Por que exigir dos pais a vacinação de seus filhos e filhas? A prioridade de proteção à saúde da criança

20/08/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em julho deste ano, proferiu decisão monocrática interlocutória, em ação intentada pelo Ministério Público do mesmo Estado, sob o nº. 4020087-02.2019.8.24.0000, que obriga um casal a vacinar seus filhos, indeferindo o pedido de efeito suspensivo da decisão anterior, que obrigava os pais a vacinarem seus filhos no prazo de 15 dias, mantendo-a e acrescentando que antes da vacinação as crianças devem passar por avaliação pediátrica junto a Secretaria Municipal de Saúde[1].

Aqui não objetivamos fazer a análise processual do presente caso, ou fazer qualquer tipo de julgamento a conduta dos pais, mas apenas verificar a congruência da decisão frente ao direito à saúde de crianças e adolescentes, garantido por nosso sistema legal.

No caso em tela, a família afirma que residia no Chile com as duas primeiras filhas e que lá teria efetuado algumas vacinas, sendo que a filha mais velha teria tido reação alérgica a uma das vacinas sendo internada em estado grave, segundo relato feito ao Conselho Tutelar. Após a mudança para o Brasil, e com a vinda do terceiro filho, o casal então, optou por não mais vacinar nenhuma das crianças.

Durante o processo foi oportunizado ainda prazo para que os demandados apresentassem estudos e laudos médicos que demonstrassem a impossibilidade da vacinação das crianças. No entanto, nada foi apresentado.

É de conhecimento público que o Brasil está passando novamente por um surto de doenças que estavam até então erradicadas, tais como o sarampo[2]. Em 2016 o país chegou a receber da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) o certificado de eliminação de circulação do vírus do sarampo[3], contudo, atualmente, a doença espalha-se vertiginosamente pelos estados, devido ao baixo índice de imunização.

Não é nenhuma novidade que a Constituição Federal de 1988 traz no texto do artigo 227 a proteção da saúde como um dos direitos primordiais para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, senão vejamos: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A partir daí uma série de políticas públicas e legislações foram desenvolvidas para que então se pudesse proporcionar essas garantias a seus titulares[4].

O Estatuto da Criança e do adolescente (ECA), que surgiu em 1990, com advento da Lei Federal n°. 8.069, trouxe uma série de mecanismos que ajudam, entre outros direitos e obrigações, a efetivar o direito à saúde de crianças e adolescentes. O art. 7º do ECA garante que mediante a efetivação de políticas sociais públicas, o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmoniosos destes, serão protegidos[5].

Ademais, o Sistema Único de Saúde (SUS), em respeito à universalidade de seu atendimento, assegura acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, através de acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 11, ECA). Ou seja, independentemente da situação econômica e social da criança e do adolescente, em momento algum poderá ser negado acesso à mecanismos que garantam seu crescimento e desenvolvimento saudável, entre eles a vacinação.

No mesmo sentido, o art. 14. § 1o do ECA traz que é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. Dessa forma, observa-se que não há espaço para discricionariedade acerca da vacinação, ela é medida compulsória de profilaxia no Estado brasileiro, a fim de manter sua população, em especial os que estão em momento de desenvolvimento, com integridade de sua saúde, conforme preceitua o nosso sistema jurídico.

Lessa e Schramm apontam ainda que “o principal foco dos programas de vacinação compulsória são as crianças, as quais possuem uma condição de vulnerabilidade natural que não pode ser plenamente protegida. Ademais, sua suscetibilidade pode torná-la vulnerada, ou seja, diretamente afetada, estando na condição existencial de não poder exercer suas capacidades – ainda em formação – para ter uma vida digna e de qualidade. Portanto, as políticas em saúde devem distinguir graus de proteção de acordo com a condição existencial de vulnerabilidade, suscetibilidade ou vulneração, e voltadas para alcançar a equidade e a justiça social”[6].

As diretrizes básicas criadas pelas leis citadas em verdade vieram confirmar a política de controle epidemiológico já praticada pelo Estado brasileiro desde a instituição do Plano Nacional de Imunização de 1975 (Lei nº. 6.259, de 30 de outubro de 1975)[7], regulamentado pelo Decreto nº. 78.231/1976[8]. O Decreto em seus arts. 27 e 29 já traziam a obrigatoriedade da vacina, e também indicavam que “é dever de todo cidadão” se submeter e submeter as crianças e adolescentes sob sua guarda ou responsabilidade à vacinação obrigatória, ressalvados apenas os casos de contraindicação explícita comprovada através de atestado médico.

