Por que ser contra o encarceramento em massa?

26/03/2021

  Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

[1]O termo “encarceramento em massa” se refere à prisão de imensos contingentes populacionais. Nasceu nos EUA, quando, a partir da década de 1980, o presidente Richard Nixon inaugurou a guerra às drogas, dando início ao aumento exponencial de presos no país.

No Brasil, o encarceramento em massa também é uma realidade. Impulsionado principalmente pela guerra às drogas, a maioria dos que são presos por tráfico portam pequena quantidade de droga (CARVALHO; PELLEGRINO; ALQUERÉS, 2016) e não oferecem perigo concreto à sociedade.

Neste contexto, a prisão aparece como solução para diferentes problemas: do tráfico ao assassinato, do furto aos crimes ambientais. Porém, será que o encarceramento – principalmente maciço – é o melhor modo de lidar com a criminalidade? Abaixo estão dez razões que deslegitimam esta afirmação.

1. Porque a prisão é um ato simbólico. Dentre o imenso universo de delitos que são cometidos diariamente, apenas um seleto número chega às agências executivas do sistema penal (polícia, Ministério Público e Judiciário). Na criminologia, a este fato se dá o nome de cifra oculta. Essa cifra oculta existe por diversos motivos, desde à “incapacidade operativa [das agências do sistema penal] ao desinteresse das pessoas em comunicar os crimes dos quais foram vítimas ou testemunhas” (CARVALHO, 2014, p. 174). Dessa maneira, o número de pessoas presas nunca equivalerá ao número de delitos que são cometidos. A prisão é um ato simbólico na medida em que, ao selecionar determinadas pessoas e atos, transmite à sociedade a visão de que o crime é combatido. Enquanto isso, suprime-se o enfrentamento às verdadeiras causas de muitos problemas que são tratados com a prisão.

2. Porque o sistema penal é seletivo. Devido à pequena capacidade de atuar em todos os crimes que acontecem – algo impossível – as agências executivas do sistema penal “devem optar pela inatividade ou pela seleção” (ZAFFARONI et. al., 2006, p. 46). Optando por esta última, elas se guiam pelo estereótipo, e atingem “apenas aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo” (ZAFFARONI, et. al., 2006, p. 47), e que cometem delitos de fácil detecção (como roubos, furtos e pequeno tráfico de drogas). Com isso, outros tipos de crimes, muitas vezes mais graves, não são alcançados pelas agências.

3. Porque no Brasil a prisão é usada como forma de criminalizar a pobreza e de conter os indesejáveis. No Brasil, onde apenas 10% da população concentra quase metade da renda do país (IBGE, 2018), os indesejáveis correspondem à massa de excluídos do emprego, da renda, e de qualquer direito básico. Eles são os principais clientes do sistema penal e das prisões: dos encarcerados, mais de 60% são negros e pobres, e mais de 70% foram presos por crimes contra o patrimônio e relativos à Lei de Drogas.

4. Porque o encarceramento é uma forma de moralismo e de extermínio. Com a prisão, o Estado transmite uma imagem moralista de que “luta contra o crime”. Ao mesmo tempo, o que realmente ocorre é um extermínio “legalizado” da população pobre, altamente encarcerada em prisões com péssimas condições e alto índice de mortalidade. Como exemplo, apenas no Rio de Janeiro a taxa de mortalidade dos presos é cinco vezes maior do que a média nacional (FIOCRUZ, 2019).

5. Porque a prisão é racista. Mais de 60% dos que estão presos são pretos ou pardos, pobres e sem escolaridade (INFOPEN, 2017). Isto não é mera coincidência. Esta parcela da população tem mais chances de ser presa por tráfico de drogas (DOMENICI; BARCELOS, 2019) e menos chances do que os brancos de ser solta em uma audiência de custódia (DINIZ, 2016). Além disso, pretos e pardos são mais de ¾ da população mais pobre do país (IBGE, 2019), estando, portanto, mais vulnerável ao poder estatal.

6. Porque prender mais não resolve ou diminui a criminalidade. Desde a redemocratização, inúmeras leis penais foram criadas ou tiveram suas penas agravadas, como por exemplo a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei 11.343/06 – que aumentou a pena para o tráfico de drogas. Igualmente, o número de pessoas encarceradas vem crescendo vertiginosamente – quase dobrando de 2006 a 2016 – sem que se tenha observado diminuição dos índices de violência ou de cometimento de crimes.

