Por que Direito Penal a Materladas?

04/03/2015

Por Amilton Bueno de Carvalho - 04.03.2015

“A humanidade não tem um fim: mas ela também pode dar a si um fim – não uma terminação, não conservar a espécie, mas SUPERÁ-LA” (“Escritos Sobre História”, p. 267, aforisma IX 4[20]124).

Perguntaram para Gabriel Garcia Marquez como se faz para produzir um   texto    e ele, com a simplicidade dos gênios, assim respondeu:  começa com letra maiúscula, termina com ponto final e entre eles expressa-se aquilo que se está sentindo.

Aqui pretendo seguir a lição do escritor colombiano: falar sem freios – explosão do sentimento: apenas com o cuidado de ser exatamente “eu” (aliás, não sei se é possível não ser o que se é; Nietzsche, ainda adolescente, teve a máxima de Píndaro “torna-te aquilo que tu és” como guia - “Ecce Homo”, p. 10).

Este é meu primeiro livro após deixar de ser magistrado (talvez o momento do grande meio-dia que tratarei no capítulo IV), o que, por certo, provocará certo afastamento (talvez muito tênue) de cerca de trinta anos de um atuar específico (logo, diferente) no campo do direito. É possível que ocorra um distanciamento saudável (Boaventura de Sousa Santos ensina que não é possível teorizar quando se está no centro do conflito).

É que, como ensina Nietzsche, “enquanto ainda amamos, não pintamos quadros assim; ainda não “observamos”, não nos colocamos de tal maneira à distância, como tem de fazer o observador” (“Humano, Demasiado Humano II”, p. 8). Ou, “Não se pode olhar para si mesmo ao vivenciar, toda olhada se torna aí um “mau olhado”” (“Crepúsculo dos Ídolos”, p. 67).

Em outro local, o filósofo assim se manifesta: “Erro do ponto de vista, não do olhar. - Sempre vemos a nós mesmos um tanto perto demais; e o próximo sempre um tanto longe demais. Então sucede que o julgamos muito globalmente, e a nós mesmo muito de acordo com traços e eventos ocasionais, irrelevantes” (“Humano, Demasiado Humano II”, p. 153, aforisma 87).

Dito poeticamente:

 “Conheço o espírito de muitos homens

Mas não sei quem sou eu mesmo!

Meu olhar é demasiado próximo de mim –

Não sou o que vejo e o que vi.

Eu seria de maior proveito para mim

Se de mim pudesse estar mais longe.

Não tão distante quanto meu inimigo, claro!

Já o amigo mais próximo está longe demais –

Mas entre nós há o meio do caminho!

Adivinham vocês o meu pedido?”.

(“Pedido”, “A Gaia Ciência”, p. 29, número 25)

Mas, tudo é ainda muito recente. Todavia, aqui e agora, busco um olhar mais amplo do atuar do jurista, alcançando com maior força àqueles que estão na linha de frente na cena do direito penal: defensores e professores.

No entanto, certo de que “eu-sou-o-meu-passado”, estou quase que “fundado” pelo direito – “É inevitável para o sujeito que lhe seja impossível pretender ver e conhecer algo para além de si mesmo, tão impossível que conhecer e ser são as esferas mais contraditórias entre si” (“A Filosofia na Era Trágica dos Gregos”, p. 94). Desde os meus dez anos de idade o meu viver é forense e durante quase dez anos, por mais estranho que possa parecer, morei dentro do forum. Assim, queira ou não, para o bem ou para o mal (muito mais para o mal do que para o bem), sou marcado desgraçadamente pelo olhar do direito.

Fiquei aleijado, (de)formado: tudo o que vejo, tudo o que leio, tudo o que penso, está banhado pelo direito: insuportavelmente “sujo” pelo olhar jurídico: neste quadro, nem sei se poderia “me-ser” diferente.

Então, deve ficar claro, absolutamente claro, tudo o que li em Nietzsche tem uma marcação bem própria e determinada: é um olhar “ruim” sobre a obra dele – o de um jurista.

Perdoem-me os filósofos, sociólogos, psicólogos, em cujas mãos este livro eventualmente aportar: não é a eles que se destina. É o olhar de determinado jurista que deste local (o jurídico) lê Nietzsche.

De outro lado (e aqui está outro alerta), para além deste olhar manquitolante sobre a obra do filósofo do eterno-retorno-do-mesmo”, há uma consciente (embora para Nietzsche a “consciência” seja quase mito) apropriação do saber nietzschiano. Busquei no autor (e eventualmente com ele dialogar) o saber que entendo útil para um determinado olhar do direito.

Lucia Piossek Prebisch, no texto “Interpretação: Arbitrariedade ou Probidade Filológica?”, no livro organizado por Scarlett Marton, “Nietzsche Abaixo do Equador”, p. 21, diz que “Hoje vemos que o filósofo alemão é requerido também para ilustrar ou justificar as mais diversas aventuras intelectuais. Ocorre que, gostemos ou não, ele continua sendo uma das chaves para compreender nosso mundo”.

Mais direto: o que do pensamento de Nietzsche pode ser útil, servir de base, de fundamento, para o atuar de juristas penais comprometidos, espetacularmente comprometidos, definitivamente comprometidos, com a proteção dos direitos de todos, absolutamente todos os cidadãos que sofrem a persecução penal.

