Podemos culpar por denunciação caluniosa a vítima de agressão que altera seu depoimento?

11/03/2016

Por Rômulo Luis Veloso de Carvalho - 11/03/2016

No trabalho diário com crimes praticados contra a mulher no ambiente doméstico, uma cena que insiste em se repetir e suas consequências jurídicas deveriam despertar maiores reflexões e cuidados por parte dos atores do sistema de justiça.

É sabido que vivemos em uma sociedade marcadamente machista e que uma das facetas mais perversas dessa realidade se revela no local onde as mulheres julgam estarem mais protegidas e próximas daqueles que amam: o lar.

Foi justamente reconhecendo a vulnerabilidade da mulher nessa situação de exposição a violência doméstica e como forma de coibir a proliferação de casos que, em 2006, foi sancionada a lei 11.340 - lei maria da penha – com um viés evidentemente protetivo a esse grupo legalmente reconhecido como vulnerável, acompanhando convenções internacionais e a própria diretriz constitucional (226, §8º, da CRFB/88).

A proteção legal não é novidade, mas, ainda assim, diariamente são realizados inúmeros registros no país com a consequente comunicação aos órgãos competentes de ocorrência de uma suposta infração penal praticada no âmbito doméstico. Dentre os casos mais comuns: lesões corporais e ameaças. A mecânica específica é até bem variável, mas não interessa tecer maiores considerações sobre ela, ou acerca do procedimento, tipos penais envolvidos e o direito aplicável a espécie, visto que desses assuntos há largo trabalho doutrinário.

O que particularmente intriga é como, por vezes, a violência ocorrida no lar é repetida, de outra maneira, mas ainda dolorosa, pelo próprio sistema de justiça.

Dispensam maiores considerações como deve ser profundamente negativa a sensação de ser insultada, aviltada e agredida dentro de sua própria casa pelo companheiro (exemplo mais corriqueiro). Então imagine que a violência ocorra e a vítima procure proteção imediata policial, fato que desencadeará (independentemente da discussão a respeito) uma ação penal contra o agressor - vide Adin 4.424- em que foi assentada a natureza pública incondicionada da ação penal que apura crimes ocorridos com violência doméstica e familiar contra mulher.

Sem entrar no mérito do julgado, mas admitindo que o entendimento busca conceder maior proteção a vítima, vulnerável presumidamente pela lei, ao assegurar necessariamente o desencadeamento da apuração penal, por outro lado não raro a coloca em apuros, fruto de uma interpretação equivocada do seu comportamento dentro da instrução penal.

Acontece reiteradamente. A ação penal tem seu início e no momento da oitiva da suposta vítima, não raro, única pessoa que pode elucidar com mais clareza a ocorrência dos fatos, ocorridos na privacidade do domicílio, ela muda inteiramente a versão do ocorrido já relatada na delegacia de polícia, com aparente intuito de brecar a condenação do suposto agressor. Os casos realmente são corriqueiros, por exemplo e sem estabelecer juízo sobre a hipótese,mas apenas para ilustrar, recentemente, a imprensa noticiou a mudança de versão apresentada pela suposta vítima em uma agressão no âmbito doméstico envolvendo famoso político fluminense.

Não é possível vaticinar que todos os casos merecerão o mesmo desfecho, mas é possível afirmar que realmente a mudança de versão da então ofendida muitas vezes implicará na absolvição do suposto agressor.

A uma porque o artigo 155 do Código de Processo Penal não autoriza uma condenação sem que nenhuma prova produzida em contraditório judicial milite em desfavor do acusado e a duas porque, ainda que não se possa analisar de forma acrítica a alteração de versão, o novo depoimento aliado a uma negativa do réu, no mínimo, poderá estabelecerá uma dúvida razoável que impedirá o magistrado de alicerçar um decreto condenatório naquela ocasião.