7. Porque a prisão é cara e não recupera. Um preso custa em média R$ 2.400,00 aos cofres públicos (LIMA, 2019), e os índices de reincidência oficiais não ficam abaixo de 30% (IPEA, 2015).

8. Porque o preso sai da prisão pior do que entrou. No cárcere, o preso internaliza valores e uma imagem de si totalmente diversa da que vige na sociedade. Logo, “a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinquente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo” (ZAFFARONI, 2001, p. 60). No Brasil isso é agravado, pois muitos, ao ingressar no sistema prisional, são obrigados a escolher a qual facção criminosa quer pertencer (ODILLA, 2014). Com isso, por exemplo, um condenado por furto, submetido à prisão e sujeito a estas condições, ao sair tem maiores chances de cometer crimes mais graves.

9. Porque lutar contra o encarceramento em massa é lutar contra o Estado de Polícia. O estado policial é aquele em que o Estado verticaliza as relações sociais, detendo um poder absoluto e arbitrário. De acordo com Zaffaroni (2007): “todo espaço que se concede ao Estado de Polícia é usado por este para estender-se até chegar ao Estado absoluto” (p. 167). Ao se legitimar o encarceramento em massa, aumenta-se o poder estatal e legitima-se o Estado Policial. Por conseguinte, mesmo aqueles que não estão presos são prejudicados, tocando diretamente toda a sociedade.

10. Porque não prender não significa não punir. A pena de prisão só aumenta a violência e os problemas sociais, e não toca nos pontos que interessam para solucioná-los. Expropria a vítima, sem prestar-lhe a devida assistência, e se ocupa unicamente em punir o delinquente. Existem inúmeras outros modos de punir uma conduta considerada delituosa, que não perpetuam a violência, e que possuem resultados mais satisfatórios, como as penas alternativas e a justiça restaurativa.

 

Notas e Referências

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Carcerárias. Org: Marcos Vinícius Moura. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017rev-12072019-0721.pdf. Acesso em: 19 fev. 2020.

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2019. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen. Acesso em 3 mar. 2020. BRASIL. Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da República. Diário Oficial da União. Brasília, 11 jul. 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 19 de fev. 2020.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 451 p.

CARVALHO, Ilona Sabó de; PELLEGRINO, Ana Paula; ALQUÉRES, Beatriz. 10 anos da lei de drogas: quantos são os presos por tráfico no Brasil?. Instituto Igarapé. Brasil, 24 ago. 2016. Disponível em: <https://igarape.org.br/10-anos-da-lei-de-drogas-quantos-sao-os-presos-por-trafico-no-brasil/>. Acesso em: 10 jun. 2020.

DINIZ, Débora. Audiência de custódia solta 32% mais brancos que negros. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 21 jul. 2016. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/2942-Audiencia-de-custodia-solta-32-mais-brancos-que-negros-e-pardos>. Acesso em: 10 jun. 2020.

DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. Agência Pública.  Brasil, 6 maio 2019. Disponível em: < https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/>. Acesso em: 10 jun. 2020.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Taxa de mortalidade entre presos no Rio de Janeiro é cinco vezes maior que a média nacional. Rio de Janeiro, 25 abr. 2019. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portalensp/informe/site/materia/detalhe/45983>. Acesso em: 10 jun. 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Reincidência criminal no Brasil: Relatório de Pesquisa. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2011/02/716becd8421643340f61dfa8677e1538.pdf>. Acesso em 27 fev. 2020.

LIMA, Renato Sérgio de. Pacote de Sérgio Moro pode gerar um custo adicional com presos de 44,4 bilhões anuais. Folha de São Paulo. São Paulo, 6 abr. 2019. Disponível em:  <https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/06/pacote-de-sergio-moro-podegerar-um-custo-adicional-com-presos-de-r-444-bilhoes-anuais/>. Acesso em: 27 abr. 2020.

ODILLA, Fernanda. Presos são obrigados a escolherem facção ao serem encarcerados no MA. Folha de São Paulo. Brasília, 9 jan. 2014. Disponível em: <https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1395543-presos-sao-obrigados-a-escolher-uma-faccao-ao-serem-encarcerados-no-maranhao.shtml>. Acesso em: 11 jun. 2020.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 281 p.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 222 p.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2006. 660p.

[1] Texto originalmente publicado no Jornal Voz Acadêmica, Vol. 3, de 21 de dezembro de 2020, p. 32-33, do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

 

 

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