Em 1963, quando Hannah Arendt lançou seu livro "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal"[1], Irving Howe e Lionel Abel convocaram uma reunião na sociedade literária de Nova York.
O evento, organizado pela revista Dissent no hotel Diplomat, em Manhattan, foi descrito por Robert Lowell como um julgamento ou apedrejamento de um membro degenerado da família (HILL. 2022, p. 185).
Na ausência de Arendt, que estava dando aulas em Chicago, o encontro transformou-se numa verdadeira sala de guerra, com centenas de pessoas lotando o salão para testemunhar a acusação proferida por Raul Hilberg, historiador, Marie Syrkin, escritora sionista, e Daniel Bell, professor de Harvard.
Mesmo tendo sido convidada para o evento, Arendt não compareceu (HILL. 2022, p. 185).
Cada referência ao seu nome era recebida com "aplausos irônicos" e "expressões de surpresa", enquanto Abel batia furiosamente na mesa, argumentando que Arendt sugeriu que o Holocausto era algo banal, que ela considerava os nazistas mais simpáticos do que suas vítimas e que culpava o povo judeu por seu próprio sofrimento (HILL. 2022, p. 185)
O único defensor de Arendt na ocasião foi Lionel Kazin, que, de forma hesitante, dirigiu-se ao pódio e questionou: "Mas Hannah não matou um judeu sequer?".[2]A partir deste acontecimento, principiemos algumas reflexões acerca das críticas direcionadas ao Supremo Tribunal Federal.
O fenômeno político da polarização trouxe consigo um desafio significativo para qualquer operador do direito que anseie criticar o Supremo Tribunal Federal (STF) de forma construtiva e responsável.
Em meio ao cenário polarizado que marcou os últimos anos, objurgar as decisões e atuações do STF se tornou uma tarefa complexa, pois existe o risco real de ser associado erroneamente a um autoritário que apadrinha pelo fechamento da suprema corte ou qualquer devaneio do tipo[3]. A necessidade de um debate saudável e crítico sobre o funcionamento das instituições democráticas, incluindo o STF, é fundamental para o aperfeiçoamento do sistema jurídico e político.
No entanto, o contexto polarizado e as posições extremas que surgiram durante os últimos anos muitas vezes obscureceram essa discussão. Críticos bem-intencionados do STF encontraram dificuldades em expressar as suas preocupações sem serem associados ao radicalismo político. Ademais, existe a possibilidade de que críticas dirigidas ao STF sejam instrumentalizadas por setores políticos mais radicais.
Isto posto, é crucial que os operadores do direito mantenham um compromisso firme com os princípios democráticos e o Estado de Direito ao examinar o STF. Isso implica em promover um diálogo construtivo, baseado em argumentos jurídicos sólidos e no respeito às instituições democráticas.
A análise responsável não deve ser confundida com o desejo de enfraquecer ou desestabilizar as instituições que são pilares de uma sociedade democrática.
Hannah Arendt, ao questionar e censurar aspectos do julgamento de Eichmann, não expressava apoio ao massacre dos judeus (pelo contrário!). Da mesma forma, a crítica ao Supremo Tribunal Federal não implica necessariamente um desejo pelo fechamento da Corte.
É categórico reconhecer que a discordância com certas decisões ou posições não equivale a endossar medidas extremas, assim como a ausência de concordância com algumas políticas do Supremo não sugere automaticamente uma volição pelo seu encerramento.
Assim como na análise a Hannah Arendt, onde algumas interpretações distorcidas podem sugerir uma postura que ela não defendia, é importante separar o ato de questionar ou discordar de instituições, de um apoio as apreciações meramente destrutivas. A complexidade das opiniões e o contexto em que são manifestas devem ser considerados para evitar conclusões precipitadas.
O exemplo de Hannah Arendt destaca que uma posição crítica pode ser interpretada de maneira distorcida, ressaltando a necessidade de discernimento na análise de discursos e opiniões divergentes.
Em continuidade, é decisivo destacar que os membros do STF devem reconhecer que as apreciações direcionadas a eles não podem ser automaticamente interpretadas como uma "reação autoritária" contra a mais alta instância judicial do país.
Um exemplo ilustrativo desse desafio reside nos diversos mal-entendidos observados durante a análise da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021. Vale avultar que esse tema tem sido objeto de debate acadêmico por mais de duas décadas.
Embora se reconheça a relevância do contexto político, é imperativo salientar que esse fator, por si só, não pode ser utilizado como justificativa para rejeitar a eventual constitucionalidade da mencionada PEC.
É fundamental promover um diálogo construtivo entre o Parlamento e o STF, ocasião em que as críticas sejam encaradas como oportunidades para aprimorar o sistema jurídico, sem que isso comprometa a independência e a integridade da mais alta corte do país.
O eu-lírico da canção “Wish You Were Here” da banda Pink Floyd[4] pergunta ao interlocutor: “Então, então você acha que consegue distinguir? O paraíso do inferno? Céus azuis da dor?”.
É preciso assinalar que é possível questionar as atuações do STF de forma construtiva e respeitosa, contribuindo assim para o fortalecimento das instituições democráticas em vez de enfraquecê-las.
Nesse contexto de polarização, o desafio para aqueles que pretendem avaliar o STF é apartar-se como vozes comprometidas com a preservação da democracia e do Estado de Direito. Contudo, é fundamental não hesitar em expressar análises (ainda que contundentes) quando o STF cometer equívocos.
Como na parábola bíblica, é preciso separar o “joio do trigo”. Como na canção: “separar céus azuis da dor”.
Notas e referências
ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo: entre o direito e a política. Rio de Janeiro: História Real, 2023.
HILL, Samantha Rose. Hannah Arendt. Tradução Juliana de Albuquerque. Editora Contracorrente: São Paulo. 2022, págs. 185 a 200.
RECONDO, Felipe. WEBER, Luiz. O tribunal: como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária. Companhia das Letras. São Paulo: 2023
[1] Ensaio dedicado a Caroline Vianna Longhi, que compartilha a apreciação pela riqueza tanto da obra quanto da vida de Hannah Arendt.
[2] Neste sentido, conferir: HILL. Samantha Rose. Hannah Arendt. Tradução Juliana de Albuquerque. Editora Contracorrente: São Paulo. 2022, págs. 185 a 200.
[3] Neste sentido, conferir: RECONDO, Felipe. WEBER, Luiz. O tribunal: como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária. Companhia das Letras. São Paulo: 2023.
[4] "Wish You Were Here" foi o nono lançamento de estúdio da banda britânica de rock progressivo, Pink Floyd, chegando ao público em setembro de 1975.
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