Por que gozamos com as prisões? - Por Leonardo Marques Vilela

24/11/2016

Por Leonardo Marques Vilela - 24/11/2016

É comum, principalmente nas redes sociais nos depararmos com comemorações efusivas sobre a prisão de pessoas. Essas comemorações, em regra, tem como foco justamente o sofrimento que será experimentado pelo preso em algum dos presídios brasileiros que são notoriamente conhecidos por não terem condições dignas de tratamento.

E é justamente isso que seduz. A prisão vista como vingança e não como medida de justiça. A prisão no processo penal ser utilizada como fim utilitarista para causar sofrimento e não como forma de ressocialização do indivíduo, para que o mal que ele cometeu não seja repetido.

Esse tipo de comportamento não é novo. Ele acontece rotineiramente nos programas policiais que expõe como um grande show diversos acusados de crimes (geralmente negros e/ou pobres) para a satisfação do seu público.

Mas é importante entender o que se comemora para que se possa analisar minimamente este fenômeno.

Qualquer um que tenha uma pequena noção sobre política criminal sabe que a forma como tratamos os presos fazem da ressocialização um grande mito. Um mito que é endeusado nas salas de aula mas que não tem qualquer relação com a realidade. Mas simplesmente não nos importamos.

Apoiamos o encarceramento de milhares de pessoas em condições insalubres e não ligamos. E o que é pior: Além de não darmos a mínima importância pelo fato de mais de 700.000 pessoas estarem em condições completamente insalubres, sendo tratadas sem qualquer dignidade, nós comemoramos!

Bradamos nas redes sociais “agora ele vai ver o que é bom”.

Como explicar a comemoração de algo assim? Como explicar que um ser humano pode comemorar o sofrimento de outro?

Lacan[1] nos ensina que faz parte do nosso ser o amor e o ódio. Somos tão capazes de amar, quanto somos de odiar e consequentemente de ter satisfação (o gozo) com estes sentimentos.

Porém, adverte que existe um impedimento quanto ao gozo do ódio. Este impedimento é de ordem ética. Ou seja, eticamente, não podemos ter satisfação com este desejo de ódio. Mas se temos este freio moral, como explicar tantas pessoas em nosso meio gozando com o ódio contra pessoas presas?!

Da psicanálise para a criminologia, o professor Salo de Carvalho[2] e Alessandro Baratta[3] expõe sobre o labelling approach, ou teoria do etiquetamento. Resumidamente, esta teoria afirma que o Estado escolhe, através da política criminal que tipo de crimes ele irá focar sua repressão e força. Esta seleção forma um etiquetamento de determinado grupo de indivíduos para atingi-los com a repressão penal.

Na mesma linha de raciocínio, Zaffaroni[4] afirma que é impossível ao Estado punir todas as condutas criminosas. Sendo assim, segundo o autor, o poder público, através das agências criminais escolhe sua política criminal de forma a determinar quais crimes serão punidos, ou serão alvo de repressão pelo Estado.

Historicamente o Estado seleciona um grupo de indivíduos já calejados na repressão Estatal. Basta analisar o mapa do encarceramento[5] para concluirmos que este grupo são os pobres, negros e pessoas com baixa escolaridade.

E programas policiais sensacionalistas nos mostram diariamente integrantes deste grupo de pessoas sendo presos, expostos, humilhados por repórteres[6], sofrendo abuso de autoridade[7] sem que tenhamos qualquer empatia ou solidariedade por eles frente ao abuso que o Estado pratica. Muito pelo contrário, nos realmente gozamos com o sofrimento que irão experimentar no cárcere medieval brasileiro.

A ausência da capacidade de se indignar contra tal sistema chegou ao ponto de um Ministro do Supremo Tribunal Federal[8] defender que o dano (cível) gerado ao detento pelas más condições não deveria ser indenizável, mas sim abatido determinada parte da sua pena final como indenização.

A explicação para isso nos faz analisar o gozo do ódio e o etiquetamento de forma conjunta. Se temos um freio ético próprio para gozar com o ódio, como justificar a felicidade, os emoji de palmas, os discursos violentos e várias outras manifestações nestas ocasiões?

Toda a exposição, principalmente na mídia faz com que nos coloquemos no lugar da vítima em um delito. E ao pensarmos como a vítima, é fácil, muito fácil pensarmos o processado ou o preso como inimigo e não como pessoa sujeito de direitos, como qualquer outro. Ou seja, enquanto o Estado etiqueta um grupo de pessoas para ser alvo da política criminal, nos etiquetamos um grupo (que pode ser o mesmo ou não) como inimigos.

A nossa ideia de inimigo é aquela que o inimigo, tal como em uma guerra, quer destruir nos destruir ou nos atingir de alguma forma. Não à toa que a Constituição permite a pena de morte em caso de guerra declarada. Obviamente aos inimigos. E que tipo de freio ético poderia resistir a figura do inimigo?! Nenhum!

