Por uma dialética da humanidade: A significação dialética do ser humano

16/05/2024

Então, que há de mais próximo de mim do que eu mesmo? Decerto, eu trabalho aqui, trabalho em mim mesmo, transformei-me numa terra de dificuldades e de suor copioso.[1]

Um alerta introdutório ao leitor(a). O termo dialética, apesar de ser empregado contemporaneamente de uma forma menos plurívoca, não possui tamanha precisão na antiguidade. Basta lembrar que o termo era utilizado para descrever o estilo de argumentação sofística. De outro modo, na busca pela verdade e sua theoría - no sentido grego de contemplação – Platão (c. 427 – 347 a.C.) buscou desenvolver um sistema de raciocínio que se auto justificasse e impossibilitasse a refutação, também denominado dialética[2]. Ainda Platão, ao teorizar sobre o mundo ideal, sustentou que existiria um movimento de ir e vir entre a matéria e as ideias, intermediado pela alma e o demiurgo, percurso este que ficou conhecido como dialética ascendente e descendente[3]. Em termos mais próximos poderíamos mencionar a dialética Hegeliana (1770-1831) e o materialismo histórico-dialético de Marx (1818-1883).

Nessa linha, para que fique claro ao escrutínio público, adota-se uma perspectiva básica de dialética extraída do pensamento de Heráclito (Sec. VI e V a.C.), segundo a qual a significação de determinado objeto/conceito/matéria se relaciona com outro oposto. Evidente que a dialética de Heráclito se desenvolve com base na lógica do devir - movimento que ocorre em todas as coisas - sintetizada no célebre Panta rei. Nesse sentido, compreende-se uma dialética fincada no oposto[4] [5].

Para os estritos termos da presente reflexão, abandona-se a oposição, adotando-se uma lógica básica de significação através do outro. Movimento dialético de significação: Ir e vir, uma significação recíproca incessante. É o devir aplicado à significação que dispensa a oposição.

Segue-se, portanto, no que uma vez foi uma reflexão, que após se transformou em uma profunda angústia e que finalmente desabrochou em uma proposição. A questão a que se coloca reside na natureza da compreensão humana sobre si.

Existe um ponto de recuo onde reside o que é? A verdade? Onde deixaram o barema do ser? Aquilo onde não se admite mais recuo? Ou estar-se-ia diante de um recuo infinito? Exige-se um movimento de ida e volta, consubstanciando a verdade no movimento incessante, no devir?

Mas, partindo do pressuposto de que algo é, de alguma forma[6], como alcançar? A parcialidade da linguagem de cada um esbarraria na inacessibilidade da totalidade do ser. Entretanto, ainda não se está na questão. Partindo do pressuposto que algo é e que algo se pode acessar, de maneira mais ou menos precisa, como debruçar a compreensão sobre o próprio ser humano?

A colocação da questão denuncia a complexidade da exploração. Na tentativa de delimitar, em maior grau possível, a matéria, inexoravelmente lança-se mão de ser de é e ainda mais, do ser que não é qualquer ser, mas, sim, humano. Acrescenta-se a tal perplexidade a confusão – ou não exploração - recorrente entre essência e fatos, o que gera a aproximação dos fatos psíquicos como a base mais recuada.  Esse início de análise através dos fatos turveja a aproximação da essência, pois se parte de um pressuposto equivocado. Os fatos psíquicos nunca são primeiros, já que representam a reação do ser, que é humano, em face de um mundo. Pressupõem-se, portanto, o homem e o mundo.

Husserl[7] lança luzes sobre tais questões, na tentativa de delimitar, em maior grau possível, o conteúdo da essência. A redução fenomológica seria o instrumento através do qual se colocaria, em parênteses, os objetos, retornando a análise à consciência. A essência seria fruto do sentido atribuído pela consciência. A consciência se edificaria como consciência de algo e esse algo seria o próprio fenômeno. A submissão do objeto à consciência revelaria, por assim dizer, sua constituição.

Na exploração do ser humano, se apresenta uma aproximação absoluta entre o objeto de investigação e o investigador. Trata-se de uma posição privilegiada de análise. Essa proximidade absoluta, para Heidegger[8], decorre do fato de que “o ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser desse ente é sempre e cada vez meu.”.

Para o humano, o existir seria precisamente assumir seu ser. O eu é a própria realidade humana. Ao humano fica assumpção da responsabilidade do seu ser, diferentemente de um jarro que a recebe de fora.

(...) a presença nunca poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar de um gênero de entes simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente dados, o seu “ser” é indiferente ou, mais precisamente, eles são de tal maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não indiferente (...)

A presença se constitui pelo caráter de ser minha, segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo a presença é sempre minha. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, com a sua possibilidade mais própria. A presença é sempre sua possibilidade.[9] [10]

A compreensão seria a maneira própria da existência humana. Um movimento intrínseco que se debruça sobre si.

Trilhando a lógica de Heidegger, Sartre[11] sustenta ser possível o autoquestionamento e que, com base nessas premissas, seria viável levar a cabo a análise da realidade humana. Percorre-se esse caminho lógico para sustentar a possibilidade de uma hermenêutica da existência, como fundamento de uma antropologia, que serviria, por sua vez, como base à psicologia. De qualquer sorte, não é essa verticalização à refundação da psicologia que se quer realizar no presente texto. Que se fique aqui com o debruçar da compreensão sobre si.

