PONDERAÇÕES SOBRE O PROJETO DE LEI ANTICRIME: A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA É TOTALMENTE CONSTITUCIONAL, EMBORA SEJA ILEGAL, COMO ESTÁ PREVISTA HOJE NA LEI, RAZÃO PELA QUAL A ALTERAÇÃO DO CPP É NECESSÁRIA E PERTINENTE  

04/04/2019

 

O Projeto de Lei Anticrime do Ministro Sérgio Moro, como toda e qualquer proposta de alteração legislativa, tem pontos positivos e pontos negativos.

Não deve ser nem endeusado nem demonizado, conforme análises maniqueístas, mas debatido, sem paixões, em rodeios, sem ideologização, pela sociedade e pelos acadêmicos, Há pontos bons e outros ruins, que abordaremos nesta coluna, começando a de hoje com a matéria sobre prisão processual, melhor dizendo, a possibilidade de execução provisória da pena com a condenação proferida em 2.º grau.

Muito se fala sobre a execução provisória da pena, como se esta fosse a única alteração trazida pelo Projeto, mas há muitas outras dignas de nota.

Entre as principais mudanças que o Projeto quer empreender, além da possibilidade de execução provisória da pena, podem ser elencadas as seguintes:

(a) Dispõe sobre algumas causas de justificação, tais como a legítima defesa própria e de terceiro (que vem dando muita polêmica, pois alguns têm interpretado como uma carta branca para matar);

(b) Endurecimento quanto ao cumprimento do regime de pena;

(c) O projeto dificulta a ocorrência da prescrição penal;

(d) Previsão mais detalhada do crime de organização criminosa praticado em contexto mais grave, como em casos envolvendo criminalidade violenta, por exemplo, o Primeiro Comando da Capital (PCC);

(e) Aumento das penas relacionadas a crimes previstos no Estatuto do Desarmamento;

(f) Previsão de outras formas consensuais de resolução dos conflitos penais, além das já previstas na Lei 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), seja antes do processo (“acordo de não persecução penal”) e após a dedução do processo, com consequências distintas para cada um destes casos;

(g) Fixação da competência Comum para apurar os crimes comuns, ainda que conexos com os Eleitorais, ficando a competência da Justiça Eleitoral a cargo, apenas, dos crimes eleitorais;

(h) Ainda em matéria de competência, caso se verifique menção a alguma Autoridade com prerrogativa de foro, os atos praticados em relação a quem não a detém serão resguardados, remetendo as peças do feito apenas no que interesse à persecução da Autoridade com foro privilegiado, para persecução dela na esfera própria;

(i) Alteração nas regras sobre videoconferência e atos processuais, com vista a uma maior aplicação na Justiça Criminal, em prol do princípio da imediação (ainda que virtual, mas com interação direta com o Juízo da causa e não o Deprecado) e da oralidade;

(j) Administração, funcionamento, transferência e manutenção de presos nos presídios federais;

(l) Ampliação do Banco de Perfil de Dados Genéticos;

(m) Criação de um Banco Nacional de Dados Biométricos;

Muitas das medidas defendidas têm grande importância para modernização da Justiça Criminal, de modo a tornar o sistema mais justo e efetivo, a fim de que a execução da sentença penal não seja uma eterna promessa, como ocorre em alguns casos, pois a morosidade do processo impede que se implemente o direito material discutido, seja para punir, se for o caso, seja para resguardar a inocência (e o inocente, de fato, tem interesse no julgamento, já que quer obter uma decisão absolutória, em prol de sua honra, sendo que morosidade processual também o prejudica).

Sempre foi um mantra entre acadêmicos e operadores do Direito que o sistema penal - justamente o braço mais forte do Leviatã - atua com seletividade, aplicando-se, preferencialmente, aos hipossuficientes em geral, em especial aos pobres, negros, às minorais vítimas de preconceito e à população mais carente.

Tivemos um Professor de Criminologia, apegado à visão marxista do Direito Penal, adepto da Criminologia Crítica, que falava que a Justiça Criminal se aplicaria para os “PPP” (referindo-se a “pobres”, “pretos” e às “prostitutas”, não necessariamente usando esta terminologia).