Desta forma, quando alguém é levado ao cárcere não nos indignamos contra o tratamento desumano que lá ele terá, ao contrário, ao vincularmos o preso como inimigo, inibimos nosso freio ético e podemos gozar a vontade com o ódio contra aquela pessoa, que agora deixa de ser pessoa, para ser nomeado apenas como criminoso. Como alguém que nos fez mal ou poderá nos fazer.

Como foi exposto no início deste texto, isso já acontece a muito tempo com jovens negros, pobres e sem estudo. Este grupo de pessoas é a grande maioria dos clientes tradicionais do sistema penal.

A cada jovem amarrado em poste e agredido por pessoas “de bem”, a cada ordem de busca de apreensão coletiva em favelas[9], a cada miserável agredido pela polícia, a cada negro preso em uma lixeira no Rio Grande do Sul, gozamos com nosso ódio com a certeza de que aquele inimigo deve sofrer para compensar o dano que trouxe a nossa sociedade.

O discurso “está com pena, leva para casa” ou “direitos humanos para humanos direitos” partem de um pressuposto que aquelas pessoas devem sofrer.

Este sofrimento evidencia que não queremos um sistema penal humano que traga a pessoa de volta a sociedade sem nova delinquência. Queremos um sistema de vingança estatal. Como a inquisição. Punição pelo sofrimento, sem se importar que isso não trará qualquer benefício para nos enquanto sociedade.

Eventualmente, o sistema penal atinge pessoas que não deveria. Pessoas que não foram as escolhidas pela política criminal do Estado. E esta semana dois ex-governadores foram os atingidos.

Não se trata de alteração do sistema de política criminal. Não se enganem. O sistema continua focado nos selecionados, mas eventualmente pode atingir outro público para dar a sensação de que ele é justo e atinge a todos como nos alerta Loic Wacquant[10].

Voltando aos dois ex-governadores, no primeiro houve um grande frenesi nas redes sociais com um vídeo onde ele tentava resistir a sua remoção de um hospital para o presídio.

No segundo caso, o gozo com as fotos de registro do presídio e a notícia de que teve sua cabeça raspada. Até mesmo a notícia de que ele, enquanto governador inaugurou uma parte do presídio foi utilizada para trazer uma ironia no meio do gozo.

Isso porque, foram por nós – população, etiquetados como inimigos do povo. Indignos de defesa, de dignidade e até mesmo de tratamento médico enquanto sua saúde pode estar em risco.

Como podemos negar a uma PESSOA que ela fique em um hospital, considerando que há dúvidas quanto a seu estado de saúde?! Fácil. Se ela deixar de ter a condição de pessoa e for etiquetada como inimigo, não há problema. E assim gozamos.

Gozamos já os etiquetando como inimigos (corruptos) sem que a eles tenha sido dado a chance de defesa. Claro que podemos ter nossas percepções pessoais sobre a inocência ou culpa de alguém, mas para a segurança jurídica (de todos), somente o poder judiciário poderá (ou deveria) avaliar, de forma imparcial e com respeito aos princípios limitadores do poder punitivo.

Breno Tardelli[11] traz uma pergunta em seu ótimo texto: “Se não reconhecemos a dignidade em pessoas que não gozam de nossa empatia, por que raios esperaremos tratamento diferente quando formos nós mesmos os arrastados?”

A verdade é que não podemos nos ver como inimigos, porque os inimigos são aqueles que afirmamos estarem contra nós mesmos. E assim, podemos justificar e gozar com toda sorte de arbitrariedades contra eles cometidas.

Afinal, para nós - cidadãos de bem, queremos o direito. Aos inimigos não é justo que se dê direito, várias palmas em vídeos mostrando seu sofrimento no facebook é mais do que eles merecem...


Notas e Referências:

[1] LACAN, Jacques. O seminário – livro 4 – a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar. 1995

[2] CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. São Paulo:Saraiva. 2013

[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 1999

[4] ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan. 1991

[5] Disponivel em http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0009/3230/mapa-encarceramento-jovens.pdf

[6] Um exemplo: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2015/06/05/band-e-condenada-a-pagar-r-60-mil-por-caso-de-reporter-que-zombou-de-preso.htm

[7] Exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=4YJya6rZHJ8 a partir do tempo: 04:32 minutos

[8] http://stf.jusbrasil.com.br/noticias/186180417/ministro-barroso-propoe-remicao-como-forma-de-indenizar-presos-em-condicoes-degradantes

[9] http://extra.globo.com/casos-de-policia/justica-expede-mandado-coletivo-policia-pode-fazer-buscas-em-todas-as-casas-do-parque-uniao-da-nova-holanda-12026896.html

[10] WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar. 1999

[11] http://justificando.com/2016/11/18/prisao-de-anthony-garotinho-e-grotesca-e-grave-ao-estado-de-direito/


leonardo-marques-vilela. . Leonardo Marques Vilela é Mestrando em direito público (PUCMG), advogado e professor da PUCMG. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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