O lugar privilegiado do investigador, decorrente da proximidade absoluta ao objeto, apesar de ser a maior ferramenta de análise, paradoxalmente, encerra um problema insuperável: o olhar sobre si seria inexoravelmente obscuro, impreciso.

Sartre, em certa medida, reconhece essa obscuridade ao sustentar que:

Essa “assunção” de si que caracteriza a realidade humana implica uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que seja essa compreensão (...)

Aqui tampouco, naturalmente, não se trata de introspecção, primeiro porque a introspecção só depara com o fato, depois porque minha compreensão da realidade humana é obscura e inautêntica. Ela deve ser explicitada e corrigida.[12]

Significar nada mais é que indicar outra coisa; é indicá-la de maneira tão precisa que, ao desenrolar o processo de significação, se encontre o significado preciso – de novo Sartre[13] -. Mas, como projetar a análise sobre o próprio eu sem deixar escapar nada?

É cediço que o projetar da significação sempre é direcionado a algo; mas, se esse algo reside por detrás dos próprios olhos que indagam? Eis o ponto-cego, o vaco, o algo que está lá, mas que nada se sabe.

Se não é possível dobrar a visão sobre a totalidade do próprio observador, sobrando algum ponto que não se vê, esse ponto só pode ser percebido pelo outro que emprega significação.

O eu de determinado sujeito recebe significado do outro e, assim, sucede-se reciprocamente em um “ir e vir” incessante, que se altera a cada fração do tempo, como o devir de Heráclito.

Diferentemente da dialética platoniana que reside no movimento para cima e para baixo, aqui vislumbra-se um olhar horizontal na busca da aproximação da completude da significação, um olhar para o outro.

Não que inexista a estabilização psicossocial de parte do eu, mas trata-se de um estado perene. Em que medida ser sem o outro? Em que medida o que se é hoje é o que se é amanhã? A alteração incessante das coisas permite uma transformação eterna ao contato com o outro.

É possível identificar algo que se estabilizou do eu do sujeito, mas o todo - ou a aproximação do todo - só com o caminho horizontal, só com o olhar ao outro e do outro. Ou, para melhor se colocar a questão, agora de uma forma invertida, a morte do outro é a morte de uma perspectiva, de um pedaço significativo de significado – perdoe-se o trocadilho.

Parte de cada sujeito vive em latência no outro, latência essa que desabrocha com o contato e com o processo comunicativo. A significação do eu, portanto, só se aprimora com o olhar do outro e com a comunicação. Sendo assim, o processo de significação do ser decorre de um movimento dialético de valorização das relações humanas. Optou-se por chamar tal movimento de dialética da humanidade. 

Se ao menos Raskólnikov soubesse que com a morte de Aliona[14] um pedaço dele tinha morrido... Com toda a fome, com toda a pobreza, se ao menos soubesse, se ao menos soubesse...

Assumindo o criador a sua criatura, aposso-me da primeira pessoa desta obra. Ao fim do texto, confesso a falta de linguagem para descrever perfeitamente o que paira no ponto-cego de meu olhar, aquilo que reside lá no fundo e, de onde, emanam todas as representações de meu pensamento. Quem sabe com a visão dos leitores algo se consolide em mim? Não sei! Em razão dessa confessada deficiência, me refugio nos versos, pois representam aquilo que julgo mais se aproximar daquilo que está lá. Descrevo, assim, a dialética da humanidade em letras modestas – que ao menos tentam ser poéticas -:

Um pedaço meu vive no outro,

aquela parte do outro sobre mim,

aquele tanto de mundo naquele olhar, 

desabrochando em tudo a meu sentir,

 

Um pedaço meu morre com o outro,

aquela parte do outro que morre em mim,

Aquele tanto de vida naquele olhar,

Perdendo tudo que importa a meu sentir.  

 

Por uma dialética da humanidade...

Renato S. S. Schindler Filho

Um sujeito qualquer.

 

 

Notas e referências

BLANC. Claudio. A história da Filosofia. Barueri, SP: Camelot

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. 1 edição. Editora Ciranda Cultural.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. p.77. 15 edição. Editora Vozes.

HUSSERL, Edmund. (2008). A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Ed. 70. (Original publicado em 1954)

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Liv. X. Cap. 16.

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. p. 23. 1 edição. Editora L&PM

SOUZA, José Cavalcanti de. Os pré-socráticos. Coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural

[1] SANTO AGOSTINHO. Confissões. Liv. X. Cap. 16.

[2] BLANC. Claudio. A história da Filosofia. Barueri, SP: Camelot, 2021, p.40-41

[3] Ibid., p.41

[4] Ibid., p. 26-27

[5] SOUZA, José Cavalcanti de. Os pré-socráticos. Coleção os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.93.

[6] Seja em um ponto qualquer no espaço-tempo, seja fora dele – se possível for -, ou encerrado no próprio movimento incessante.

[7] HUSSERL, Edmund. (2008). A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Ed. 70. (Original publicado em 1954)

[8] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. p.77. 15 edição. Editora Vozes.

[9] Ibid., p. 78.

[10] Nota Explicativa: Na 10ª edição da obra Ser e Tempo optou-se por traduzir a expressão Dasein na palavra presença. Sendo assim, nas citações de Heidegger realizadas no presente texto, onde consta a expressão presença leia-se Dasein.

[11] SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. p. 23. 1 edição. Editora L&PM.

[12] Ibid., p.23

[13] Ibid., p. 25

[14] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. 1 edição. Editora Ciranda Cultural.

 

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