Indo além na reflexão, a primeira indagação é a respeito da motivação da suposta vítima para assim agir. Dificilmente se conseguirá precisar ou definir a questão com alguma exatidão matemática, simplesmente porque não há regra aparente: manutenção do relacionamento, reconciliação no enlace amoroso, preocupação com os filhos, dependência financeira, ameaças, vontade de virar a página e estabilizar as relações familiares abaladas com a intervenção do direito, enfim, imprevisíveis as razões e dispensáveis juízos de ordem moral por parte dos operadores jurídicos.

A segunda indagação pertinente, e aqui reside o problema, é a respeito da análise jurídica da conduta da suposta vítima. Neste momento é preciso traçar um marco divisório.

Com relação aquelas que deliberadamente imputam falsamente a alguém a pratica de um crime, levando ao conhecimento da autoridade estatal essa falsa imputação, incorrerão muito possivelmente na conduta típica do artigo 339 do Código Penal – crime de denunciação caluniosa.

Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente.

O problema aparece nos casos em que a vítima muda sua versão para beneficiar o agressor na ação penal apurada. É possível se aventar a ocorrência de denunciação caluniosa?

A resposta aqui é definitivamente negativa. É necessário mais do que a imputação de um crime ou contravenção penal para incurso no referido tipo penal, é preciso que a imputação seja falsa, comprovadamente falsa, com o animo de caluniar.

Nesse cenário, ainda que o agressor venha a ser absolvido, como nas citadas hipóteses, caso de se verificar ausência de provas produzidas em contraditório judicial ou dúvidas em torno da infração penal, não se poderá chegar ao extremo de supor falsa aquela afirmativa para desencadear uma ação penal contra a vítima da agressão, sob pena de se correr o sério risco de punir duplamente a vítima da violência originalmente apurada.

O fato é que a atuação contraditória da vítima, na prática, realmente serviu para retirar do processo os elementos para condenação do suposto agressor, mas isso ocorre sem que muitas vezes se possa vislumbrar o dolo de fazer a calúnia. A imputação é falsa quando a ocorrência não existiu, quando foi praticada por outra pessoa ou ainda quando a pessoa realmente imputada praticou crime mas o agente lhe imputa infração penal diversa e mais grave. Nada disso ocorre, ao menos não com lastro sério de justa causa.

A aparente vítima de uma agressão que altera sua versão não pratica a conduta censurada no tipo penal, sendo obviamente desprovida de tipicidade sua alteração de versão, motivada normalmente por fins que em nada se relacionam a intenção de prejudicar o agressor, sabidamente o verdadeiro dolo censurado pelo tipo penal em questão.

Importa destacar ainda que se afigura contradição manifesta o pedido de condenação do suposto agressor com depoimento da vítima no sentido de retirar a responsabilidade e, igualmente, providencias no sentido de responsabilização da vítima por denunciação caluniosa.

Ora, o segundo depoimento não pode se prestar a ser “verdade” para conceder lastro de justa causa para denunciação caluniosa e ao mesmo tempo “mentira” para ser desconsiderado e alicerçar um decreto condenatório na ação penal originária de violência doméstica, sob pena de se desafiar a lógica.

Apresentada a questão, de forma sucinta, a atipicidade da conduta daquela suposta vítima de violência doméstica que por motivos diversos altera sua versão é de compreensão facilitada à luz da dogmática legal, em especial, o princípio da estrita legalidade penal, já tão visitado pela doutrina.

Sem embargo disso, a aparente obviedade não se verifica na praxe forense. É comum se interromper o depoimento da testemunha para censurar sua mudança de versão, inclusive com a advertência de responsabilização pelo crime de denunciação caluniosa. Ocorre que, como já dito, quando se tem a desconfiança de que a alteração de versão é unicamente para beneficiar o suposto agressor, hipótese mais comum, crime não há e censura nenhuma é cabível, sob pena até de se exercer questionável direcionamento no rumo do depoimento.