O que, no pensador do além-do-homem, é passível de apropriação para contribuir para minorar o sofrimento daqueles que sofrem a fúria persecutória do leviatã – quase sempre de baixa racionalidade.

Isso porque a atualidade do pensamento nietzschiano é espetacular (ora, ele sempre se definiu como homem póstumo: “Só o depois de amanhã me pertence. Alguns nascem póstumos” (“O Anticristo”, p.11), homem extemporâneo, homem do amanhã, homem do depois-do-amanhã: “O tempo não chegou nem mesmo para mim; alguns apenas nascem postumamente... Um dia serão necessárias instituições, nas quais será ensinado e vivido com eu compreendo o ensino e a vida; quem sabe não serão instituídas, também algumas disciplinas para a interpretação do Zaratustra” (“Ecce Homo”, p. 69). Lucía Piossek Prebisch, na obra antes citada, p. 19, transcreve a seguinte passagem escrita pelo pensador: “Há homens que nascem póstumos; eu sou um deles”; “Cheguei antes do tempo...”.

Muito do seu saber sobre Direito Penal – e ele sequer era jurista – ainda hoje sequer foi alcançado, ou seja, ainda não chegamos, em pleno século XXI, à estatura penal de Nietzsche – em relação a ele, em muitos pontos, ainda somos medievais.

A paixão em estudar a obra de Nietzsche, no viés ora proposto, está na sua crítica agressiva, destruidora de muitas das mentiras que o Direito Penal ainda quer, passados mais de cem anos da morte do filósofo, nos fazer crer (e consegue mantê-las no meio jurídico-penal: Nietzsche está ainda no amanhã, o Direito Penal do senso comum ficou no ontem). Ora, “por que ler Nietzsche? Porque tudo que ele disse se tornou verdadeiro” (Ullrich Haase, “Nietzsche”, p. 26).

Um indispensável alerta: todas as marcações em negrito que vêm na transcrição dos textos de Nietzsche estão nos originais – ele as utilizava muito.

O título do presente livro, por evidente, também é apropriado da obra de Nietzsche:

    FALA O MARTELO

“Por que tão duro? – falou certa vez ao diamante o carvão de cozinha; não somos parentes próximos?”

Por que tão moles? Ó meus irmãos, assim vos pergunto; pois não sois meus – irmãos?

Por que tão moles, tão amolecidos e condescendentes? Por que há tanta negação, abnegação em vossos corações? Tão pouco destino em vosso olhar?

E se não quereis ser destinos e inexoráveis: como podereis um dia comigo - vencer?

E se a vossa dureza não quer cintilar, cortar e retalhar: como podereis um dia comigo – criar?

Pois todos os que criam são duros. E terá de vos parecer bem-aventurança imprimir vossa mão nos milênios como se fossem cera –

- Bem-aventurança escrever na vontade de milênios como se fossem bronze – mais duros que bronze, mais nobres que bronze. Apenas o mais nobre é perfeitamente duro.

- Esta nova tábua, ó irmãos, ponho sobre vós: tornai-vos duros! - - (“Crepúsculo dos Ídolos”, p. 109, e “Assim Falou Zaratustra”, p. 205, aforisma 29).

No prólogo do “Crepúsculo”, p. 7-8, em torno dos ídolos e do martelo, Nietzsche assim fala: “Uma outra convalescença, em algumas circunstância ainda mais desejadas por mim, está em auscultar ídolos...Há mais ídolos do que realidades no mundo: este é meu “mau olhar” para este mundo, é também meu “mau ouvido”... Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas – que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos – para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se... Também este livro – seu título já o revela – é sobretudo um descanso, um torrão banhado de sol, uma escapada para o ócio de um psicólogo. Talvez também uma nova guerra? E serão perscrutados novos ídolos? ... Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez ele não são ídolos da época, mas ídolos eternos, aqui tocados com o martelo como se este fosse um diapasão – não há absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados... E tampouco mais ocos... Isso não impede que sejam os mais acreditados; e, principalmente no caso mais nobre, tampouco chamados de ídolos...”   

Paulo César de Souza no pósfácio do “Crepúsculo dos Ídolos” (p. 141), assim se refere ao subtítulo do livro (”ou Como se filosofa com o martelo”): “a palavra “martelo” deve ser entendida duplamente, segundo o prólogo: como marreta, para destroçar os ídolos, e como diapasão, para diagnosticar o seu vazio (ou seja, o estetoscópio de um “médico da cultura”)”.

Então, outro não poderia ser o título deste livro: o que se pretende, com apoio do martelo de Nietzsche, é denunciar, agredir, abalar e se possível destruir, alguns dos monstruosos ídolos engendrados pelo saber que toma conta do Direito Penal, através da crítica demonstradora do seu vazio – um vazio que causa dor insuperável - com o apontar de novas hipóteses superadoras: “... as duas determinações de Zaratustra parecem traduzir a dupla necessidade do filósofo: a de aniquilar e a de criar” (“Nietzsche, Seus Leitores e Suas Leituras”, Scarlett Marton, p. 144).

Assista o vídeo da palestra na EMERJ aqui


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Amilton Bueno de Carvalho.

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amilton marteladas

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Imagem ilustrativa do post: Friederich Nietzsche // Foto de: Pascal // Sem alterações

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