Politicamente Correta e sem efeito prático a tramitação prioritária dos processos que apuram Crimes Hediondos - Primeiras impressões sobre a Lei 13.285/2016

13/05/2016

Por Jorge Bheron Rocha e Alexandre Morais da Rosa - 13/05/2016

Qual a relevância de o processamento de crimes hediondos ser prioritária? Acelerar a punição e superar o devido processo legal, em nome do politicamente correto.

Foi publicada a lei nº 13.285/2016, cuja vigência se dá a partir do dia 11 de maio de 2016, alterando o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal – ao acrescentar o art. 394-A, que estabelece a preferência de julgamento para aqueles processos cujos delitos apurados estejam classificados como crimes hediondos, com a seguinte redação:

"Art. 394-A. Os processos que apurem a prática de crime hediondo terão prioridade de tramitação em todas as instâncias."

O projeto de lei teve origem na Câmara dos Deputados (PL 2839/2011), e foi apresentado em 1º de dezembro de 2011 pela Deputada Keiko Ota (PSB/SP), tendo como justificativa a "necessidade de que tais delitos hediondos e seus autores sejam julgados preferentemente a qualquer outro delito, para que se faça a tão esperada Justiça". Aprovado e encaminhado ao Senado (PLC nº 20/2014) recebeu relatório do Senador Antônio Carlos Valadares, onde ficou consignado que "os crimes hediondos são aqueles considerados mais graves, merecedores de maiores restrições (...) comovem a população e as próprias autoridades, principalmente porque não adianta agravar a pena se o processo não anda, não tem fim". O projeto de lei foi aprovado sem qualquer modificação, tendo a Presidência da República sancionado e promulgado no dia 10 de maio de 2016. Tudo em nome do politicamente correto.

Em nossas primeiras impressões, importa notar a atecnia ou esquecimento do legislador ao aprovar o projeto estabelecendo, de forma literal e expressa, apenas a tramitação dos processos em que se apura a prática dos crimes "ditos hediondos" (PL 2839/2011)"previstos na Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990" (Relatório do PLC nº 207 2014 no Senado), ou seja, aqueles descritos no rol taxativo do art. 1º da citada norma, deixando de fora os chamados crimes assemelhados à hediondos: a tortura, o tráfico ilícito de drogas e afins, bem como o terrorismo, todos previstos na Constituição da República (art. 5º, XLIII) e disciplinados em leis próprias, a saber, respectivamente, lei nº 9.455/1997; lei nº 11.343/2006; e a novíssima lei nº 13.260/2016.

Ora, as razões que levaram o Poder Legislativo a dar prioridade aos processos que tratam dos crimes hediondos podem ser plenamente invocados para fundamentar o tratamento processual prioritário também dos crimes de tortura, tráfico e terrorismo, uma vez que se deve buscar a harmonia do sistema processual penal, optando-se pela interpretação que equilibra as situações jurídicas que "estão constitucionalmente equiparadas e restabelece, em sua inteireza, a racionalidade e a sistematização do ordenamento penal"[1]E em todos os casos, aliás.

Assim, tendo em vista que "a Constituição conferiu aos crimes de tortura, de tráfico de entorpecentes, de terrorismo e os definidos como hediondos em tratamento unitário, como expressamente inscrito no art. 5o, XLIII"[2] deve ser conferida tramitação preferencial aos processos que apurem crimes hediondos e também os assemelhados a hediondos, ainda evocando-se como argumento o art. 3o do CPP, que possibilita à lei processual a interpretação extensiva e aplicação analógica, como expressão do justo brocardo ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio.

Uma segunda observação se liga ao fato de que a lei busca o julgamento dos crimes hediondos (e assemelhados) preferentemente a qualquer outro delito. Entretanto, esta prioridade deve ser harmonizada com outras tantas prioridades estabelecidas pelo legislador ordinário, como, por exemplo, os processos em que figuram como parte (lato sensu) pessoa idosa (art. 71 da Lei nº 10.471/2003) ou portadora de doença grave (art. 1.048 da Lei nº 13.105/2016), pouco importando seja ela acusada, vítima ou assistente de acusação; ou as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 33 da Lei nº 11.340/2006). Dentre todas, não há como superar a prioridade de julgamento do réu que se encontre privado de sua liberdade (art. 429, CPP), nomeadamente se for sob o título provisório e precário de uma prisão cautelar. São tantas as preferências que concorrem no inchaço legislativo, que se tornam desprovidas de qualquer efeito prático, são dispositivos "para inglês ver".

Por fim, a principal crítica que se deve fazer está ligada aos fundamentos aduzidos pelas Casas Legislativas para a iniciativa, discussão e aprovação do projeto, que seria a rápida tramitação dos processos "para que se faça a tão esperada Justiça" e porque "a condenação custa a se efetivar" "os criminosos que cometem crimes hediondos têm de ser condenados mais prestemente". Compreende-se, com todo o respeito, a fala (justa) de uma mãe envolta em dor, não a voz de um Parlamento que deve pensar e buscar realizar a justiça como valor supremo de uma sociedade livre em lugar de uma justiça comprometida com a finalidade persecutória e punitiva.

A rápida tramitação dos processos que envolvam crimes hediondos ou assemelhados não pode estar ligada unicamente à vontade de fazer justiça célere, uma vez que, embora sirva o processo à apuração das responsabilidades, suas disposições são limitadoras do poder punitivo do Estado, regulamentando as hipóteses e formas com que se poderá retirar ou restringir bens jurídicos (vida, liberdades, patrimônio, etc) do acusado e não com viés unicamente condenatório. Sob pena de odioso desvio de finalidade, não se pode pensar a rápida tramitação do processo para os fins de restituição da "lisura do Judiciário e eficácia das leis no País", em detrimento das garantias do contraditório e da ampla defesa, ou em desrespeito aos ritos estabelecidos ou, ainda, olvidando as oportunidades processuais para a produção devida e regular de provas.

Se é certo que todos (acusados, vítimas, sociedade, sujeitos processuais) temos o direito a uma razoável duração do processo e, especificamente, à apuração das condutas criminais consideradas mais bárbaras na contemporaneidade, não menos exato é reafirmar que essa razoável duração, direito fundamental de índole constitucional, não pode ser reduzida ao "mero cumprimento de prazos legais pelo Poder Judiciário"[3].

Parafraseando Ruy Barbosa, Justiça açodada, tanto quanto Justiça tardia, é uma injustiça institucionalizada. Em resumo: um dispositivo irrelevante, fruto de Direito Processual Penal simbólico, que não compreende a importância do devido processo legal como garantia, tendo-o como da ordem do estorvo[4].


Notas e Referências:

[1] FRANCO, Alberto Silva Franco. "Tortura: breves anotações sobre a Lei 9.455/97". Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19. São Paulo: RT, ju1./dez. 1997, p. 69

[2] STJ - Resp 184918/RS; - Relator Ministro Vicente Leal, DJ 23/9/2002, p. 400.

[3] ANNONI, Danielle. O Direito Humano de Acesso à Justiça. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre 2008. p. 178.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.


Bheron Rocha Jorge Bheron Rocha é Defensor Público do Ceará. Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra com estágio na Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha. Sócio fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia – ILAEDPD. Membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo – ANNEP.


Alexandre Morais da Rosa. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .
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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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