Para a teoria da Criminologia Crítica, fala-se no Direito Penal como uma forma de dominação entre classe privilegiada e outra explorada, ainda nos moldes de uma visão marxista, dividida não entre pessoas, mas entre opressores e oprimidos O Direito Penal (e o processo) serviria(m) para manter as engrenagens de um mecanismo perverso que visaria manter os privilégios da elite, bem como para estigmatização de uma classe que deveria ser subjugada.

Pois bem, é interessante pontuar isso, pois, justamente, quando se desenha um Projeto, visando alterar (um pouco) esta situação descrita, quanto à seletividade do Direito Penal, causa certa curiosidade que aqueles que sempre denunciaram este estado de coisas sejam os que mais se mostrem contrários à mudança. Não se trata de uma crítica a x, y ou z.

Trata-se apenas de uma constatação. Ainda mais porque o Projeto, sopesadas alguns equívocos, não se mostra punitivista, ou vise a adotar o que chamam de um Direito Penal simbólico, mas procura conciliar os direitos do acusado com os da vítima e os interesses sociais.

Aliás, em seu bojo, há incremento de medidas despenalizadoras, como ocorre com os acordos de não persecução penal, aplicáveis em casos de pequenos furtos e crimes patrimoniais pouco graves, por exemplo, o que sempre foi uma demanda destes intelectuais. É errado falar que o Projeto tem objetivo, apenas, punitivista.

Obviamente, não será possível discorrer sobre todos os pontos elencados no Projeto neste breve artigo; ao longo das próximas semanas, serão dedicados artigos para cada um dos principais pontos do Projeto, começando este pela execução imediata da pena.

Sobre a execução provisória da pena

O projeto sacramenta a possibilidade de, com a prolação do acórdão condenatório, executar-se não só a pena privativa de liberdade, como também as penas restritivas de direito e a de multa.

Hoje, segundo posicionamento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apenas as penas privativas de liberdade devem ser executadas provisoriamente, não se admitindo execução imediata de pena restritiva, havendo, contudo, posição dúbia, na jurisprudência, com relação à pena de multa, ora se permitindo, ora não.

Evidentemente, da forma como está a matéria hoje, segundo a interpretação dos tribunais, é um contrassenso permitir a execução imediata de uma pena de prisão, mas não se permitir de uma pena restritiva ou multa.

Na verdade, para permitir a execução da pena privativa, o Supremo relativiza os termos da lei (frise-se, do Código de Processo Penal), mas aplica a lei rigorosamente, em seu sentido gramatical, ao não permitir a execução das penas não privativas. É uma contradição, não há como negar.

Melhor que, na dúvida, se tivesse uma posição favorável ao acusado (favor rei), inclusive em caso de pena privativa, como ocorre com as penas restritivas e pecuniária.

Voltemos à questão da execução das penas privativas.

Já escrevemos texto sobre o assunto, inclusive, por duas oportunidades aqui nesta coluna. A rigor, entendíamos, antigamente, que execução provisória da pena seria inconstitucional.

Recentemente, mediante melhor meditação sobre o assunto, haja vista as lições da Professora Ada Pellegrini Grinover, que alterou o seu posicionamento, em 2016[1], para admitir a constitucionalidade da execução provisória da pena, no que tem toda razão, passamos a entender que a Constituição, de fato, NÃO PROÍBE qualquer forma de prisão antes do trânsito em julgado, tampouco proscreve a execução provisória da pena.

Segundo palavras da Professora Ada Pellegrini Grinover:

Ada Pellegrini Grinover: “A lei deve ser aplicada de acordo com as mudanças da realidade. No momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada, ela precisava ser libertária, garantista – até exagerou neste ponto, porque criou tantos direitos que tudo foi constitucionalizado e pode ir para o Supremo. A situação era outra quando se interpretou como presunção de inocência a não possibilidade de prisão depois da sentença. Os processos penais não duravam tanto tempo, a criminalidade era outra. Não era a criminalidade econômica, mas a do ladrão de galinhas, do assassino passional”

(...)