Parece cegar diversos operadores do direito a irritação que a conduta provoca. Em um cenário de ilimitadas necessidades e recursos insuficientes, é aparentemente lamentável a movimentação da estrutura de justiça para ao final, por fatores muitas vezes de ordem íntima, findar a instrução com a impressão de um fracasso absoluto

Ocorre que a inutilidade é apenas aparente e muitas vezes só o que falha é a perseguição por uma sentença condenatória. É fácil deduzir que ao menos para a vítima, finalisticamente, o ocorrido pode representar o fim de um dramático episódio e a interrupção de um ciclo de agressões.

Os agentes do sistema de justiça precisam lutar com a automática vontade de estabelecer juízos de censura de ordem moral a conduta da suposta vítima, a partir dos quais buscam repreensão jurídica penal onde não há. O processo ruma a sentença, seja ela condenatória ou não.

Revela-se até de certa forma cruel ameaçar ou mesmo propor um processo penal por denunciação caluniosa contra aquela vítima. Não é difícil imaginar que ela pode ter sofrido a agressão física relatada, possivelmente outras que não noticiou, pode sofrer para curar as feridas, sofrer para denunciar o companheiro, sofrer para ir a juízo falsear a verdade e, ainda assim, por juízos de censura moral absolutamente desconsideráveis por parte de quem não é capaz de exercer a alteridade, pode restar em um juízo apressado de análise sofrendo uma persecução penal por parte de sistema que acionou buscando proteção. Isso justamente pelo transcurso obrigatório da ação penal imposto como proteção.

A questão não é indiferente aos Tribunais, como o acertado precedente mineiro adiante lembrado, que obstou o prosseguimento de uma ação penal dessa natureza:

EMENTA: HABEAS CORPUS - REPRESENTAÇÃO DE AGRESSÃO - LEI MARIA DA PENHA - RETRATAÇÃO NA DELEGACIA - NECESSIDADE DE SER FEITA PERANTE JUÍZO - RETRATAÇÃO NULA - INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL CONTRA A SUPOSTA VÍTIMA DE AGRESSÃO POR CRIME DE "DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA" - DESCABIMENTO - ABSOLUTA AUSÊNCIA DE "ANIMUS CALUNIENDI" - ATIPICIDADE DA CONDUTA OU AUSÊNCIA COMPLETA DE MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PARA SUPEDANEAR INQUÉRITO OU AÇÃO PENAL - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA EVIDENCIADA - MEDIDA DE EXCEÇÃO - ORDEM CONCEDIDA PARA TRANCAR AÇÃO PENAL. - Nos crimes cometidos com violência doméstica, sujeitos aos ditames da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida só tem validade se feita perante o juízo, como explicita o art. 16 da Lei 11.340/06. A inobservância dessa exigência legal torna nula a retratação, dela não podendo decorrer nenhuma efeito. - A instauração de ação penal por denunciação caluniosa, quando a própria calúnia é evidentemente inexistente, e quando ausente o dolo de calúnia, é de todo descabida.  (TJMG -  Habeas Corpus Criminal 1.0000.12.002897-2/000, Relator(a): Des.(a) Flávio Leite , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 28/02/2012, publicação da súmula em 09/03/2012)

A falta de capacitação para lidar com a delicada e peculiar intervenção do direito no âmbito doméstico explica em parte o quadro apresentado. O comportamento da vítima em audiência requer cuidados, não censura. Essas mulheres não gostam de apanhar, não gostaram de apanhar. Precisam de proteção, respeito e responsabilidade por parte dos atores do sistema de justiça, quase sempre despreparados para tratar com as delicadas nuances dessas ocorrências.


Rômulo Luis Veloso de Carvalho. Rômulo Luis Veloso de Carvalho é Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado no Curso de Especialização em Direito para Carreira da Magistratura na EMERJ, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Hidden Woman // Foto de: Siris // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/robin-schmitt/18305098140

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura