIZOMÁTICA. Educação & Sociedade, v. 26, n. 93, 2005.

MUSZKAT, Malvina. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. 2ª ed. rev. São Paulo: Grupo Editorial Summus, 2008.

REBOUÇAS, Gabriela Maia. Tramas entre subjetividades e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os sistemas de resolução de conflitos. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2010.

ROLNIK, Suely. Esquizoanálise e antropofagia. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora, v. 34, p. 451-462, 2000.

WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004

[i]  O presente estudo encontra-se fundamentado na introdução da obra Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, intitulada Rizoma. Em sendo assim, para fins de tornar a leitura do texto menos recortada, por vezes, abster-nos-emos de registrar citações ao longo do trabalho, deixando claro, desde já, que a versão estudada corresponde ao texto de 1995, traduzido por Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, conforme referenciado ao final deste artigo.

[ii] A mesma observação pertinente à obra de Deleuze e Guattari é aplicável ao texto de Warat que serviu como base para o estudo.

[iii]“A natureza não age assim: as próprias raízes são pivotantes com ramificação mais numerosa, lateral e circular, não dicotômica. (DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 3)

 

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