ConJur – A vontade do legislador já foi uma forma de interpretar a Constituição, não é?
Ada Pellegrini Grinover –
 Mas isso está completamente superado. As cláusulas pétreas! Uma Constituição pode ter cláusulas pétreas? Uma nova Constituição não pode dizer outra coisa? Mas voltando à decisão do STF sobre a execução da pena, trata-se de uma interpretação evolutiva. Leia Eros Grau, leia Luís Roberto Barroso sobre isso. O relator [ministro Teori Zavascki] fundamenta a decisão sobretudo no Direito Comparado, porque isso não existe em legislação nenhuma, e no princípio da proporcionalidade de um bem em relação a outro.

ConJur – Mas a norma não fala trânsito em julgado?
Ada Pellegrini Grinover –
 Fala.

ConJur – E isso não foi atropelar uma previsão constitucional?
Ada Pellegrini Grinover –
 Mas a norma não diz que é proibido prender até o trânsito em julgado. Diz que há presunção de inocência até o trânsito em julgado.

ConJur – Então o acusado pode ser preso mesmo que seja inocente?
Ada Pellegrini Grinover –
 Ele não pode ser preso em flagrante? Preso preventivamente? A Constituição nunca disse que não pode ser preso. Ela foi interpretada. Primeiro o Supremo entendeu que podia prender, depois vieram os garantistas, dizendo que não pode prender – eu mesma já sustentei essa tese. E agora mudou de novo a interpretação”[2]

A Constituição fala, apenas, em não consideração prévia consideração a culpabilidade ou presunção de inocência, nada falando sobre qualquer impedimento de prisão antes do trânsito em julgado.

Sabe-se que, por se tratar a presunção de inocência de um princípio jurídico, segundo a teoria dos direitos fundamentais, e considerando a máxima de que não existem direitos absolutos, é plenamente possível haver restrição de um princípio, em algum ponto, sem que se fale em violação, conforme doutrina de Robert Alexy, amplamente divulgada na doutrina nacional e abraçada, inclusive, por Autores que escrevem sobre presunção de inocência.

Não se mostra despropositada, portanto, do ponto de vista constitucional, a interpretação de que uma pessoa já condenada, ou que teve a confirmação de sua condenação - ou prolação de nova condenação pelo Tribunal de 2º grau -, tenha que cumprir a pena aplicada, provisoriamente, ainda mais levando em conta que, nos Tribunais de segunda instância, há o esgotamento para discussão da matéria fático.

Enfim, não mais se discutem fatos, provas, se é culpado ou inocente, apenas interpretação e aplicação de direito, seja infraconstitucional (STJ) seja constitucional (STF).

Ora, ao lado da presunção de inocência, existe o princípio do Acesso à Justiça, também garantido constitucionalmente, que, segundo os processualistas civis, deve ser interpretado como Acesso EFETIVO à Justiça, trazendo a ideia de efetividade do processo.

Isso é o que há de mais moderno, haja vista as ondas renovatórios sobre o direito processual, trazidas pela doutrina internacional, valendo citar Mauro Capelletti, e divulgadas pela Professora Grinover, Professor Dinamarco e Araújo Cintra, no sentido de que o processo não seja apenas um instrumento formal, como se fosse um fim em si mesmo, mas um mecanismo concreto de se fazer Justiça. Quando se vai à Justiça, não se quer só uma decisão formal, ainda mais se a decisão tiver que ser cumprida daqui a 20 anos (isso se cumprida).

Justiça a destempo, ou tardia, não é justiça,

Este é um problema que se verifica não só em âmbito nacional, ou nos Estados, mas, inclusive, nos Tribunais internacionais que, diante de casos graves e de flagrantes violações de direitos humanos, nada fazem em termos de efetividade (veja o caso do Tribunal Penal Internacional e da Venezuela, hoje), restando a conclusão de que, talvez, melhor que não existissem.

A Justiça (e as pessoas de carne e osso, que a aguardam) não deve se contentar apenas com a declaração de uma determinada situação jurídica, com descrição de seus efeitos, mas reclama que o que foi (ou será) colocado no papel tenha viabilidade, seja colocado em prática, enfim, se torne realidade.

Caso contrário seria um mero teatro ou eterno faz de contas, como ocorre hoje, em alguns casos.

Na verdade, sob o pretexto de observar a presunção de inocência, permitia-se o prolongamento indevido e indefinido do processo, objetivo alcançado pelos mais privilegiados, em relação aos quais sempre existiu, de certa forma, e via de regra, uma blindagem da Justiça Criminal.

O fato de se permitir a execução provisória da pena não implica a violação do princípio da presunção de inocência, que permanece hígido quanto aos demais norteamentos que lhe são inerentes, seja em relação à regra de julgamento (in dubio por reo e favor rei), seja quanto à repartição do ônus probatório.

Do ponto de vista do tratamento, ou do significado da presunção de inocência relacionado à regra tratamento, cabe destacar que, apesar de haver restrição a este aspecto, não há violação do direito em si, pois os demais norteamentos são mantidos, sendo que a prisão imediata é constitucionalmente justificável, pois estamos falando de uma situação em que pessoa foi condenada no Tribunal, exaurido o duplo grau de jurisdição e a discussão dos fatos.

Enfim, a execução provisória da sentença penal é CONSTITUCIONAL.

Ainda que se argumente que pode propiciar injustiças, já que poderia haver casos em que a pessoa será obrigada a cumprir pena, depois tendo um recurso aceito e provido pelos Tribunais Superiores, estas situações são contornáveis, pois, verificando o Tribunal de 2ª instância ou Tribunal Superior que há plausibilidade do direito invocado, permite-se a concessão de efeito suspensivo.

Enfim, o principal dado usado para derrubar a prisão em 2ª instância, a possibilidade de haver injustiças, cai por terra, com o devido respeito, sendo tratado, de forma séria e responsável, pelo Projeto acerca da concessão de efeito suspensivo.

Não se trata aqui, conforme algumas leituras equivocadas, de inverter a lógica entre prisão e liberdade, tornando a prisão a regra e a liberdade exceção.

Não se trata, evidentemente, disso, pois, cabe lembrar que, antes da decisão colegiada, a pessoa respondeu ao processo em liberdade.

Houvesse uma suposta inversão da lógica de que a liberdade seria a regra, a pessoa deveria ser presa com a mera decisão de 1.º grau (e o projeto não fala isso), como ocorre, aliás, em sistemas considerados berços da presunção de inocência, como o americano e o francês.

Com a condenação em 2ª instância há uma nova situação processual, que muda a situação jurídica da pessoa, não podendo ser desconsiderada ou interpretada como um nada, a ponto de se chegar a falar, antigamente, que os Tribunais de 2.ª instância seriam meros tribunais de passagem.

Seja como for, apesar do nosso entendimento quanto à CONSTITUCIONALIDADE da prisão imediata, nem tudo que é constitucional, ou possível e admissível pela Constituição, é necessariamente legal, pois precisa ser previsto e implementado na legislação.

Hoje, como a matéria está prevista na lei, considerando que há uma vedação explícita da prisão antes do trânsito em julgado, a não ser que o caso ostente cautelaridade, continuamos a entender que a prisão provisória é ILEGAL, pois o Código de Processo Penal NÃO permite a execução provisória da pena.

Não se trata, portanto, de inconstitucionalidade, pois entendemos que a Constituição permite a execução provisória, mas de ilegalidade, pois não há previsão expressa no sistema processual penal, não se podendo utilizar, como analogia, a sistemática do direito processual civil, como já defendemos antes.

Tendo em vista isso, faz-se importante a alteração legislativa, que, se for aprovada, para permitir a execução provisória, deverá viger para casos futuros, eis o conteúdo nitidamente penal e processual da norma, já estamos a falar de privação da liberdade, tendo a norma natureza mista, valendo a aplicação, em toda sua plenitude, da lei penal mais benéfica.

 

 

Notas e Referências

[1] https://www.conjur.com.br/2016-jul-12/entrevista-ada-pellegrini-grinover-advogada-processualista

[2] https://www.conjur.com.br/2016-jul-12/entrevista-ada-pellegrini-grinover-advogada-processualista

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Stained glass ceiling // Foto de: Kevin Burkett // Sem alterações

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