O sistema legal que passa a vigorar sob a nova perspectiva, de ver a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, a partir da Constituição Cidadã, vem corroborar a ampliação da proteção à direitos básicos já ensaiada a partir da legislação de 1975 que, por sua vez, seguia as diretrizes que a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu em um programa de vacinação mundial em 1974[9].

Em decorrência da nossa estrutura social e costumes a família é a responsável imediata pela salvaguarda dos direitos das crianças e dos adolescentes, tanto que os pais conjuntamente são detentores do poder familiar. Contudo, não cabe somente a eles a proteção destes direitos, conforme preceitua o art. 4º do ECA.

O fato é que, se cabe à família, ao Estado e à sociedade, conjuntamente, a proteção e guarda da vida e do desenvolvimento saudável, um fiscalizando o outro em respeito ao superior interesse das crianças, nada mais acertada que a decisão proferida no referido processo judicial.

A decisão citada aponta que “direito à saúde é um direito fundamental das crianças e dos adolescentes, portanto inerente ao dever de cuidado e assistência por parte dos pais, na forma do art. 14, §1º, do ECA, que dispõe ser a vacinação obrigatória nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias – ou seja, direito este não sujeito às convicções pessoais dos responsáveis.” Assim, constituindo direito fundamental, este não pode ser afastado, devendo ser resguardado pelos demais atores do Sistema de Garantias de Direitos, como no presente caso.

Portanto, aceitar a mera alegação de prejuízo à saúde, sem a devida comprovação médica (atestados, laudos, exames etc.), ou ainda, a alegação de que “os filhos estão em perfeito estado de saúde, não havendo nada que justifique a medida coercitiva imposta, sem prejuízo a integridade da prole” poderia implicar, inclusive, na consideração de desídia e negligência no presente caso, além de desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista que “hoje não podemos conceber dignidade da pessoa humana sem pensarmos na proteção do ser humano de forma integral: integridade física, psíquica e intelectual”[10].

Sob a ótica da coletividade, cumpre ressaltar que o ato de não imunizar uma, duas ou três crianças, por exemplo, expõe a risco não só aquelas crianças como toda a sociedade, uma vez que se por um infortúnio venham a contrair alguma doença infectocontagiosa, também vão expor ao risco tantas outras crianças, adolescentes e adultos, que por algum motivo não podem realmente ser imunizadas, sejam por critério de idade ou saúde, a riscos desnecessários, e assim afetando toda a coletividade.

Além do mais, quando um bem coletivo está sob discussão é possível que sejam feitas algumas restrições a direitos individuais, embora não seja este o caso apreciado, uma vez que a decisão garante o direito dos tutelados e, ao mesmo tempo, defende os direitos da coletividade.

Assim, diante do necessário respeito aos princípios já explanados, imperioso resguardo da saúde das crianças envolvidas, bem como de toda a coletividade, mostra-se perfeitamente aceitável a exigência da vacinação compulsória, salvo em casos de extrema e comprovada impossibilidade.

 

Notas e Referências

[1] Decisão disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/7/art20190725-05.pdf

[2] Brasil. Ministério da Saúde. Disponível em http://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45650-sarampo-criancas-que-se-deslocarem-para-municipios-em-situacao-de-risco-devem-ser-vacinadas

[3] Brasil. Ministério da Saúde. Disponível em  http://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/25846-brasil-recebe-certificado-de-eliminacao-do-sarampo

[4] Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm

[5] Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm

[6] Kottow M. Bioética de proteção: considerações sobre o contexto latino-americano. In: Schramm FR, Rego S, Braz M, Palácios M, organizadores. Bioética, riscos e proteção. Rio de Janeiro: UFRJ, Fiocruz; 2005. p. 29-44, citado em Proteção individual versus proteção coletiva: análise bioética do programa nacional de vacinação infantil em massa , disponível em https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S1413-81232015000100115&script=sci_abstract#

[7] Brasil. Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6259.htm

[8] Brasil. Decreto nº 78.231/1976. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D78231.htm

[9] Lessa, Sergio de Castro & Schramm , Fermin Roland. Proteção individual versus proteção coletiva: análise bioética do programa nacional de vacinação infantil em massa. Disponível em https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S1413-81232015000100115&script=sci_abstract#

[10] Amin, Andréa Rodrigues. Dos direitos fundamentais. Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos teóricos e práticos. 12ª ed. São Paulo. SaraivaJur. 2019. P. 96.

 

 

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