Poder Geral de Cautela no Processo Penal é uma abusiva criação jurisdicional sem fundamento?

06/08/2015

 Por Alexandre Morais da Rosa e Michelle Aguiar – 06/08/2015

Eureka: Prender alguém cautelarmente exige fundamentação e requisitos legais. Estamos sendo cínicos, claro. A liberdade do sujeito, quer na modalidade de prisão, como de medidas cautelares, demanda expressa previsão legal, bem assim demonstração argumentativa do preenchimento dos requisitos legais. Diferentemente do Processo Civil, no qual vigora o Poder Geral de Cautela, no Processo Penal somente é utilizado pela invencionice dos magistrados que não se deram conta do seguinte: a liberdade somente pode ser restringida nas hipóteses legais. Vigora a legalidade estrita, dado que a liberdade é a regra e não a exceção. As hipóteses de restrição da liberdade somente podem ser deferidas nos exatos termos em que a Lei Processual Penal indica (CPP, art. 312 e 319). Descabe criatividade jurisdicional[1].

Assim é que a prisão ou mesmo as medidas cautelares somente podem ser impostas desde o primado do devido processo legal substancial, ou seja, nos termos do art. 282 do CPP, que exigem necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Por elas, deve-se levar em conta a menos gravosa, adequada (meio e fim da medida) e do custo-benefício do efeito da decisão, partindo-se sempre da presunção de inocência. Logo, não se pode entender como necessidade qualquer coisa, mas sim o preenchimento dos requisitos cautelares do processo e não da sanção penal[2].

Em tempos atuais, todavia, tornou-se raro seguir as regras do jogo[3]. Não é preciso ser nenhum especialista em direito processual penal para saber que a prisão deve ser sempre exceção, havendo outras medidas cautelares diversas da prisão para serem utilizadas. Isto quando necessárias, adequadas e proporcionais.

A implementação desta lógica encontra dificuldades em face da assunção de uma mentalidade inquisitória e do uso das prisões para finalidades outras, como, por exemplo, delações e leniências. A causa desta extinção ou desuso, como prefiram chamar, tornar-se regra é muito simples: os requisitos estabelecidos em lei para ensejar a decretação preventiva são extremamente manipuláveis, podendo recair sobre qualquer caso em que o juiz “entenda” como necessário, não havendo, portanto, limites para a criatividade do julgador em efetivar estas prisões, já que os Tribunais de revisão apresentam postura, em regra, condescendente.

Por mais que preceitue o artigo 315 do CPP conjugado com o artigo 93, IX da CRFB que a decisão que decretar a preventiva deve ser devidamente fundamentada, não há controle sobre sua real necessidade, adequação e proporcionalidade, dando grande margem à subjetividade, na modalidade decisionismo (Lenio Streck).

A afronta desta dupla imposição legal constitui a ilegalidade e o consequente abuso de poder, que pode vir a ser atacado via HC.[4] Mas afinal, quem reconhece essa afronta? São raríssimos os Tribunais que percebem a ausência ou a precariedade de fundamentação no que concerne a decretação da prisão preventiva e mesmo na ausência de requisitos, confirmam as segregações pelas razões mais estranhas Afinal, basta se acomodar em pautar-se pelo discurso da Ordem Pública, inverificável do ponto de vista epistemológico, uma vez que sua configuração é retoricamente auferida pelo deslizamento imaginário do “poder geral de cautela”.

Claro que se pode prender cautelarmente, bem assim impor-se cautelares. Mas da anemia de fundamentação surgem duas grandes problemáticas: 1) Ou o julgador não fundamenta nada, apenas repete a literalidade dos requisitos da decretação da preventiva, como se isso de fato fosse alguma fundamentação, sendo apenas um julgador “porque sim”[5] ou 2) Fundamenta de maneira tão persecutória que o acusado já pode se considerar condenado antes mesmo de proferida a sentença.

A consequência disto é visível. Se antes tínhamos julgadores que mascaravam qualquer tipo de linha punitivista em prol de resguardo de sua imparcialidade, hoje estas máscaras caíram e já estão todas jogadas no chão para quem quiser ver. Assumiram, de fato, uma postura de segurança pública jurisdicional.

A externalização do pensamento do julgador em condenar o acusado já está presente, muitas vezes, ao converter o flagrante em preventiva, pois os fundamentos utilizados além de arbitrários, são constantemente munidos de um pré-julgamento realizado antes mesmo do devido processo legal. Como garantir direitos e garantias fundamentais se o acusado já é considerado culpado em uma fase tão precoce?

Pode parecer fantasioso o que aqui relatamos, mas em nenhum momento sequer desvirtuamos em nossa narrativa a realidade, muito pelo contrário, trazemos exemplos concretos desta incessante vontade de punir e da grande e infinita criatividade que os magistrados vêm apresentando nestes últimos tempos.

Ao ler algumas decisões, deparamo-nos com os seguintes termos e expressões utilizadas para se referir ao acusado, verdadeiros mantras entoados para dar cariz de justificação ou sem fundamento: “recalcitrante violador do direito”, “que o acusado possui desvirtuada personalidade voltada para o crime”, “que o crime praticado já denota a periculosidade do agente”. Estas são algumas ideias elencadas pelos magistrados para demonstrar que o acautelamento do acusado é imprescindível, havendo perceptíveis juízos de valor ao se referir à presunção de inocência do acusado, relegada à segundo plano, conforme se pode extrair do tratamento recebido.

Quando o acusado é primário a criatividade se desloca, matreiramente. Mesmo que nos salte aos olhos ter que afirmar isto, outro ponto que fora observado é a argumentação de que “o fato do acusado não trazer provas nos autos de possuir domicílio e exercer atividade laborativa lícita” constitui-se em outro imperativo para que o julgador acredite justifica a prisão, mesmo sem ser hipótese legal, especialmente depois da Lei n. 12.043/2012. Independentemente do acusado ser primário, o que chega a ser estarrecedor, pois partindo dessa premissa, todo acusado que for morador de rua e desempregado será preso, o que incorre em uma dupla estigmatização e afronta direta a seus direitos. Além do que, trabalhar é um direito e o sujeito não pode ser prejudicado por não exercer um direito, salvo se pensarmos, ainda, na lógica da “vadiagem”

Por fim, como se não fosse suficiente narrar este show de horrores, ainda nos deparamos com o seguinte argumento: “em liberdade, caso o acusado tenha cometido o crime que lhe é imputado, certamente encontrará o mesmo estímulo para a prática de outros delitos” Este argumento extrapola os limites do absurdo, tendo em vista que o magistrado trabalha com uma noção de futurologia criminal, ou seja, afirma antecipadamente que com a eventual soltura o acusado voltará a delinquir.

É impressionante o duplo papel que o julgador quer exercer: o de vidente e o de secretário de segurança pública[6], uma vez que visa proteger previamente a população de um crime ainda não cometido pelo agente, atuando este como o “protagonista da salvação e da limpeza social[7]

Levar a sério o Processo Penal, entendendo como limite ao poder criminalizador antecipado é a tarefa de todos os dias, embora boa parte dos julgadores tenha se transformado, na manipulação dos requisitos legais amplos e anêmicos[8], em longa manus da segurança pública. Enfim, como dizem Salah Khaled Jr e Alexandre Morais da Rosa, transformaram o “in dubio pro reo”, no “in dubio pro Hell”[9]. O que podemos dizer é que não existe “poder geral de cautela” no Processo Penal e que prender alguém deve atender os requisitos legais e não “porque sim”.


Notas e Referências

[1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 807-808: “No processo civil, explica CALAMANDREI, é reconhecido o poder geral de cautela (potere cautelare generale) confiado aos juízes, em virtude do qual eles podem, sempre, onde se manifeste a possibilidade de um dano que deriva do atraso de um procedimento principal, providenciar de modo preventivo a eliminar o perigo, utilizando a forma e o meio que consideram oportunos e apropriados ao caso. Significa dizer que o juiz cível possui amplo poder de lançar mão de medidas de cunho acautelatório, mesmo sendo atípicas as medidas, para efetivar a tutela cautelar. (...) No processo penal, não existem medidas cautelares inominadas e tampouco possui o juiz criminal poder geral de cautela. No processo penal, forma é garantia. Logo, não há espaço para ‘poderes gerais’, pois todo poder é estritamente vinculado aos limites e à forma legal.”

[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/ Empório do Direito, 2015, p. 65-67.

[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015; MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/ Empório do Direito, 2015, p. 46.

[4] MINAGÉ, Thiago M.; Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumes juris, 2015, p 117

[5] A fim de melhor explicar a terminologia julgador “porque sim”, cita-se aqui: “O julgador “porque sim” é, portanto, o juiz que decide conforme a sua convicção, porém não a externaliza, ou seja, não fundamenta. Acaba por ferir garantias e direitos fundamentais do acusado e afronta diretamente dispositivos constitucionais e legais. Deixa, portanto, a defesa abandonada à sua própria sorte, não se importando em respeitar as regras do jogo Ele quer que seja assim, ele decide assim. Por quê? Porque sim! Para o juiz, isso é mais do que uma explicação, não é preciso dizer mais” (disponível em: http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/o-julgador-porque-sim-e-as-constantes-arbitrariedades-do-poder-judiciario/)

[6] No que concerne ao Juiz- Secretário de Segurança Pública, é preciso explicitar elucidação trazida por Antonio Pedro Melchior e Rubens Casara: “Note-se que o ativismo judicial em matéria criminal é absolutamente prejudicial à tutela dos direitos fundamentais por várias razões. Ao transformar p Estado-Juiz em agente de uma suposta “guerra contra o crime”, o ativismo desloca o local constitucionalmente demarcado para o discurso do julgador ( locus da imparcialidade”, possibilitando/ sugerindo a atuação abusiva do poder jurisdicional, ao mesmo tempo que fragiliza o regime de garantias constitucionais (que, nesse quadro, passam a ser percebidas como óbices à eficiência bélica) CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. P. 193

[7] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JR, Salah. In dubio pro Hell. Profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 59

[8] LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Processo Penal no Limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED, Salah. In dubio pro Hell I. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.


 

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui   

 


  Michelle Aguiar Michelle Aguiar. Estudante de Direito do Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais (IBMEC). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Autora de diversos artigos jurídicos.  


Imagem ilustrativa do post: 'Secret War' // Foto de: Tomas Belardi // Sem Alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/31215012@N02/6608317311/ Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura